Havia uma fila na bancada do Estádio Municipal de Mafra, no sábado, com três japoneses em linha: à direita, um adornado por uma boina repleta de pequenos crachás e com uma mala tigresa aos pés; ao meio, um com farta e grisalha cabeleira afro, com lentes de fundo de garrafa nos óculos que usava para focar o telemóvel tal como o outro que o ladeava; e à esquerda, de lunetas escuras, estava o único com atenção dedicada ao jogo.
Era Kazuyoshi Miura e há outra foto que apareceu a circular no fim de semana, ele com o mesmo boné e a mesma vestimenta, a abeirar-se de alguém do staff da Oliveirense na mesma bancada para ver o ecrã do seu computador portátil e a levantar dois dedos da mão. Já com idade para ser um casual adepto, o japonês saiu do hotel do norte onde o albergaram, viajou para sul e agasalhou-se para ver a equipa de Oliveira de Azeméis a ganhar o quarto jogo em cinco.
Esse específico cidadão japonês deslocar-se ao estádio do Mafra e depois surgir na ficha de plantel da Oliveirense no site da Liga de Clubes foi a confirmação de todo um inusitado que leva à história, de quase quatro décadas, do homem mais velho a ter marcado um golo no futebol profissional. E esse homem conta-se pelo que ainda é no campo.

Zed Jameson/MB Media
Tem o cabelo grisalho, cada vez mais esbranquiçado. As rugas de expressão, já vincadas indisfarçavelmente na cara. A pele flácida nas partes do corpo que estão à mostra, sem musculatura que a inche. Tem uma passada pausada, uma espécie de trote constante, mas tem os piques de aceleração como os tigres-de-bengala albinos: são raríssimos.
É de outros tempos, muito idos.
Em 1967, os Beatles ainda estavam para se fazerem minimalistas com o White Album, os checos ainda não se tinha revoltado na Primavera de Praga, um cobarde e racista não assassinara Martin Luther King em Memphis, nos EUA, e a cadeira de lona que fez tombar Salazar ainda não traíra ditadores, no Estoril. Nesse ano, em Shizuoka, no Japão, nasceu Kazu Miura.
Enquanto esses eventos ou personagens desapareceram, o japonês perdurou, desafiando o adversário imbatível para qualquer desportista, genial ou não, por mais zeloso do corpo e sortudo em mazelas que seja. O tempo passa e Kazu Miura permanece, badalado como o futebolistas profissional mais velho do mundo. E foi inscrito como novo jogador da Oliveirense, onde vai dar seguimento à 38.ª época da sua carreira.
Prosseguindo a brincadeira do contexto, Miura coincidiu com Andrés Iniesta no Japão. O médio calvo e com branco nos poucos fios de cabelo que ainda lhe crescem, levou o desvanecer da carreira para o país, há cinco anos.
De vida, o espanhol tem 38, laureou-se com os maiores títulos no Barcelona e na seleção de Espanha, reputou-se como o ilusionista que escondia a bola das pernas dos adversários e, há um par de anos, aparecia ao lado de Kazu Miura, a sorrir, nos eventos de apresentação da liga japonesa. Quando Iniesta se estreou pelo Barça, em 2002, o futebolista que os nipónicos chamam de rei tinha só menos três números na idade do que o espanhol. Mas já tinha a que o espanhol tem hoje quando, em 2005, assinou com o Yokohama FC um contrato para o provável ocaso da carreira.

Etsuo Hara/Getty
Mas não. Em 2017, pouco antes de o baixote Iniesta chegar ao país, Kazu tornou-se o jogador mais velho de sempre a marcar um golo, superando outro superador do tempo, Stanley Matthews. “Não sinto que tenha ultrapassado uma lenda. Posso tê-lo superado em longevidade, mas nunca serei capaz de igualar as estatísticas e a carreira que teve”, disse, nesse dia. Em 2019 e 2021 só fez 15 jogos sem direito a golos.
A Miura gabam a longevidade, o empenho no treino, a minúcia no tratamento do corpo e os esforços que faz, enquanto cinquentão, para prolongar a carreira. Koki Anzai e Schuichi Gonda, antigos futebolistas do Portimonense, já jogaram contra ele. “É um exemplo para todos os jogadores”, exalta à Tribuna Expresso o guarda-redes. “É uma lenda e uma pessoa que deu muito ao futebol japonês”, acrescenta o lateral que, quando o defrontou, se lembra do quão “bem cheiroso” era.
O Japão, historicamente, é terra de longa vivência. Em 1996, a esperança média de vida no país superou a barreira dos 80 anos e, em 2020, nos últimos registos, estava nos 84.62 - em Portugal, no triénio 2019-2021 esteve nos 77,67 para os homens e em 83,37 nas mulheres, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística. Por refletir a sociedade onde é jogado, e mesmo que um pouco rebuscado, até se pode entender que o futebol japonês tenha vários desvarios na idade - Shunsuke Nakamura apenas se retirou em outubro, aos 44 anos, no Yokohama FC; há os 43 de Shinji Ono, no Consadole Sapporo; ou os 42 de Yasuhito Endo, no Júbilo Iwata.
Mesmo assim, o rei Kazu é uma relíquia.
Já não jogava num clube da J-League - estava emprestado pelo Yokohama FC ao Suzuka Point Getters, da 4.ª divisão, onde marcou dois golos em 2022 para engordar o seu próprio recorde -, mas, em 1993, só Miura estava na época inaugural da liga, em que desatou a marcar e terminou com mais golos do que Zico e Gary Lineker. Começou a carreira em 1986, no Brasil, para onde viajou sozinho, adolescente imberbe a fugir do amadorismo do futebol japonês.
Chegou a jogar no Santos e no Palmeiras, antes, porém, aturou o gozo que os brasileiros focavam na sua técnica e primeiro toque, ouviu das bancadas vómitos de preconceito bacoco - “Hey, japonês, vai fritar tempura”, contou, à “The Athletic” - e suportou dormir em quartos com seis miúdos e pulgas no colchão. “Se és assim tão fraco, então sim, volta para o Japão”, reprimiu o pai, quando lhe disse que pensava em desistir.

Etsuo Hara/Getty
A resiliência deu-lhe combustível, voltou ao Japão e muito fez pela popularidade do futebol na nação viciada em beisebol. Tem 220 golos feitos, 55 deixados na seleção, que ajudou a qualificar para dois Mundiais sem o convocarem para algum. Em 1998, justificaram a decisão com a idade. Tinha 31 anos.
Em 2012, foi chamado para seleção japonesa de futsal que competiu no Campeonato do Mundo. “Quero rematar sempre que possa e marcar muitos golos”, esperançou, fazendo figas no discurso, mas participou em apenas um jogo. Foi mais ou menos nessa altura que as 11 horas de cada 11 de janeiro viraram o tempo de Kazu: todos os anos, neste dia, a esta ordem do relógio, ambas a bater certo com o seu número predileto de camisola, ele anuncia se continua a jogar ou se faz o que ninguém o condenará por fazer.
Tornou-se hábito esperar de Miura, nessa ocasião, fatos de cores berrantes. O japonês sempre os veste. É já quase uma efeméride cultural no país, como é o seu aniversário, a 26 de fevereiro, motivo para jornalistas e câmaras de televisão invadirem o lugar onde estiver.
Em 2019, os parabéns a você foram adiados por um dia, porque um convite antecipou-se e Kazu celebrou mais uma volta ao sol a beber chá com os imperadores do Japão, no Palácio Real de Tóquio. “Posso ter 52 anos, mas a minha mente e o meu corpo são jovens. Vou jogar até morrer”, explicou, fora do domínio do será possível, ou prudente. “É o monumento da equipa. Sem o Kazu, talvez nem existisse equipa, os patrocinadores iriam embora”, temeu Jong-a-Pin, também falando à “The Athletic”.
Oliver e Benji não foram desenhados com cabelos brancos, a correrem lentamente por campos de futebol intermináveis, capazes dos feitos mais implausíveis com idade para já estarem quietos. Não, quando a banda desenhada do capitão Tsubasa foi lançada em televisão, em 1983, já Kazu Miura se aventurava no Brasil, a perseguir uma carreira que ainda dura.
Ele nasceu em 1967, no mesmo mês de Roberto Baggio, que se retirou em 2004, também grisalho, lento, cadente e admirado. A série animada de Tsubasa durou até 1986, coincidindo com o início de Miura. E o japonês ainda dura. Oliver é ele, e é real.
Ou então poderá ser um panda, uma atração meramente em exposição para chamar a atenção, crítica que lhe foi dirigida no Japão. “Tenho orgulho em desempenhar esse papel. É ok se for apenas um panda para atrair multidões. Os adeptos não viriam por um urso normal, vêm para ver um panda”, respondeu. O ‘Rei’ Kazu chega a Oliveira de Azeméis porque antes, em novembro de 2022, lá entrou SAD adentro (52,5%) o Onodera, grupo empresarial japonês dono do Yokohama FC. Agora venham então as enchentes.
* esta é uma versão reescrita e atualizada de um artigo originalmente publicado em fevereiro de 2020.