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Depois de tanto, o tempo parou e Scola disse adeus: "Com o Luis aprendi que ganhar é pouquito, o mais importante é honrar o que fazes"

Esteve em cinco Mundiais e cinco Jogos Olímpicos, ganhou uma medalha de ouro e outra de bronze em Atenas 2004 e Pequim 2008. Foi eterno, parecia eterno, revolucionou a federação e foi um exemplo. Luis Scola despediu-se da seleção no Argentina-Austrália, em Tóquio

Hugo Tavares da Silva

Gregory Shamus

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Quando faltavam 51 segundos, com o marcador já fatalmente sovado (56-92), Luis Scola deixou pela última vez um campo de basquetebol com a camisola da seleção argentina.

E o relógio congelou.

Abraçou o selecionador, Sergio ‘Oveja’ Hernández, depois um ou outro membro do staff e os companheiros. A homenagem espontânea prosseguiu, houve tempo para tudo, inúmeros carinhos, palavras, abraços, aplausos, muitos deles vindos do outro lado, dos australianos, com Patty Mills e o treinador à cabeça.

Scola ia tentando manter a face, afinal ainda nem havia acabado o jogo. Mas aquilo, tanto reconhecimento de uma enxurrada, apertou-lhe o coração e ele ia cedendo. Limpou o rosto, parece que ia começar a perder lágrimas. Levantou-se e agradeceu mais uma vez.

“Tento sempre afastar-me destas situações. É um golpe baixo. Não sei muito bem o que dizer. Acabou e já está. Estou um pouco abalado emocionalmente”, admitiria no final.

“Estamos todos a viver uma situação especial. Ver os rivais, jornalistas e árbitros abalou-me um pouco. Veio tudo como um golpe. Tentei manter a compostura o máximo que pude. Mas vou em paz. Era o que queria fazer: chegar ao último momento a trabalhar à minha maneira, nos meus termos e como pude. Vou em paz. A seleção é muito mais do que nomes. Dei-lhe o máximo do meu compromisso, esforço e os melhores anos da minha carreira, e os piores também.”

"O Ginóbili diz que Scola é o basquetebolista mais importante da nossa historia"

A carreira de el capitan começou em 1995 no Ferro Carril Oeste, de Buenos Aires. Depois prosseguiu em Espanha, nos clubes Saski Baskonia e Gijón Baloncesto. A chegada à NBA aconteceu finalmente em 2007, quando assinou pelos Houston Rockets. Seguiram-se Phoenix Suns, Indiana Pacers, Toronto Raptors e Brooklyn Nets. Nos últimos anos, o basquetebolista, de 41 anos, jogou na China e em Itália.

Para Mauricio Codocea, jornalista do “Clarín” da Argentina e autor da biografia do basquetebolista “Luis Scola, el Abanderado”, estamos perante um dos mais importantes desportistas do país. Ou seja, está entre Diego Maradona, Lionel Messi, Guillermo Vilas, Juan Manuel Fangio, Luciana Aymar e Gabriela Sabatini, nomeia. “Nunca foi o melhor do mundo, nem sequer foi o melhor do seu país, porque havia Manu Ginóbili, cujo talento era inigualável. No entanto, é o próprio Ginóbili que diz que Scola é o basquetebolista mais importante da nossa historia”, explica.

Para justificar estas declarações, o jornalista argentino menciona uma enorme apetência para marcar pontos, tanto em Mundiais como em Jogos Olímpicos, mas, mais importante, tem tudo a ver com o legado e o que fez para as gerações vindouras. “É o que fica dele, o que este grupo aprendeu com ele, o que se vai continuar a aplicar graças a ele, graças a ele ter vestido a camisola da Argentina”, diz.

E é aqui que entra 2014, quando a intervenção do atleta provocou um terremoto na federação nacional daquela modalidade. Denunciando as dívidas de tesouraria, as condições lastimáveis e lamentáveis em que viajavam e pernoitavam e ainda a falta de locais para treinar, Scola semeou uma revolução. A seleção ameaçou não jogar no Mundial desse ano e, como consequência, a justiça entrou em ação. O então presidente foi acusado de gestão danosa, o governo teve de intervir e tudo isso permitiu que a federação “se levantasse” e encontrasse o seu rumo.

Já Ricardo Brito Reis, comentador de basquetebol da SportTV, fala numa figura “marcante” do desporto daquele país sul-americano: “É o grande capitão, foram 22 anos a representar a seleção. Nunca falhou um torneio internacional, esteve em 22 torneios internacionais. Acaba por ser o último jogador da geração dourada da Argentina. Esteve presente em cinco Jogos Olímpicos e em cinco Mundiais”.

Kevin C. Cox

E acrescenta: “Era um jogador muito forte nas zonas mais próximas do cesto, um excelente trabalho de pés. Era muito bom do ponto de vista técnico, com muitos recursos, com um repertório muito vasto nas zonas interiores. Teve também a capacidade e a inteligência de perceber que o jogo de basquetebol evoluiu, mudou, e que precisava de acrescentar novos argumentos ao seu jogo. Foi portanto capaz de adicionar, por exemplo, o lançamento de três pontos, o lançamento cada vez mais longo, ao seu arsenal ofensivo, coisa que ele não tinha tanto no início. É uma perda grande para a seleção da Argentina. É uma figura inspiradora para as novas gerações argentinas”.

Quando foi para Espanha, aos 17 anos, Scola não aceitou o cenário de estar ausente da seleção, fosse por lesão ou por falta de autorização dos clubes, algo que acontecia a outros atletas, por isso assinava e assinaria contratos em que havia uma alínea que dizia que não lhe podiam negar ir à seleção, conta entusiasmado Codocea.

Depois, em 2011, vieram as más notícias sobre um dos joelho. Os médicos disseram-lhe que iam durar mais um ou dois anos. “O Scola, em vez de ficar com esse prognóstico, escolheu o caminho oposto”, continua o jornalista do “Clarín”.

“Modificou tudo: a alimentação, hoje tem campos em Buenos Aires para cultivar de maneira orgânica, tem agricultura e gado, tudo para a alimentação. Depois, o descanso e dormir. Hoje há dispositivos que nos medem o sono no telefone, mas ele comprou coisas por sua conta para tal, cintas para monitorizar o sono, para ver como podia melhorar. Foi assim sempre”, conta Codocea.

Apesar de tudo e de tanto, Scola fica sobretudo ligado ao ouro olímpico conquistado pela Argentina em 2004, em Atenas, contra a Itália, embora o grandíssimo desempenho tenha ocorrido contra os Estados Unidos, na meia-final. Nesse torneio, Scola assinou uma média de 17.6 pontos por jogo, foi o sétimo melhor.

FILIPPO MONTEFORTE

Uma das maiores figuras de então, Manu Ginóbili, que terminou a carreira em março de 2019, fez questão de deixar umas palavras para o amigo e ex-companheiro no dia da despedida. “Continuo um pouco tocado. Que grande profissional!! Que ética, compromisso… Que facilidade para fazer pontos!! Irrepetível por tantas coisas. Obrigado de novo, Luifa”, escreveu o outro mago do basquetebol argentino, no Twitter.

E adicionou: “Quanta emoção nesse último aplauso!! Obrigado, Scola, por nos ensinares tanto nestes anos e por liderares com o exemplo de sempre. Um grande luxo como companheiro. Aplaudo de pé”.

Também o reputado selecionador, Sergio Hernández, com a voz trémula e combatendo a emoção, dispensou uns desabafos no final. "O legado que deixa o Luis é incrível, porque todos, todos, em algum momento, nos pusemos atrás dele, incluíndo eu, que era seu treinador. A liderança, o exemplo de vida, não só no basquetebol, o exemplo de constância, ética, trabalho, lucidez, respeito e honrar o que faz. Com o Luis aprendi que ganhar é pouquito, que ganhar um jogo ou ser campeão não é o mais importante, o mais importante é honrar cada segundo do que fazes na vida, seja o que for. Resta agradecer-lhe. Que todos estejamos atentos ao seu legado, precisamos destes exemplos."

Finalizando, Mauricio Codocea revela ainda que Luis Scola levava jovens jogadores argentinos aos Estados Unidos, por sua conta, para treinarem com ele. A alguns treinadores da federação, deu-lhes material para treinarem melhor. Há até quem diga que pôs dinheiro do seu bolso nos tempos mais complicados da federação.

“Por todas estas razões”, sentencia o jornalista sul-americano, “estamos a falar de um jogador que deixa uma grande marca, há um antes e depois. Há uma grande unanimidade. O seu legado vai continuar por muito tempo”.

A Argentina perdeu na terça-feira Luis Scola e não só. Perdeu contra a Austrália, nos quartos de final, e desperdiçou a hipótese de lutar por um lugar na final olímpica. Resta a lembrança do ouro e do bronze conquistados em 2004 e 2008. Com Luis Scola.