Futebol nacional

A alvorada de Daniel Bragança no Sporting e a (terceira) vida de Florentino no Benfica

A alvorada de Daniel Bragança no Sporting e a (terceira) vida de Florentino no Benfica
RODRIGO ANTUNES/Lusa

À quarta época e depois de um ano sem jogar, o médio do Sporting foi a bússola da equipa no dérbi da Luz que valeu a final da Taça de Portugal. Daniel Bragança deu aos leões a calma e paciência com bola, qualidades que sempre teve e às quais juntou uma maior capacidade para cobrir terreno. Foi quem melhor resistiu à pressão a todo o campo e no momento da perda de bola do Benfica, que teve nos tentáculos de Florentino, o polvo ladrão, o melhor sustento. Ambos nascidos em 1999, foram o sustento do meio-campo no primeiro de dois dérbis desta semana

O seu primeiro contacto com a bola é na metade do Benfica, abeirado da área e com a baliza à vista, redondezas que não lhe beliscam a calma. À esquerda, recebe o passe de Nuno Santos com o pé direito, abre o corpo para o jogo com a receção, finge que vai levar a ação para o centro do campo, mas não, os cinco toques que dá na ação de estreia no dérbi são com o intuito de enganar o marcador direto, cravar-lhe os apoios na relva, procurar o refúgio do pé esquerdo preferido e arranjar espaço para um cruzamento que não chega a Paulinho. A tentativa carrega a pequena área, não ameaça a baliza e o seu desenlace, dois segundos depois, atestam um dos porquês de Daniel Bragança ter sido titular, pela primeira vez, num dérbi que realmente era decisivo.

A uns 15 metros de onde cruzara, foi ele quem mais rápido reagiu à sobra do corte vindo da cabeça de Otamendi, reclamando a segunda bola para o Sporting ter uma segunda vaga de ataque. Ao quinto minuto, era a primeira jogada sustentada de bola no chão do jogo, com alguma calma e paciência, adjetivos à medida do requinte que o português empresta aos contactos que tem com a bola. A novidade em Daniel Bragança, esta época, é a capacidade de ser impactante quando não a tem. Mais disponível para os trabalhos de sapa e fincar os dentes na faca de modo a correr com ela bem mordida na dupla de meio-campo da equipa, deixou na Luz uma versão sua que parece estar no ponto rebuçado ao fim de dois terços da temporada e após um malogrado ano sem jogar.

Este Daniel Bragança sucedeu ao que já era imperturbável com a bola, mas dócil sem ela, antes usado por Rúben Amorim em partidas de menor relevância ou para serenar o ritmo em jogos que tinham o Sporting com o resultado a sorrir-lhe. Na terça-feira, este Daniel Bragança foi titular entre habituais titulares no clássico que valeu a final da Taça de Portugal, ladeando Hjulmand como médio mais a espreitar a zona centro-esquerda nesse papel dinâmico habitualmente reservado a Morita e onde se pede intervenção na construção de jogadas e, adiante, associações aos atacantes e movimentos que ameacem a linha defensiva adversária. Daniel Bragança foi tudo isso enquanto se assumiu como a bússola das posses de bola dos leões.

O médio deixou um jogaço na Luz. No Sporting pressionado talvez como nunca esta época, João Neves e Florentino mordiam cada receção dos médios no bloco subido com que o Benfica apertou a todo o campo. Daniel Bragança respondeu a essa falta de pudores com uma ausência de medo para se demorar nas suas ações com a bola, dando os toques necessários para atrair a pressão e soltar a seguir no jogador que estava livre. No meio da tempestade provocada pelos encarnados para retirar tempo e espaço às jogadas do adversário, era ele o mais esclarecido, a ser calmo e paciente a cada intervenção. Posicionando-se uns metros à frente de Hjulmand, foi quem deu mais tempo de vida às posses de um Sporting que sofreu perante a forma como o rival encaixou as suas peças nos adversários.

Com Rafa e Di María responsáveis pelos centrais de fora e os médios a fazerem parelha com os homónimos, o Sporting teve vias abertas nos alas, por fora, para se livrar da pressão intensa que levou o Benfica a fechar caminhos por dentro, porque Aursnes e Bah também caíam sobre Paulinho e Trincão, que se mostravam ao centro para ajudar os leões a avançarem no campo com passes curtos. Além de recuperar várias bolas logo após a equipa as perder, a aptidão de Daniel Bragança para resistir à pressão e não se apressar a decidir o que fazer à bola deu aos leões as vias para libertar várias vezes Nuno Santos, na esquerda, durante a primeira parte.

Na segunda, dele veio a noção de que tinha de correr um pouco com a bola em direção à área para fixar atenções antes de libertar um passe à direita, onde Geny Catamo rematou logo a abrir. Minutos mais tarde, aproximou-se de Hjulmand face ao cerco que o Benfica lhe montara e à escorregadela do dinamarquês, recebeu a bola e apercebeu-se que era necessário acelerar um passe de novo para o moçambicano, que na área inventou o cruzamento que originou o segundo golo. Primeiro a presença de espírito que o levou a ter paciência, depois fez o Sporting arrepiar caminho rumo à zona onde podia ameaçar a baliza.

Carlos Rodrigues/Getty

Há três anos, Rúben Amorim achava “um crime” Daniel Bragança “não ter mais minutos” porque seria “claramente titular” se a equipa jogasse com três médios, admissão de quem é fiel a um sistema que prejudica o jogador face às características que tem. No próximo sábado, provavelmente não abdicará do médio quando tiver de orquestrar a equipa que vai receber de volta, no campeonato, o Benfica, chegado a abril assente nas peças que lhe dão as maiores fundações para se acercar dos padrões de jogo mostrados na fase mais exuberante da época passada. Apesar de só em abril, mas isso são frutos de outra colheita, os encarnados alcançaram um cume no último dérbi que, por coincidência, transbordou da influência de Florentino Luís.

Titular pelo sexto jogo seguido desde o início de março, fartou-se de roubar bolas, estendendo a todo o campos os seus tentáculos de polvo-ladrão. Sempre ligado à ficha e com a corrente a alimentá-lo nos momentos em que a equipa perde a bola, Florentino é rápido a dar uso ao apurado faro que tem para se posicionar a modo de ser o primeiro jogador a pressionar na zona onde o Benfica perde a posse. Encurtando sempre o espaço para os eventuais adversários que possam receber um primeiro passe quando a outra equipa tenta dar vazão à bola recuperada, ele é o estanque imediato, o ladrão que rouba ladrões.

Várias foram as vezes em que cortou tentativas de o Sporting sair rapidamente, lançando-se na relva contra passes, antecipando-se a adversários antes de receberem a bola ou fechando-lhes o espaço quando iam decidir o segundo toque na bola. Nos períodos em que o Benfica encostou o Sporting à sua área, em Florentino teve o tampão recuperador logo perto da área contrária que deu à equipa a capacidade para ter vagas atrás de vagas de ataque - na segunda parte, João Neves acompanhou-o de perto. No auge da era Roger Schmidt, durante a primeira metade da época passada, ele era o expoente desta aptidão que asfixiava os adversários no seu meio-campo. Isso há muito que lhe é reconhecido.

Mas, se calhar, não será com a fibra monstruosa da exibição que deixou na Luz que terá os seus cem anos de perdão. Florentino era assim em 2018/19, quando Bruno Lage o estreou sem cerimónias no onze a meio da época, nesse Benfica campeão, também jogava tal e qual na última temporada, antes de Schmidt muito o sentar no banco quando Enzo Pérez foi vendido e o treinador se dedicou a experiências na dupla de médios. Em todas, sacrificou o seu maior trunfo na forma como queria a equipa sem a bola, a reagir no momento da perda, em busca de soluções para problemas coletivos que os encarnados tinham com ela, a construir jogadas.

Florentino tem dois títulos nacionais com o Benfica e está, pela terceira vez na carreira e após duas temporadas seguidas de empréstimos (entre 2020 e 2022), a ter de provar as valências que de tão evidentes que são parecem menorizar os aspetos do seu jogo que foram sendo apequenados na perceção que existe do jogador. Como também se viu, na terça-feira, na Luz, a sua primazia por simplificar não lhe retira olho para tentar passes verticais em vez de só para o lado, mesmo que esses primem por encontrarem o pé de alguém ao invés de procurarem lançar outrem no espaço. Florentino não tem risco no passe, mas tão pouco limita a equipa ao ponto de encravar a saída de bola; pode não sentir o maior conforto do mundo quando pressionado pelas costas, aí a face simples do seu jogo livra-o de problemas maiores.

Ser tão bom como ladrão e tendo a boa agressividade que evidencia nas disputas de bola parecem diminuir o que se acha dele nos momentos ofensivos. De confiança insuflada pela exibição cheia de recuperações e roubos, dele até se viu um remate do meio da rua já perto dos últimos cinco minutos do dérbi, que viu de perto um dos postes.

Pacato em emoções, imutável na cara que sempre ostenta em campo, Florentino mostrou-se igual a si mesmo. Ainda é intermitente no onze do Benfica quando a conversa de ‘quem acompanha João Neves’ deveria transladar para um ‘para quê desfazer a parelha’ que agora Roger Schmidt vai nutrindo. Do outro lado, o médio que corre de peito feito, o tronco reto e direito, com o pé esquerdo pronto a dar pausa à bola, também luta contra a intermitência. Daniel Bragança partilha com Florentino Luis o nascimento em 1999, há uma geração a tentar colar-se de vez no meio-campo dos rivais de Lisboa.

Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: dpombo@expresso.impresa.pt