Naquela tarde de maio de 2019, em Lublin, na Polónia, Erling Haaland meteu três hat-tricks às Honduras. Jogava-se o Mundial sub-20 e a Noruega deu uma cacetada na mesa que se ouviu em qualquer latitude. O rapaz, ainda de 18 anos, tirou uma fotografia a esticar nove dedos. Para denunciar o anonimato do bomber do Salzburgo, as crónicas de então erravam o nome do futebolista. Isso já não acontece.
Hoje sabemos mais uma coisa ou duas sobre Erling Haaland, que na noite de terça-feira fez cinco golos na vitória, por 7-0, do Manchester City contra o Leipzig, na segunda mão dos oitavos de final da Liga dos Campeões. E isso desatou os recordes assombrosos para o canhoto. São já 33 golos em 25 jogos neste torneio, em que até se estreou com um hat-trick em 45 minutos contra o Genk. No Salzburgo fez oito em seis jogos, no Dortmund meteu 15 em 13 ocasiões e agora em Manchester, na terra onde nasceu, já leva 10 golos em apenas seis partidas. Avassalador.
Desta vez, num jogo em que ele deve ter visto alguns hondurenhos no horizonte, Erling prometeu bater o recorde de golos num jogo da Champions, fixado em cinco golos por Lionel Messi e Luiz Adriano. No tal Barça-Leverkusen o argentino era na altura treinado por Pep Guardiola, que não o tirou de campo. Haaland fez os cinco golos a Janis Blaswich em 57 minutos, sendo que o treinador catalão trocou-o aos 60 minutos, confirmando o que o futebolista segredava e temia com Kevin de Bruyne numa pausa para substituições. Ele riu-se porque ficaria mal estar aborrecido. Afinal, eram cinco golos. Mas, mais tarde, admitiu que teria gostado de fazer dois hat-tricks.
Guardiola, que revelaria uma crush por Julia Roberts, disse que ele provavelmente o faria. E disse mais: “O Erling é jovem. Ele tem um incentivo de bater o recorde do Messi no futuro. Se tivesse conseguido isso com 22 anos, ficaria aborrecido no futuro.” Mais entusiasmante, e desarmante foi a conversa do norueguês com Micah Richards, Jamie Carragher e Thierry Henry, que depois de trocadas as palavras tirou uma luva e despediu-se com um misto de aperto de mão e vénia. Se isso não é uma espécie de céu para qualquer avançado que saiba um bocado do que aconteceu neste desporto, então não haverá céus para ninguém.

Alex Livesey - Danehouse
Durante esses minutos mostrou-se uma pessoa normal que gosta do que faz, cheio de avidez é certo, mas confessando que tem de melhorar em tudo, principalmente em ganhar valências no jogo para ajudar os outros a serem melhores, colocando-os em situações vantajosas. Mas o que é inevitável é inevitável: “Podia ter feito mais golos esta noite”, chegou também a dizer. O noruguês faz sempre isso, costuma apontar para o que falhou. Na flash interview, talvez em simultâneo, Pep ia mencionando a “mentalidade” estupenda do 9, que quer sempre mais. “É um vencedor em série.”
Há segredo para ser um 9?, perguntou-lhe em tempos Alan Shearer. “Talvez seja estar pronto porque sabes que vais ter oportunidades. Tens de estar pronto para a próxima ação e não pensar na última. Porque nunca sabes quando vais receber a bola, num cruzamento, num desvio, num ressalto. A situação seguinte é mesmo importante”, explicou, coincidindo exatamente com o que se viu no jogo contra Leipzig, em que quase morde a inquieta bola com os olhos. Ou seja, um futebolista com mentalidade de tenista, para quem essa vida de não ter memória é mais acessível por ter tantas ações com a raquete. O avançado disse ainda que falhar golos era o “pior sentimento de sempre” e que todos os golos têm o mesmo valor.
Essa forma de estar na vida, sabendo também que vai falhar e que terá de melhorar o nível (porque assim o próprio o exige), valeu-lhe números estupendos: é o futebolista mais jovem da história da Champions a alcançar os 30 golos (22 anos e 236 dias) e o que lá chega mais rapidamente, bastando-lhe apenas 25 jogos. E é aqui que entram as comparações úteis ou inúteis, mas curiosas: Cristiano Ronaldo precisou de 74 jogos para chegar aos 30 golos na competição (ainda é o recordista de golos, com 140). Mbappé fê-lo em 51, enquanto Benzema, Neymar, Messi e Lewandowski precisaram de 50, 49, 48 e 46, respetivamente. Ruud van Nistelrooy, outro 9 insaciável e atual treinador do PSV, meteu 25 golos na Liga dos Campeões em meros 34 jogos.
Depois do massacre ao Leipzig, Haaland concedeu que o seu super poder era marcar golos, caso algum distraído esteja mesmo, mesmo distraído. “É uma grande noite, cinco golos, vitória por 7-0 em casa, estou tão feliz”, disse o agora mais falador, deixando no retrovisor aquela versão penosa e austera que dizia uma ou outra palavra. “Não me lembro dos golos. Estava tão cansado das celebrações. Na minha opinião devíamos fazer mais disto, muitos golos”, diz como a quem ocorre algo como “devíamos ter quatro dias de fim de semana”.

Alex Livesey - Danehouse
E continuou, agora que todos querem saber mais e mais sobre esta espécie de robô que quer engolir o mundo. “Eu não penso, só estava a tentar meter a bola no fundo das redes. Muito disso é ser rápido na mente e tentar fazer a coisa certa. Alguma parte disso é qualidade, mas muito está na cabeça”, decretou. E aquela história de Guardiola o ter tirado do relvado quando ele agendara para pouco depois um encontro com a história. “Eu disse ao Pep, quando saí, que teria gostado de fazer um duplo hat-trick, mas o que podes fazer?”
Com quatro títulos em cinco edições da Premier League, a contratação de Haaland pelo City suspirava exatamente por noites assim. O debate sobre se a sua presença melhora ou não o jogo da equipa mantém-se, pois é menos um homem a pensar como um médio obcecado por controlo, o que talvez torne mais imprevisível e menos perfeito o jogar dos cityzens, aproximando-os dos terrestres. No entanto, e lembrando que esta é a temporada de estreia do avançado, convém ter noção que quando a pressão é bem desenhada e enérgica, encontrando depois os espaços e colocando Erling perto da baliza mais vezes, então estas noites podem acontecer mais vezes.
Um tigre insaciável como ponta de lança da arma mais destruidora que anda por aí.
Voltemos às folhas dos arquivos de Erling Haaland, as verdadeiras cheerleaders do futebolista. O norueguês, nascido em Leeds, detém atualmente alguns recordes: foi o mais novo a chegar aos 15 golos nesta competição por que tanto saliva o Manchester City (20 anos, 126 dias), o mais rápido a chegar aos 15 golos (12 jogos), o mais novo a chegar aos 20 golos (20 anos, 231 dias), o mais rápido a alcançar os 20 golos (14 jogos). Pausa. Continuamos: é também o mais novo a atingir os 25 golos (22 anos, 47 dias), e o mais rápido também (20 jogos), e ainda é o mais novo e mais rápido a atingir os tais 30 golos na prova (22 anos, 236 dias; 25 jogos). Nova pausa para respirar.
Como utopia dissimulada tem outros dois recordes em mira para esventrar: Kylian Mbappé alcançou os 40 golos no torneio com apenas 23 anos e 317 dias, enquanto Nistelrooy foi o mais rápido a meter 30 golos. Bastaram 45 jogos ao neerlandês, que passou a Gonzalo Higuaín a tal teoria do ketchup e que talvez tenha chegado aos ouvidos de Cristiano.
Foram apenas 14 clubes que sofreram os tais 33 golos que agora leva na prova Haaland, sendo que Sevilha (seis) e Leipzig (cinco), obviamente, são os emblemas mais visados. Há mais curiosidades: 18 dos 33 golos foram marcados na primeira parte, sendo a maior fatia (5) entre os 41 minutos e o intervalo.
Escreveu-se um artigo quase inteiro sem ser mencionado que este jogador é o melhor marcador da Premier League, com 28 golos em 26 jogos (falhou uma jornada). Contas feitas, em 2.809 minutos, espalhados por 36 presenças, Haaland fez 39 golos. A perseguição ao Arsenal mantém-se, como a obsessão da Champions. Nas tais declarações a Henry, Carragher e Richards, Erling Haaland conteve-se pela primeira vez quando lhe falaram nesse segundo fator.
“É uma pergunta difícil, facilmente faria manchetes com essa resposta”, denunciou. O painel riu-se em delírio. “É isso mesmo que queremos”, concedeu alegremente Carragher. “Eles não me trouxeram para ganhar a Premier League, eles sabem fazê-lo. Podes ler entre as linhas. Estou aqui para ajudar o clube a desenvolver-se ainda mais, para ganhar a Liga dos Campeões pela primeira vez”. Se isso vai acontecer, ninguém sabe, certo é que todos podemos dar-nos ao luxo de ser profetas e dizer: com certeza, durante essa viagem, Haaland vai fazer muitos golos.