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Futebol internacional

Depois da derrota na Escócia, o futebol espanhol está no divã: “Estamos a dar a entender ao jogador que é fácil ir à seleção”

À vitória folgada com a Noruega juntou-se uma derrota inesperada na Escócia, por 2-0, com o novo selecionador espanhol a mudar oito jogadores de um jogo para o outro. Iker Casillas defendeu o treinador e tirou a pinta ao típico adepto, que está no céu e no inferno em dois segundos. Rodri queixou-se da conduta dos britânicos, de la Fuente garante que continua a acreditar que “este” é o caminho. Já Guti, um antigo mago do Santiago Bernabéu, foi mais duro e queixou-se da exigência

Hugo Tavares da Silva

Ian MacNicol

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A comitiva espanhola era toda frescura no Campeonato do Mundo. Luis Enrique, um homem cheio de convicções e com as convicções cheias, revolucionou ao sentar-se todos os dias numa cadeira, com headphones como se estivesse aos tiros no Counter Strike ou noutros jogos e desatou a falar de futebol e de histórias. Foi um fenómeno. Tinha convidados, respondia a perguntas, até às mais inusitadas. Nos bastidores de Doha uma ou outra conversa entre jornalistas sentenciava que sim senhor, era muito giro, mas que se algo corresse mal pegariam por ali. Dito e feito.

Depois do passeio contra a Costa Rica de Bryan Ruiz, um 7-0 assombroso, seguiu-se porventura o empate mais sedutor do Mundial contra a Alemanha (1-1), com Pedri e Jamal Musiala a encherem glamorosa e belamente o relvado do Al Bayt. O tiro de Fullkrug ouviu-se na tribuna de imprensa. O pior veio depois. A derrota com o Japão e a virtual eliminação durante esses 90 minutos soaram os alarmes. Algo não estava bem no reinado de Luis Padrique, como ficou conhecido o treinador, uma alusão a “padre”, pai, tal era o reconhecimento.

Apesar de tudo, esperava-se um afinar da máquina para o jogo com Marrocos, nos oitavos de final. Muita bola e muitos passes depois, a seleção espanhola não soube fazer sangrar a baliza de Yassine Bono, um apaixonado pelo River Plate que andava por lá em cantorias sul-americanas. Na decisão por pontapés de penálti, o homem apaixonado por Ariel Ortega, que até deu ao cão o nome Burrito, defendeu tudo e a Espanha caiu. Tragédia nacional. E que ideia era aquela de falar no Twitch?, não resistiram uns quantos.

Seguiu-se o lógico afastamento de Luis Enrique, que no Europeu alcançou as meias-finais do torneio (e deu um bigode à Itália, vencedora nos penáltis, triunfando depois na final de Wembley). Albert Luque, novo diretor das seleções de Espanha, decretou que haviam sido “escravos” daquela forma de jogar tão espanhola. O escolhido para ocupar aquela cadeira, que entre 2008 e 2012 testemunhou triunfos épicos, foi Luis de la Fuente, um treinador das camadas jovens de Espanha que procura a versatilidade e que na primeira convocatória, talvez para esse mesmo efeito, fez desaparecer 15 futebolistas que estiveram no Catar, a maioria por opção. A caminhada rumo ao Euro 2024 até começou bem, apesar das intermitências no jogo, com Kepa a vestir a capa de super herói, evitando golos dos noruegueses que não contaram naquela noite com Erling Haaland.

Espanha-Marrocos, no Catar 2022

Espanha-Marrocos, no Catar 2022

Clive Brunskill

O primeiro 11 de Fuente, no La Rosaleda, em Málaga, contou com Kepa, Dani Carvajal, Nacho Fernández, Aymeric Laporte, Álex Baldé, Mikel Merino, Rodri, Dani Olmo, Gavi, Iago Aspas e Álvaro Morata. Três-zero, cortesia de Olmo e de um doblete de Joselu, um estreante de 33 anos. Mais estranha foi porventura a rotação para o jogo com a Escócia. Apenas aguentaram três futebolistas no 11 de Fuente. Com um relvado ligeiramente alto, com ligações diferentes entre os jogadores, que já não jogam de memória, deu-se uma hecatombe: 2-0 para os escoceses, que homenagearam assim os antepassados que estavam muito bem vistos no futebol mundial, alimentando até a ideia magna de um clube como o Ajax. O bis desta vez foi de Scott McTominay, o médio do Manchester United.

O “El Mundo” escreveu que a Espanha se apresentou “sem futebol e sem fúria”, numa referência ao antigamente, em que à falta de futebol imaculado e belo se exibiam os dentes e se investiam em verdadeiros combates. O “El País” foi taxativo: “Espanha muda para pior”. A “Marca” publicou um texto que clamava “Espanha afasta-se da elite”. Já nas primeiras páginas desses mesmos desportivos, a que se junta a do “Mundo Deportivo”, imortalizam-se as palavras “naufrágio em Glasgow” e a pergunta “qual é o plano?”.

Nos tempos difíceis as palavras ganham outra força. Por isso, desenrolamos de seguida a verbalização da ressaca que denuncia uma preocupação aguda com o futuro da seleção espanhola. “No sábado, a Espanha era uma maravilha, íamos ganhar o quarto Europeu”, escreveu no Twitter Iker Casillas, uma lenda nacional. “Ninguém se lembrava de Luis Enrique. Hoje [terça-feira] o selecionador é uma ruína. A Espanha é um desastre. Não se classificam para o Europeu. E acabámos de começar… 🤦🏻‍♂️”

Guti, o mago canhoto que também encantou o Santiago Bernabéu embora em doses gourmet, foi mais duro. “Estamos a dar a entender ao jogador que é fácil ir à seleção. Não é fácil, não deve ser fácil”, atirava no acalorado debate no “Chiringuito”, um programa de televisão. “Tens de subir o nível no teu clube 10 vezes. Se passas essa mensagem, na conferência de imprensa, de que está tudo bem, que vão para casa, está tudo bem… Não se pode perder com a Escócia. Para ir à seleção é preciso muito mais. Está muito fácil. Não servem quatro jogos bons com a tua equipa para ir à seleção”, indignava-se. A fonte da ira mansa de José María Gutiérrez Hernández prende-se certamente com o discreto elenco escolhido para enfrentar os escoceses em Glasgow: Kepa, Pedro Porro, David García, Iñigo Martínez, José Gayá, Mikel Merino, Rodri, Dani Ceballos, Joselu, Yéremy Pino e Mikel Oyarzabal.

“Não estou contente com o resultado, mas quero ir um pouco mais além”, explicou-se, depois do desaire, o selecionador, que nas entrevistas introdutórias admitiu que ia procurar devolver uma faceta eclética ao jogo da La Roja, ou seja, dar mais ferramentas e ideias ao estilo habitual, deixando-se seduzir até pelo contra-ataque. Sobre o jogo na Escócia, continuou: “Estou satisfeito por reconhecer situações e gestos futebolísticos, e planos em que trabalhámos nestes poucos dias e que os reconheci no jogo. Jogar com a largura dos extremos, procurar o remate, procurar ações no espaço… Reconheci algumas dessas situações, mas faltou-nos acerto para dar sentido ao trabalho da semana. Mas continuo convencido de que este é o caminho”.

Ian MacNicol

Rodri, o médio do Manchester City, estava obviamente desiludido. “Eles meteram as duas bolas que tiveram. Nós tivemos duas bolas nos postes e muitas ocasiões na primeira parte. Hoje é esse dia em que fazes as coisas bem, mas a bola não entra. Há que melhorar os erros tontos que cometemos”, comentou. A certa altura, em declarações à “Viaplay”, o médio arrasou o jogo dos escoceses. “É a sua forma de jogar e há que respeitar, mas para mim é um pouco de lixo. Estavam sempre a perder tempo, a provocar, caem… Para mim, isto não é futebol. Para a velocidade do jogo, tens de continuar. O árbitro tem de assumir isto, mas não disse nada”, denunciou.

Já Mikel Merino, futebolista da Real Sociedad, foi mais contido. “É uma noite triste, mas a primeira parte foi muito boa. Eles são uma equipa dura, o campo não estava bem”, refletiu. Também De la Fuente comentou o estado do relvado, preferindo não se escudar aí. “Eles são jogadores de altíssimo nível, estão habituados a estas condições.”

A Escócia lidera assim o Grupo A, com seis pontos em duas jornadas, deixando a Espanha a três pontos. Noruega, Geórgia e Chipre completam o grupo que vai definir quem segue para o Campeonato da Europa em 2024, na Alemanha. Os espanhóis voltam a entrar em campo em setembro, numa jornada dupla, na Geórgia, a terra do virtuoso Khvicha Kvaratskhelia, e depois, em casa, contra o Chipre.