Futebol internacional

Bruno Fernandes é o Manchester United que ele quer vivo, cheio da vida com que ganhou a Taça de Inglaterra ao City

Bruno Fernandes é o Manchester United que ele quer vivo, cheio da vida com que ganhou a Taça de Inglaterra ao City
Michael Regan - The FA

Foi o internacional português, com a sua genialidade e afinco, a sobressair mais na final da Taça de Inglaterra que o Manchester United ganhou, por 2-1, ao rival Manchester City. Ele e Diogo Dalot conquistaram o troféu mais antigo do futebol e condenaram a equipa de Guardiola a ser a 13.ª que tentou, sem sucesso, revalidar uma dobradinha

Que melhor lugar haveria se não em Wembley, o templo de veneração dos ingleses que inventaram o futebol, para se constatar, pela enésima vez no interminável rol de vezes, como o futebol é imprevisível até quando damos coisas como certas: a bola estava no ditatorial Manchester City, a equipa mais opulenta do mundo a conservá-la e a cuidar dela, quem a tinha eram os pés de Kyle Walker, os menos hábeis a passá-la entre os cityzens mas nem isso o desculpa no passe que tentou colocar no Bernardo Silva livre e imperturbado que estava uns três metros à frente dele, à entrada do meio-campo do Manchester United. Os jogadores que menos erram passes destes falhariam este.

A tarefa era simples e fácil, nenhum dos jogadores estava pressionado e nesse esteio da forma de jogar de Pep Guardiola, um treinador que abomina não ter a bola, por isso treina os seus a passá-la com cuidado e eficácia, o City teve a primeira cedência: rapidamente o há anos combalido United, a viver a sua ressaca sem fim da separação de Alex Ferguson, teve Diogo Dalot a bater uma bola longa para as costas da defesa onde, à esquerda, Garnacho escapou à desatenção de Gvardiol que tão urgente teve de ser a recuperar desse prejuízo, só se preocupou em ganhar a frente ao argentino e não olhou para a baliza antes de tocar com a cabeça na bola.

Tirou-a das mãos de Stefan Ortega, o guarda-redes socorrista que também acorrera à emergência de um passo em balão, direto para a frente - o contrário da teia de pequenos toques e passes no ADN do Manchester City -, escolhido pelo United para castigar o tipo de erro raro no adversário que os red devils se atarefavam a tentar provocar na equipa de Guardiola. Na tarde para os treinadores surgirem, em Wembley, aprumados com camisa, gravata e fato, foi a encruzilhada de corpos montada por Erik Ten Hag, o mais tremido entre eles quanto ao seu futuro, a acertar na estratégia.

Mandou os seus de peito feito para campo, a pressionarem as receções dos adversários quando feitas de costas para a baliza. Sem receios nem pudores, o United pressionou a saída de bola do City, forçou um par de trapalhadas a Ortega por saber que o guarda-redes, os defesas, os médios, enfim, toda a gente tentaria sempre sair a jogar mesmo com pressão. Se o adversário os superasse, batiam à retaguarda, recolhendo os onze jogadores para trás da linha da bola. O amontoado de unidades encravou o jogo passador do campeão inglês, unidimensional e previsível durante 45 minutos.

E enquanto aplicou esse tampão, houve a “extraordinária influência” de Bruno Fernandes.

A descrição de vidente, feita antes da partida, é do próprio Guardiola, um tipo há muito de gatilho fácil para o elogio, aqui sem dúvida certeiro na qualificação do português que capitaneia o estrambólico Manchester United, oitavo classificado da Premier League terminada há instantes, mas a jogar bastante para lá do mediano nível apresentado durante a época (foram 14 derrotas na prova). Muita da culpa, em Wembley, foi de Bruno Fernandes

Calmo e imperturbável em cada ação que teve, a deixar um toque adicional e necessário às suas intervenções, coisa diferente de dar um toque a mais, porque ora atraía pressão para libertar alguém da sua equipa, ou tirava da frente um adversário para encontrar o passe que pretendia. Ou fingia, genialmente e com um engano de corpo, estar prestes a rematar à baliza numas coordenadas dentro da área onde 99,9% dos futebolistas só veriam o alvo.

No desfecho de uma jogada que teve tudo - calma e passes curtos num lado do campo, para dar o engodo de pressão aos jogadores do City, depois uma bola longa que virou a jogada para Garnacho -, o português acrescentou uma majestosa assistência quando a bola lhe vinha a jeito de ser ele a rematá-la para golo. Sem antes olhar, pelo menos quando o resto de nós olhámos para ele a fim de vermos se ele estava a olhar, Bruno viu Kobbie Mainoo a chegar nas suas costas e ofereceu-lhe a hipótese de fazer o 2-0 que o United levou para o balneário.

O retorno dos jogadores traria uma das tais previsibilidades mais previsíveis que o futebol pode dar por estes dias.

Justin Setterfield - The FA

Claro que o Manchester City voltaria ao campo cheio de vontade de exercer a sua opulência com a bola, sedento de encostar o rival da cidade à sua área para o manietar no seu enredo de passes infindáveis. Bernardo Silva tocava muitas vezes na bola, mas poucos eram os toques realmente frutíferos. Surpresa para ninguém, foi o que se viu em toda a equipa do City. Tanto por força da urgência dos campeões de Inglaterra em irem atrás da missão que 12 equipas antes deles tentaram, e falharam (ganhar a dobradinha em épocas consecutivas), como pela postura mais comedida do Manchester United, sem problemas em reunir todos os jogadores diante da sua área, a segunda parte da final foi de um futebol mono temático.

E mais aborrecido de se ver, necessariamente, mesmo com o singelo aparecimento de Erling Haaland na área, quando rematou a bola com estrondo contra a barra, além da tentativa de Kyle Walker, à bruta, se redimir do passe falhado: o capitão do City disparou, bem longe da baliza, um míssil que André Onana sacudiu espetacularmente da baliza. Os cityzens forçavam-se para cima do United, os sinais que Guardiola dava do banco de suplentes impeliam-nos a isso, ao intervalo entraram logo as fintas frenéticas de Jérémy Doku, um extremo que encara sempre o adversário que tem por diante, pouco depois acrescentaria a presença de Julián Álvarez na órbita de Haaland, para alguém espreitar nos espaços reduzidos dentro da muralha.

O argentino teve, em corrida, a melhor ocasião no desespero do Manchester City, melhor do que o remate rasteiro que parecia inofensivo de Doku, mas que as amanteigadas mãos de Onana deixaram escapar para dentro da baliza. Faltavam três minutos para os 90’, a final arrebitou, o amainar do ruído no estádio emanava a preocupação no ar pelo desfecho do jogo, mas há muito que o United estava confortável nas trincheiras, com nervo imperturbável.

A partida acabou na toada que muitos esperariam ver durante o jogo inteiro, os de vermelho encavalitados uns nos outros, todos a serem defesas ou trincos dentro ou pouco à frente da área, a morderem a relva, contra os de azul e os seus melhores jogadores a encostá-los contra o seu último reduto. O Manchester United resistiria e prevaleceria a lutar de faca nos dentes após ter jogado confiante e de peito feito, dois lados de uma lua personificada em Bruno Fernandes, o capitão que abrira o coração na véspera da final.

O jogador a quem Guardiola se rendeu pela criatividade - a frase foi “quando ele tem a bola, tudo acontece” - esteve a maioria do jogo, porque foram 97 minutos de final, a batalhar em duelos, ir à relva contestar bolas com carrinhos, pular para as reivindicar no ar e a correr em ajudas, coberturas e alentos a companheiros de equipa. No talento de Bruno Fernandes também há guerras e batalhas, ele é o capitão de um Manchester United por vezes moribundo, noutros dias em convalescença pelo passado, e, se lerem o que escreveu antes da final da Taça de Inglaterra, existe no português uma alma a pulsar pelos red devils como se o seu destino desde o berço fosse deixar a vida em qualquer campo pelo clube.

A berraria, os olhos cerrados de euforia e a sua agitação de criança ao levantar a taça no topo de Wembley refletem o amor de Bruno Fernandes pelo Manchester United, se não é amor algo parecido será, esperanças serão certamente porque o português disse “só quero que as minhas expectativas encaixem nas do clube” e reforço que “se perguntarem a qualquer adepto, ele dirá o mesmo”. São frases fortes vindas de um coração forte que fecha mais uma época conturbada num clube desnorteado que na véspera da final ‘deixou’ sair notícias de que seria o derradeiro jogo de Erik ten Hag, ganhasse ou não o troféu.

O careca neerlandês venceu, e pulou de alegria relvado dentro, a sua gravata vermelha a saltar-lhe para a cara. No final, era um distribuidor de abraços e mãos postas nas caras dos jogadores durante conversas professorais com adereços de despedida, o treinador parecia ter um diálogo pronto para ser dado a cada um deles. Ten Hag conquistou dois títulos dos humildes cinco juntados pelo Manchester United desde que Guardiola chegou ao Manchester City, em 2016 - e começou a colecionar os 17 troféus que já tem.

Venha o que vier, o esteio de um United que não descola da alergia à estabilidade será Bruno Fernandes, o próprio português o disse: “Este clube é mais do que uma coisa que posso meter numa citação gira nas redes sociais. É algo com o qual me preocupo profundamente.”

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