Certa vez, numa sessão fotográfica da revista “Sports Ilustrated” depois dos Jogos no Rio de Janeiro, Michael Phelps explicava a Katie Ledecky como é que se fazia. Uma de cada vez, o maior campeão olímpico da história ordenava meticulosamente, como um cirurgião, as medalhas que se iam colando ao peito da nadadora. Simone Biles, por perto, tirava notas mentais, enamorando-se pela divina dança daqueles redondos pedaços de história. O tilintar das medalhas, sublime, engrandecia o momento.
- Depende de como as colocas. Eu coloco-as uma de cada vez, depois aconchego-as por trás.
- O quê!?
- Já o fiz antes. Vais aprender, não te preocupes com isso…
E ouviu-se uma gargalhada gloriosa de Phelps.

São, para já, seis medalhas olímpicas, cinco de ouro e uma de prata. A primeira vez foi aos 15 anos, em Londres, há quase 10 anos, era a benjamim da equipa norte-americana. A miúda surpreendeu o mundo inteiro na única corrida em que participou, os 800 metros livres, que terminou em 8:14,63 minutos, com um avanço importante para as outras experientes nadadoras. Durante muito tempo esteve dentro do recorde mundial. Quando acabou, manteve-se serena, parecia já estar habituada a ganhar coisas daquela envergadura. Ou se calhar sabia, como ninguém, o que estava para vir.
Ledecky nasceu em 1997, em Washington DC, e foi criada em Bethesda, Maryland. Começou a molhar os pés e a entrar na piscina logo aos seis anos, quando ia ver o irmão afinar as braçadas. No outono passado, já uma super lenda do desporto, terminou a licenciatura em Psicologia, em Stanford. Por ali, nadou pela equipa da universidade e, claro, ganhou campeonatos nacionais, vivendo como os jovens vivem, divertindo-se.
Não se sente em Kathleen Genevieve Ledecky aquela aura de wonderkid ou figura divina olímpica. Tem qualquer coisa nela que glorifica a normalidade. Praticou desporto, vários, entrou em algumas competições, foi para a faculdade e cá estamos. Pelo meio, sim, esteve em dois Jogos Olímpicos, em Londres e no Rio de Janeiro. E foi percebendo que teria de aprender a arrumar medalhas que se colam ao peito, como o maior de todos (28 medalhas no total), que até saiu da sua modalidade.
Agora é veterana, aos 24 anos, e, na ausência de público e familiares, entende que terá de haver mais sensibilidade. “Eu sei que estes Jogos Olímpicos podem não parecer exatamente iguais aos do passado. [As jovens nadadoras] não terão as famílias lá, por isso penso que é ainda mais importante as nadadoras mais velhas servirem como as suas famílias”, disse Ledecky, na semana passada, ao site da Team USA.

Ledecky em 2012
Al Bello
O diretor de performance da equipa norte-americana de natação falou ao “The Independent” num outro lado da nadadora, o lado “gentil” de Ledecky, apesar de ela estar faminta por competir. “A Katie quer ganhar com a margem mais massiva possível, mas não creio que ela queira quebrar a alma de alguém como fazia o Michael Jordan”, refletiu Matt Barbini.
É quase inevitável que Ledecky puxe uma cadeira e se sente na mesa dos grandes, das figuras mitológicas do desporto, de todos os desportos, dos mitos e das histórias de encantar. Se ela se curvar para receber pelo menos três medalhas de ouro em Tóquio, vai empatar com a nadadora mais bem-sucedida da história no que toca a JO: Jenny Thompson, também norte-americana, ganhou dois ouros em Barcelona 1992, três em Atlanta 1996 e outros três em Sidney 2000.
Há mais, há sempre mais. A nadadora norte-americana vai competir em quatro provas individuais (200m, 400m, 800m e 1500m livres - detém os recordes do mundo nas últimas três) e pelo menos numa estafeta, por isso, se dominar as águas nipónicas e superar a concorrência da australiana Ariarne Titmus, Ledecky pode ultrapassar os ouros da mulher mais medalhada de sempre em Jogos Olímpicos: Larisa Latynina. A ginasta soviética começou a garimpar ouro em Melbourne 1956 e terminou, nem de propósito, em Tóquio 1964. Ou seja, nesta altura, separam-nas quatro medalhas de ouro.

Maddie Meyer
Ao “The Athletic”, o treinador que a ajudou até ela ir para Stanford explicou o fenómeno da carne e das entranhas que lhe abraçam os ossos. “Há qualquer coisa diferente naqueles atletas especiais. Quer se possa treinar ou seja genética, natureza ou educação, ou algo cósmico, não sei. Tudo junto. Algo os leva a ser melhores a cada dia que passa. Não sei mesmo se isso os leva a ser melhores do que a concorrência deles. Penso que é algo que os leva a ser melhores do que eles próprios”, explicou Bruce Gemmell.
Quando era miúda, Ledecky gostava de chegar a casa e escrever alguns objetivos em post-its. Colava-os algures no quarto e desfrutava da viagem que a aproximava cada vez mais daqueles pequenos papéis coloridos.
Depois de tanto imitar as suas heroínas - Allison Schmitt, Missy Franklin e Dana Vollmer -, e mesmo nunca tendo sonhado em ser uma atleta olímpica, Katie Ledecky está cada vez mais perto de um post-it que deixou por escrever: alcançar o lugar mais alto do Olimpo, a mais pura brisa olímpica onde não há paredes, só superação.