O cronómetro não estava para brincadeiras. O Barcelona perdia com o Tottenham, por 2-1, quando faltavam mais ou menos 10 minutos para acabar o Troféu Joan Gamper. Depois, um relâmpago feito de uma matéria que é incompreensível incendiou o relvado do Olímpic Lluís Companys e tudo mudou.
Sergio Reguilón, o então lateral esquerdo dos spurs e agora no Manchester United, não é propriamente um novato, um futebolista inexperiente. A primeira vez que tentou incomodar Lamine Yamal caiu na ratoeira, cometeu um erro primário diante de um virtuoso. Acreditou que o miúdo, aquela pérola com apenas 16 anos, acabaria por fazer o expectável e puxar a bola para dentro, por ser canhoto. O pé arrastado do menino, a posição do dançante esqueleto e o abrandamento do corpo, acusando um perfeito descaso, sugeriam que o defesa teria razão. E ele, como costumam fazer os jogadores especiais, acabou por fazer o inesperado. Depois, meteu uma trivela nos pés de Ferrán Torres, que empatou o jogo.
Pouco depois, voltou a enganar Reguilón, um inocente que acreditou na palavra da serpenteante carcaça de Lamine, e começou a jogada que anunciou a remontada. Já nos descontos, superou um imóvel e queixoso Reguilón, numa jogada que daria o 4-2. Talvez por isso Sergi Roberto lhe tenha dito no final para ir cumprimentar o lateral canhoto. Ele foi e saiu do relvado sem estridências.
Teria bastado isso – mais a estreia oficial pelo Barça aos 15 anos, nove meses e 16 dias contra o Betis, em abril –, para todas os dedos e gargantas e canetas e pensamentos magicarem algo grandioso para o garoto. Afinal, um esquerdino pela direita, como resistir, certo? Xavi Hernández, o treinador, estava deslumbrado: “Claro que estou surpreendido com o que ele faz com a idade dele, só tem 16. Está toda a gente, não sou exceção. Ele toma quase sempre a melhor decisão, que é o que faz a diferença no futebol. Temos grandes expectativas”, reconheceu o ex-futebolista.
Mas a história continuou. Na sexta-feira, o selecionador Luis de la Fuente colocou Lamal contra a Geórgia. Com 16 anos e 57 dias, o extremo transformou-se no mais jovem de sempre a atuar pela La Roja, destronando o substituído, Gavi, que o fez há não muito tempo, com 17 anos e 57 dias.
Insaciável, não se ficou pela estreia por Espanha. Não demorou muito a marcar, com a sua canhota, pois claro, celebrando euforicamente com Nico Williams, que tal como Lamal nasceu no país e é filho de imigrantes. E dobrou o recorde: passou a ser o mais jovem de sempre a marcar por qualquer seleção da história, superando a obra de József Horváth, um húngaro que, no início do século XX, meteu uma bola numa baliza com 16 anos e 12 dias, de acordo com o Mister Chip, um reconhecido mago da estatística que partilha dados no Twitter (ou no X).
O que é assombroso é que em maio Lamine Yamal disputou o Campeonato da Europa de sub-17, no qual a Espanha caiu na semifinal. O canhoto do Barça, fino fino e com um gostinho especial para ir para cima do adversário, marcou em quatro dos cinco jogos que aquela seleção disputou.
Natural de Esplugues de Llobregat, na província de Barcelona, Yamal vive em Rocafonda, cujo código postal é 08304. É por isso que ele celebra os golos mostrando o número 304 com as mãos, em homenagem a casa, contou recentemente o “El Periódico”. Por lá, é o herói da canalha, muitos deles descendentes de marroquinos e de pais oriundos de outras latitudes, uma presença que fez crescer por ali o peso do VOX, um partido de extrema-direita. O pai de Lamine é de Marrocos e a mãe da Guiné Equatorial. Por isso mesmo, ele poderia ter escolhido essas ou a seleção espanhola para atuar, talvez isso explique a pressa de la Fuente em convocá-lo. Mas a convocatória não parece injusta para quem vai sendo titular num clube como o Barcelona.
Ao diário espanhol já referido, a mãe de um miúdo maravilhado com o novo príncipe do bairro explicou a importância da ascensão da nova jóia do futebol espanhol. “É um orgulho, para os miúdos e para todo o bairro. Está certo que de vez em quando aconteça algo bonito no bairro, uma flor, ainda que seja muito de vez em quando. E se está relacionado com o desporto, melhor, porque é uma motivação extra para os mais jovens. Para que vejam que podem ter outra saída”, diz, referindo-se aos problemas do dia a dia, nomeadamente a circulação de droga e a criminalidade.
Quem conhece o rapaz, ainda nas nuvens certamente, as mesmas que se confundem com os homens de barba rija que vai superando com uma facilidade quase cruel, falam em alguém humilde, a quem a injeção de fama não afetou. Eduardo Galeano, o escritor uruguaio, num texto sobre Diego Maradona, explicou numa frase a arrebatadora capacidade da “exitoína”, a substância filha do êxito: “É uma droga muitíssimo mais devastadora do que a cocaína, ainda que as análises ao sangue e à urina não a detectem”. Fica o aviso.
Lamine Yamal Nasraoui Ebana nasceu em 2007, por isso terá pouca memória daquele avassalador Barcelona de Pep Guardiola ou da magistral Espanha campeã da Europa-campeã do mundo-campeã da Europa. Talvez seja bom que não tenha isso na lembrança. Que a memória continue com o estômago vazio. Que escape à exitoína. Que o pé esquerdo mantenha o fogo. Depois de um suspiro, é a única coisa que quem gosta de futebol pode desejar.
Quem apalpou as paredes do seu futuro foram os formadores em quem foi tropeçando nas escolas do Barça, onde entrou aos sete anos, proveniente do La Torreta, um clube de La Roca del Vallés. O “AS”, o diário desportivo madrileno, ouviu algumas dessas pessoas sobre o prodígio que conta mais jogos de futebol 7 do que de futebol 11. O jornalista do “Sport" Jaume Marcet, que conhece como ninguém as entranhas do futebol de base do clube catalão, também foi citado: em 151 jogos pelo clube, no futebol 7, Lamine Yamal fez 301 golos, enquanto no futebol 11 fez quase 70 em cerca de 120 jogos. Avassalador, mas ainda assim talvez não seja tão incomum, pois os grandes clubes têm a facilidade do recrutamento infinito e as diferenças são enormes.
Há quem refira, nesse passado não tão longínquo da formação do adolescente, que era necessário dizer-lhe para passar a bola aos outros, pois levava sempre a bola cosida ao pé. Outro formador, o muitíssimo conhecido Jordi Roura, admitiu que a capacidade para tomar decisões surpreendia os treinadores. Os exemplos e as histórias vão-se sucedendo no artigo do “As”, pelo que resta mencionar que são referidas expressões como “talento natural”, “pensa coisas que mais ninguém vê” ou “tem coisas de génio”.
Na terça-feira, o mundo do futebol, ainda de queixo colado ao chão, terá mais uma oportunidade para ver a eventual construção de um mito, no Nuevo Estadio de Los Cármenes, em Granada, contra o Chipre. Quem não puder assistir ao jogo, não deverá ficar muito preocupado, pois terá provavelmente os próximos 20 anos para o fazer. E desfrutar da arte do drible, tão ameaçada no futebol moderno.
Tem alguma questão? Envie um email ao jornalista: htsilva@expresso.impresa.pt