Estava Abel Ferreira em Salónica, numa das margens algo recônditas do futebol europeu e banhada por marés de atenção menor, quando lhe chegou o convite para atravessar o charco atlântico. Queriam-no em São Paulo para pegar no grande do Brasil que escolheu como sua a cor do tapete onde a bola rola, o ‘Verdão’ chamou-o e o português aterrou em outubro de 2020 no Palmeiras quando a humanidade ainda se confinava e as máscaras eram a face de todos. A reboque da histeria súbita com técnicos portugueses provocada pelo sucesso intenso em pouco tempo de Jorge Jesus no Rio de Janeiro. A descoberta da pólvora tocou também em Abel.
Três dias contados após ser apresentado, a sua primeira versão do Palmeiras ganhou, por 1-0, ao Red Bull Bragantino. Com essa tão repentina chegada ao clube “só houve tempo para conversar” com os jogadores, disse então o defesa central Luan. Foi a primeira de 102 vitórias de Abel no Brasil em 177 partidas espalhadas por quase duas épocas e meia do treinador quase sempre banhado, em campo, pelo fato de treino do clube, equipado a rigor da profissão. Esta quarta-feira, nem precisou que um resultado do Palmeiras lhe confirmasse o reinado oficial no Brasil que só apareceu depois de Abel escalar ao cume da bola da América do Sul.
Com a derrota do Internacional frente o América de Minas Gerais, o treinador português garantiu o título de campeão brasileiro antes sequer de ter de pisar a relva artificial do estádio carinhosamente apelidado de Arena Palestra Itália, contra o Fortaleza, para a matemática do Brasileirão lhe sorrir por antecipação. A quatro jornadas do fim, Abel Ferreira é campeão do país onde o futebol se cozinha com avental de ginga e mora a técnica mais malabarista para tratar uma bola. Era o singelo título que ainda escapava ao português de 43 anos, a cumprir a 12.ª temporada enquanto treinador.
Ao fim dos quatro meses inaugurais de vivência no Brasil, o português já se tinha agarrado à Copa do Brasil e ao maior caneco do continente, sentindo o peso à Copa das Libertadores na qual ganhou, na final, ao Santos. O entusiasmo do sucesso vindo em tão pouco tempo foi logo procedido de um trambolhão para frenar os ânimos quando, no arranque de 2021, o Palmeiras perdeu três finais consecutivas - das Supertaças do Brasil e da América do Sul, além da decisão do campeonato paulista. Sobrolhos arregalaram-se em torno do técnico no país onde as perguntas nas coletivas (conferências de imprensa) nada devem à timidez.

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Ainda nesse ano, contudo, guiaria a equipa à revalidação da Libertadores, batendo o Flamengo em 120 extenuantes minutos, dando ao Palmeiras duas das três taças destas que guarda no museu. A primeira, lá posta em 1999, serve para metaforizar a história do treinador português no clube: esse primeiro título foi erguido por Luiz Felipe Scolari, histórico de bigode na cara que Abel agora iguala em número de títulos (seis) conquistados no ‘Verdão’. Ambos estão apenas atrás de Oswaldo Brandão (sete) e Vanderlei Luxemburgo (oito), o homem que substituiu no comando do Palmeiras.
Já este ano, Felipão salpicou com um trago amargo a receita que vai sendo confecionada pelo português, eliminando-o nas meias-finais da Libertadores e impedindo-o de montar uma terceira ofensiva à taça mais cobiçada da América do Sul. “Quem vive da história é o museu. Quem ganha são os jogadores”, diria o português na véspera da segunda conquistada do troféu. Esta época, Abel começou por vencer o campeonato estadual de São Paulo e a Supertaça do continente (Recopa) antes de afinar a estabilidade do Palmeiras no topo do Brasileirão.
Nas últimas semanas, com a equipa a cortejar a previsibilidade da iminência do título, o português repetiu alguns esgares da sua versão assertiva, lacónica e de feições algo taciturnas perante as questões dos jornalistas: confrontando com uma eventual ansiedade pelo título, atirou um “são vocês que sempre falam nisso” e um “é uma falta de respeito para quem vem logo atrás”; quando lhe perguntaram, em jeito de elogio, pelo pouco que se notou que o Palmeiras estava com menos um jogador em campo frente ao Botafogo, após uma expulsão, respondeu que “por isso sou treinador e vocês, jornalistas”. E acrescentou: “se quiserem, vão até à CBF [Confederação Brasileira de Futebol], façam o curso e sentem-se no meu lugar”.
Nesta redonda data em que se cumpre o segundo aniversário da chegada de Abel Ferreira ao Brasil, o treinador, feitios e estados de humor à parte, trepa ao cume do futebol onde os pares de pés talentosos caem das árvores aos magotes. Ainda antes de confirmar o título, Ednaldo Rodrigues, presidente da CBF, já o confirmara que é um dos nomes a serem considerados para a sucessão de Tite na seleção brasileira. “Não temos preconceito com a nacionalidade”, garantiu quem decide sobre a equipa nacional que só foi orientada por estrangeiros em três amigáveis, já lá vão muitas décadas (1944 e 1965).
Só o facto de, publicamente, ser uma hipótese assumida, serve de condição que enaltece mais ainda o rasto do trabalho feito por Abel em 730 dias no Brasil