Foi uma das constantes do Mundial 2022, mais até que a imagem de Gianni Infantino triunfante nas bancadas, e tão recorrente como os luminosos e ruidosos espetáculos que antecediam cada partida. Em todos os estádios do Catar, nas laterais dos campos, máquinas de ar condicionado trabalhavam para dar a jogadores e espectadores temperaturas mais amenas que as naturalmente sentidas em Doha e arredores.
O uso dos aparelhos, além de ser mais uma originalidade da organização do torneio, foi apontado por organizações ambientalistas e cientistas como parte de uma incoerência: a FIFA passou boa parte dos últimos meses a propagandear o Mundial 2022 como a primeira grande competição desportiva neutra em carbono, mas diversas evidências apontam no sentido contrário.
A Carbon Market Watch, organização sem fins lucrativos especializada no tema das emissões de carbono e políticas ambientais, publicou um estudo no qual acusa a promoção da FIFA quanto à neutralidade carbónica do Mundial como sendo “no mínimo, extravagante”. O trabalho indica que os cálculos da pegada deixada por este tipo de eventos só podem ser feitos depois do seu final, e não antes, elencando ainda diversas “questões problemáticas” em torno do Catar 2022, como o ar condicionado, o processo de desalinização da água ou a rega dos campos.
O estudo acusa a FIFA de fazer greenwashing com o Mundial. O conceito é definido pela Carbon Market Watch como sendo “a demonstração pública de preocupação pelo ambiente e o reclamar de louros por teóricas políticas sustentáveis quando, na verdade, se está a fazer o mínimo, ou nada, por verdadeiras melhorias ecológicas”.
O sistema de ar condicionado nos estádios do Mundial 2022
Ian MacNicol/Getty
A problemática em torno da sustentabilidade do Mundial que consagrou a Argentina de Messi veio acentuar o debate sobre o impacto ambiental das grandes competições desportivas num planeta em emergência climática. Segundo a revista científica “Nature”, o Mundial 2018, na Rússia, emitiu mais de dois milhões de toneladas de CO2, valor que chegou aos quatro milhões e meio de toneladas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.
A FIFA e o Comité Olímpico Internacional têm alegado estarem preocupados com a questão, mas estudos sobre as últimas organizações de ambas as entidades apontam para o acentuar do problema.
Catar 2022: a “falsa” neutralidade carbónica
O estudo da Carbon Market Watch detalha vários aspetos da organização do Mundial 2022 que levam a que se apelide de “falsa” a ideia de neutralidade carbónica promovida pela FIFA. “A ideia de sustentabilidade propagada não é credível”, considera Giles Dufrasne, autor do trabalho.
Um primeiro aspeto que levou à pegada do Catar 2022 foram os voos. Durante a competição, estimam-se que houve 1.300 voos diários de e para o Estado do Médio Oriente. A reduzida dimensão do país, que levou a que muitas pessoas tivessem que se alojar, por exemplo, no Dubai, aumentou a exigência destas ligações aéreas.
A somar a isto, a relva para os estádios e campos de treino teve de ser importada da América do Norte, viajando em aviões com temperatura controlada. A manutenção dos oito estádios e 136 recintos de treino exige, para cada relvado, 10.000 litros diários de água. O processo de dessalinização da água necessário no Catar acentua a pegada carbónica do Mundial.
A construção de oito estádios num país com um futebol interno longe da elite também é apontada como problemática. A revista “Nature” sublinha que um “problema estrutural” das grandes competições desportivas é a “criação de elefantes brancos”, infra-estruturas muito caras que pouco são usadas depois dos torneios.
Um exemplo paradigmático desta situação é a Arena Amazónia, em Manaus. Com um custo estimado a rondar os €120 milhões, o recinto não é casa de nenhum clube, sendo raras vezes utilizado para jogos de futebol.
A Arena Amazónia, construída para o Mundial 2014, é pouco utilizada
Friedemann Vogel - FIFA/Getty
Os JO de Inverno sob ameaça
A Arábia Saudita, vizinha do Catar, tem, também, apostado no desporto para a sua promoção. O reino é dono, através do Fundo de Investimento Público, do Newcastle, organizando competições de Fórmula 1, golfe ou futebol. A possibilidade de uma candidatura ao Mundial 2030 também já foi publicamente assumida por representantes sauditas, país que tem Lionel Messi como embaixador do turismo.
No âmbito desta aposta no desporto, a Arábia Saudita irá acolher os Jogos Olímpicos de Inverno da Ásia em 2029. A organização decorrerá no complexo Trojena, uma megacidade que custará cerca de €500 mil milhões e que terá instalações de ski, hotéis de luxo, lojas ou restaurantes.
Uma construção desta dimensão de raiz vai contra a agenda 2020+5 do Comité Olímpico Internacional (COI), que dita que, por razões de sustentabilidade, deve ser dada “prioridade clara” a candidaturas com instalações já construídas.
Os Jogos Olímpicos de Inverno são especialmente sensíveis a mudanças ambientais. As condições climáticas em Pequim chegaram a colocar em causa várias provas dos últimos Jogos, em fevereiro. O recurso a neve artificial, feito em quantidades nunca antes vistas em desportos de inverno, foi criticado por ser pouco sustentável.
Máquinas de neve artificial usadas para os Jogos Olímpicos de Pequim
VCG/Getty
A revista “Nature” construiu e aplicou, em 2021, um modelo com nove indicadores para avaliar a sustentabilidade de 16 edições dos Jogos Olímpicos de Inverno, entre 1992 e 2020. O estudo mostra uma degradação da pegada ecológicas nas últimas edições, com Pequim 2008, Sochi 2014 e Rio de Janeiro 2016 a apresentarem os piores resultados.
Neste contexto, o COI decidiu adiar a atribuição dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2030, argumentando ser necessário analisar como irão as mudanças no clima afetar os desportos de neve. Salt Lake City, Sapporo e Vancouver são os candidatos mais prováveis.
O Comité está a estudar possíveis alterações no processo de escolha das sedes dos Jogos de Inverno. Uma hipótese elencada é a definição, a longo prazo, de um conjunto de cidades que alternariam entre eles a organização, para assim assegurar sustentabilidade para o futuro. Outra possibilidade é as candidaturas serem obrigadas a mostrar terem temperaturas abaixo de zero graus por um período de 10 anos
Em 2007, Jeremy Jones, um snowboarder, fundou a Protect Our Winters, grupo com o objetivo de unir amantes dos desportos de inverno contra a crise climática. O projeto publicou, em janeiro, um estudo sobre como o aquecimento está a ameaçar atividades relacionadas com a neve.
Olhando a anteriores sedes de Jogos Olímpicos de Inverno, e tendo em conta as projeções mais otimistas para 2050, o Protect Our Winters concluiu que várias delas ou não teriam condições ou implicariam um grande risco em voltar a acolher as competições.
Sochi, na Rússia, é apontada como não podendo ser sede de JO de Inverno em 2050, segundo as previsões mais otimistas, e Chamonix, em França, como implicando um grande risco. A crise climática ameaça derreter os desportos de neve.
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