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A crise climática está a entrar em campo no desporto, com a “falsa” neutralidade carbónica do Mundial e os riscos para os Jogos de Inverno

A FIFA promoveu o Catar 2022 como a primeira grande competição neutra em carbono, mas estudos desmentem a entidade e realçam a pegada ecológica deixada pelo torneio. Com o COI a tentar definir novas regras para o processo de atribuição dos Jogos de Inverno, olhando à sustentabilidade, a relação dos maiores eventos desportivos com o ambiente, num mundo em crise climática, ganha nova centralidade

Pedro Barata

David Ramos/Getty

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Foi uma das constantes do Mundial 2022, mais até que a imagem de Gianni Infantino triunfante nas bancadas, e tão recorrente como os luminosos e ruidosos espetáculos que antecediam cada partida. Em todos os estádios do Catar, nas laterais dos campos, máquinas de ar condicionado trabalhavam para dar a jogadores e espectadores temperaturas mais amenas que as naturalmente sentidas em Doha e arredores.

O uso dos aparelhos, além de ser mais uma originalidade da organização do torneio, foi apontado por organizações ambientalistas e cientistas como parte de uma incoerência: a FIFA passou boa parte dos últimos meses a propagandear o Mundial 2022 como a primeira grande competição desportiva neutra em carbono, mas diversas evidências apontam no sentido contrário.

A Carbon Market Watch, organização sem fins lucrativos especializada no tema das emissões de carbono e políticas ambientais, publicou um estudo no qual acusa a promoção da FIFA quanto à neutralidade carbónica do Mundial como sendo “no mínimo, extravagante”. O trabalho indica que os cálculos da pegada deixada por este tipo de eventos só podem ser feitos depois do seu final, e não antes, elencando ainda diversas “questões problemáticas” em torno do Catar 2022, como o ar condicionado, o processo de desalinização da água ou a rega dos campos.

O estudo acusa a FIFA de fazer greenwashing com o Mundial. O conceito é definido pela Carbon Market Watch como sendo “a demonstração pública de preocupação pelo ambiente e o reclamar de louros por teóricas políticas sustentáveis quando, na verdade, se está a fazer o mínimo, ou nada, por verdadeiras melhorias ecológicas”.

O sistema de ar condicionado nos estádios do Mundial 2022

O sistema de ar condicionado nos estádios do Mundial 2022

Ian MacNicol/Getty

A problemática em torno da sustentabilidade do Mundial que consagrou a Argentina de Messi veio acentuar o debate sobre o impacto ambiental das grandes competições desportivas num planeta em emergência climática. Segundo a revista científica “Nature”, o Mundial 2018, na Rússia, emitiu mais de dois milhões de toneladas de CO2, valor que chegou aos quatro milhões e meio de toneladas nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016.

A FIFA e o Comité Olímpico Internacional têm alegado estarem preocupados com a questão, mas estudos sobre as últimas organizações de ambas as entidades apontam para o acentuar do problema.

Catar 2022: a “falsa” neutralidade carbónica

O estudo da Carbon Market Watch detalha vários aspetos da organização do Mundial 2022 que levam a que se apelide de “falsa” a ideia de neutralidade carbónica promovida pela FIFA. “A ideia de sustentabilidade propagada não é credível”, considera Giles Dufrasne, autor do trabalho.

Um primeiro aspeto que levou à pegada do Catar 2022 foram os voos. Durante a competição, estimam-se que houve 1.300 voos diários de e para o Estado do Médio Oriente. A reduzida dimensão do país, que levou a que muitas pessoas tivessem que se alojar, por exemplo, no Dubai, aumentou a exigência destas ligações aéreas.

A somar a isto, a relva para os estádios e campos de treino teve de ser importada da América do Norte, viajando em aviões com temperatura controlada. A manutenção dos oito estádios e 136 recintos de treino exige, para cada relvado, 10.000 litros diários de água. O processo de dessalinização da água necessário no Catar acentua a pegada carbónica do Mundial.

A construção de oito estádios num país com um futebol interno longe da elite também é apontada como problemática. A revista “Nature” sublinha que um “problema estrutural” das grandes competições desportivas é a “criação de elefantes brancos”, infra-estruturas muito caras que pouco são usadas depois dos torneios.

Um exemplo paradigmático desta situação é a Arena Amazónia, em Manaus. Com um custo estimado a rondar os €120 milhões, o recinto não é casa de nenhum clube, sendo raras vezes utilizado para jogos de futebol.

A Arena Amazónia, construída para o Mundial 2014, é pouco utilizada

A Arena Amazónia, construída para o Mundial 2014, é pouco utilizada

Friedemann Vogel - FIFA/Getty

Os JO de Inverno sob ameaça

A Arábia Saudita, vizinha do Catar, tem, também, apostado no desporto para a sua promoção. O reino é dono, através do Fundo de Investimento Público, do Newcastle, organizando competições de Fórmula 1, golfe ou futebol. A possibilidade de uma candidatura ao Mundial 2030 também já foi publicamente assumida por representantes sauditas, país que tem Lionel Messi como embaixador do turismo.

No âmbito desta aposta no desporto, a Arábia Saudita irá acolher os Jogos Olímpicos de Inverno da Ásia em 2029. A organização decorrerá no complexo Trojena, uma megacidade que custará cerca de €500 mil milhões e que terá instalações de ski, hotéis de luxo, lojas ou restaurantes.

Uma construção desta dimensão de raiz vai contra a agenda 2020+5 do Comité Olímpico Internacional (COI), que dita que, por razões de sustentabilidade, deve ser dada “prioridade clara” a candidaturas com instalações já construídas.

Os Jogos Olímpicos de Inverno são especialmente sensíveis a mudanças ambientais. As condições climáticas em Pequim chegaram a colocar em causa várias provas dos últimos Jogos, em fevereiro. O recurso a neve artificial, feito em quantidades nunca antes vistas em desportos de inverno, foi criticado por ser pouco sustentável.

Máquinas de neve artificial usadas para os Jogos Olímpicos de Pequim

Máquinas de neve artificial usadas para os Jogos Olímpicos de Pequim

VCG/Getty

A revista “Nature” construiu e aplicou, em 2021, um modelo com nove indicadores para avaliar a sustentabilidade de 16 edições dos Jogos Olímpicos de Inverno, entre 1992 e 2020. O estudo mostra uma degradação da pegada ecológicas nas últimas edições, com Pequim 2008, Sochi 2014 e Rio de Janeiro 2016 a apresentarem os piores resultados.

Neste contexto, o COI decidiu adiar a atribuição dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2030, argumentando ser necessário analisar como irão as mudanças no clima afetar os desportos de neve. Salt Lake City, Sapporo e Vancouver são os candidatos mais prováveis.

O Comité está a estudar possíveis alterações no processo de escolha das sedes dos Jogos de Inverno. Uma hipótese elencada é a definição, a longo prazo, de um conjunto de cidades que alternariam entre eles a organização, para assim assegurar sustentabilidade para o futuro. Outra possibilidade é as candidaturas serem obrigadas a mostrar terem temperaturas abaixo de zero graus por um período de 10 anos

Em 2007, Jeremy Jones, um snowboarder, fundou a Protect Our Winters, grupo com o objetivo de unir amantes dos desportos de inverno contra a crise climática. O projeto publicou, em janeiro, um estudo sobre como o aquecimento está a ameaçar atividades relacionadas com a neve.

Olhando a anteriores sedes de Jogos Olímpicos de Inverno, e tendo em conta as projeções mais otimistas para 2050, o Protect Our Winters concluiu que várias delas ou não teriam condições ou implicariam um grande risco em voltar a acolher as competições.

Sochi, na Rússia, é apontada como não podendo ser sede de JO de Inverno em 2050, segundo as previsões mais otimistas, e Chamonix, em França, como implicando um grande risco. A crise climática ameaça derreter os desportos de neve.

Este texto faz parte de um conjunto de conteúdos que o Expresso publica para falar diretamente com os leitores mais jovens e sobre aquilo que os afeta mais de perto. Tem dúvidas, sugestões ou críticas? Envie-me um e-mail.