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Futebol internacional

Quando o Belenenses foi ao Maracanã ser o primeiro clube português a defrontar Pelé. Ou “Pela”, um “garoto” de 16 anos

Era um adolescente que pertencia ao Santos, clube do litoral de São Paulo, para onde a mãe o preferiu ter para fugir às tentações da então capital do Brasil. Mas foi como ‘emprestado’ a uma equipa mista que vestiu à Vasco da Gama, do Rio de Janeiro, que Edson Arantes do Nascimento jogou no Maracanã contra o Belenenses, primeira equipa portuguesa a defrontar o Rei. Marcou um hat-trick e o guarda-redes dos lisboetas até saiu da baliza para abraçar Pelé. A exibição surpreendeu o enviado especial do “Diário de Lisboa”, embora sem o impedir de se enganar no nome do imberbe craque

Diogo Pombo

Paulo Fridman/Getty

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Nesses idos tempos, o futebol tinha de povoar o imaginário, não havia como. O que não se vê tem de ser visualizado na mente: a televisão ainda era magia em forma quadrangular ou retangular que poucos tinham o privilégio de ligar à corrente elétrica, da rádio se escutavam os relatos pintalgados pela adjetivação e dependentes da inspiração dos donos das vozes que os narravam e sobravam os jornais, onde feitos eram floreados pela palavra escrita. O futebol, mais do que visto, era percecionado.

Em 1957, o áureo Belenenses elevava-se com o seu goleador Matateu, essa década e a seguinte tiveram os azuis a habitarem nos terraços do futebol de Portugal, o mais ocidental dos países abeirados do charco atlântico que, na margem oposta, banhava o país já muito providenciador de contos fantasistas e elogiosos da arte dos brasileiros a jogarem à bola. Nesses tempos, era comum ver-se equipas a fazerem as malas, serem rebocados por navios, atravessarem o oceano e desembarcarem em pequenas digressões para se medirem nos relvados locais frente a jogadores nativos.

Nesse ano, o São Paulo quis vangloriar a inauguração do seu futuro estádio com uma pequena pompa a quatrocentos e muitos quilómetros de distância. Organizou o Torneio Internacional do Morumbi, nome do seu novo recinto, convidando o Belenenses que era o recente terceiro classificado do campeonato português. A 19 de junho de 1957 ia jogar no templo do Maracanã, o predileto anfiteatro do futebol brasileiro, contra um ‘combinado’ de jogadores do Santos e Vasco da Gama, mas equipados à moda da equipa carioca - branco e com uma lista horizontal preta.

Na véspera, com postura de fatiota e engravatado no lóbi do hotel, Fernando Riera falou casualmente ao “Correio da Manhã” brasileiro, sendo observado por jogadores seus enquanto escreviam cartas “para os seus parentes”. Cheio de candura, as palavras eram mesmo de outros tempos. “Acredito que se o Belenenses produzir o que normalmente produz, isto é, sem fazer uma exibição excecional e também sem jogar menos do que pode, estamos em condições de agradar ao público carioca”, disse, apoquentado com o gáudio do público. Quando lhe perguntaram se conhecia o adversário, foi igualmente cândido: “Somente alguns jogadores, individualmente”.

Não especificou ou nomeou exemplos, o scouting à época era magia negra e esoterismo vindo do futuro e, porventura, o treinador desconheceria o “verdadeiro astro da nova geração nacional”.

Getty Images

A descrição dirigiu-se a Edson Arantes do Nascimento, então já apresentado na sua personna futebolística, Pelé. Um dos jogadores ‘emprestados’ pelo Santos ao combinado colado em cima da hora para defrontar o Belenenses, ele foi um dos focos de culpa para o jogo “não agradar ao reduzido público” presente no Maracanã, desgostado com o que antecipava ser renhido e não se concretizou. A equipa de brasileiros que “não teve tempo para se preparar convenientemente” ganhou por 6-1 e ao intervalo já havia um 4-0, com o cerne da goleada a ser atribuído a quem o Belenenses tinha na sua retaguarda. “Tivessem os lusos tentado a tática da defesa cerrada, não temos dúvida de que combinado iria encontrar alguma dificuldade para vencer”, descreveu o mesmo “Correia da Manhã”.

Pelé marcou três golos. Tinha 16 anos e a sua cara de olhos esbugalhados e salientes ossos das bochechas já estava ligada ao Santos, clube costeiro do estado de São Paulo para onde a mãe preferiu ver o filho para se afastar das tentações diletantes do Rio de Janeiro, então capital do Brasil.

Sendo um dos sete jogadores da “garotada” emprestada pelo Santos ao tal ‘combinado’, assim retratada pelo jornal “O Globo”, a Pelé diagnosticavam “uma extraordinária vocação de craque de futebol” não só pelo hat-trick, como “pela maneira hábil de passar e driblar” evidenciada. “Não demorará a merecer um lugar na seleção”, vaticinava o diário brasileiro. A confiar na prosa com que o “Correio da Manhã” do Rio de Janeiro narrou o quinto golo da “peleja”, marcado por Pelé, o vindouro estrelado do miúdo já era bem notório: “Dominando a pelota, desviou-se da esquerda para o centro, driblou vários defensores do Belenenses, e concluiu com um tiro alto que o goleiro Pereira não pôde defender”.

A descrição não parece honrar o golo de Pelé se comparada com a crónica publicada no “Jornal dos Sports”, do Rio de Janeiro. Mais detalhada e alongando-se nos pormenores - não fosse o diretor Mário Filho, jornalista cujo nome batizou o oficialmente o estádio carinhosamente apelidado para a eternidade como Maracanã, e irmão de Nelson Rodrigues, excelso cronista de futebol e mundividências -, a pintura quase telegráfica eleva ainda mais essa terceira marca deixada pelo garoto nas balizas: “Pelé desce pela esquerda levando o combinado ao ataque. É barrado. Volta com o couro para o centro da cancha. É apupado. Investe depois na raça. Finta nada menos do que cinco adversários, para concluir com grande êxito, colocando a bola no canto esquerdo da meta de Pereira. Vibra o Maracanã com a bela feitura do tento”.

Para embelezar o ato, o relato assinalou o gesto o guarda-redes do Belenenses que hoje faria tornaria humanos em mutantes, fazendo-os salivar que nem cães, cegos pela raiva de clubites ou rivalidades odiosas: “Decorridos do jogo vinte e três minutos, o goleiro Pereira para abraçar o jogador vascaíno”. Era o 5-0 para os brasileiros a meio da primeira parte, os estragos eram mais do que evidentes, a supremacia do talento de Pelé também já o era.

M. Stroud/Getty

Ele e os restantes rapazes do Santos jogavam com a camisola do Vasco porque a equipa principal dos cariocas viajava pela Europa, em digressão para mostrar as valências de um povo com a bola nos pés. Pelé ainda marcaria um golo em cada uma das três partidas que o ‘combinado’ ainda faria no torneio (que nem seria concluído por dificuldades financeiras e parca presença do público nas bancadas). Os olhos de Lopes do Souto, enviado especial do “Diário de Lisboa” no Rio de Janeiro, viram, pelo menos, o hat-trick que marcou ao Belenenses.

Ao enaltecer também o que ouviu, destacando a “carinhosa ovação que o público dispensou” ao Belenenses apesar da “exibição infeliz” perante a “movimentação admirável” dos jogadores brasileiros, o jornalista sublinhou “o dianteiro Pela”. Incapaz de acertar no nome do “garoto de 16 anos”, elogiou que a equipa “esquematizava os lances com uma desenvoltura tal, que qualquer espetador mal-avisado teria chegado à conclusão que o futebol é uma modalidade de fácil interpretação”. Mais referências a Pelé não houve na breve crónica do escriba português.

Na prosa mais analítica do “Jornal dos Sports”, um subtítulo dedicou-se ao “show de Pelé”, o rapazote dos “dezasseis anos e meio, exatamente”, autor de “coisas lindas”. O prélio do elogio fez-se sem cerimónias: “Um jogador admirável que espanta pela precocidade e nos faz desejar sinceramente que não se deixa transviar pelos elogios, que lhe fazem justiça mas não o endeusam. O jogador de football, mesmo nos píncaros da fama, está sempre com os pés na terra. Com habilidade e trabalho, Pelé poderá tornar-se, rapidamente, um dos maiores jogadores brasileiros de ataque”. Pouco demoraria a cravar à picareta o seu nome na história.

Nesse 1957 estreou-se pela seleção do Brasil, no ano seguinte conquistou o Mundial, deixando seis golos na Suécia antes de vencer igualmente o de 1962, jogando apenas no encontro inaugural (no qual marcou) que lhe deu uma mazela para não mais aparecer em campo nesse torneio. Em 1970, a meses de cumprir 30 anos, ganhar o terceiro Campeonato do Mundo. Pelo meio, perdeu na edição de 1966 contra Portugal ao sexto e último jogo que fez diante da seleção nacional.

E um mês após um jornalista português o legendar como “Pela”, o futuro ‘Rei’ futebolístico para os brasileiros defrontaria, pela primeira de sete vezes, o Benfica, embarcado na sua própria digressão ao país que dança o samba com uma bola. Pelé também foi Pelé, e marcou.