Por volta das 17h18, as futebolistas da seleção portuguesa começaram a encaminhar-se para um dos relvados da Cidade do Futebol, em Oeiras. Umas ajeitavam o cabelo, outras trocavam palavras. No campo já estavam colocadas as marcas e aquelas espécies de cabides que fazem o papel de alguém imaginário para mobilidades, movimentações e exercícios futuros com o play-off rumo ao Campeonato do Mundo, em 2023, no horizonte. Algumas atletas interromperam a rota original para cumprimentarem Humberto Coelho, que estava ali perto, ao telefone.
No chão, a beijar a relva, descansa uma tarja enorme que exibe a mensagem: “Denuncia! Em integridade.fpf.pt”. As jogadoras da seleção nacional juntaram-se assim para apoiar as jogadoras do Rio Ave que acusaram um treinador de assédio sexual, dando a conhecer uma plataforma. Essas futebolistas e não só, já que haverá quem calou, quem teve medo de dar conta de uma situação que não é normal ou adequada. A tal plataforma – integridade.fpf.pt – visa participações no âmbito da manipulação de jogos de futebol, futsal ou futebol de praia, assim como de assédio sexual, auxílio à imigração ilegal ou outra violação a direitos humanos de agentes desportivos. A denúncia é anónima.
A testemunhar aquele momento estavam algumas câmaras de televisão e cerca de 15 elementos da comunicação social. Às 17h25, a tarja foi erguida pelas mãos daquelas jogadoras que tocam agora no céu do futebol feminino. “É para estar sérias”, lembra uma. O ambiente na seleção parece saudável e leve. Apesar das notícias lamentáveis, ninguém pode levar a mal os sorrisos e brincadeiras de quem está com amigas ou que, ao lado de amigas, sonha chegar a um Campeonato do Mundo, algo inédito no futebol feminino em Portugal.
O tom mais sombrio vem a seguir, no encontro entre as capitãs da seleção e a imprensa. “É uma tristeza profunda”, começa por dizer Dolores Silva, que tem 141 internacionalizações na bagagem. “Não só afeta o futebol como vários setores da nossa sociedade. Quero dizer que estamos solidárias com todas as vítimas, com todas as que foram [visadas] e as que ainda não falaram. Apelamos a que consigam ter a coragem que estas meninas tiveram para denunciar. É um aspeto triste, tem de ser rapidamente eliminado da nossa sociedade.” Os traços no rosto denunciam peso.
Dolores Silva já atuou 141 vezes pela seleção
Hernani Pereira | FPF
Como uma das atletas mais experientes do nosso futebol, Dolores aceita a responsabilidade de estar por dentro do assunto, de alinhar em campanhas e de mostrar a solidariedade por quem sofre com esses ataques e comportamentos desavindos. Afinal, “um dia são essas colegas, outro dia podemos ser nós”. A média do Sp. Braga, de 31 anos, não subestima a importância de campanhas e iniciativas, “pode dar alguma coragem às pessoas que não conseguiram falar, por receio ou medo”. É um tema sensível, admite. “Como é óbvio, temos o objetivo de ajudar a eliminar tudo o que afete de forma triste o nosso futebol.”
Sílvia Rebelo, a defesa do Benfica com 119 internacionalizações, reforçou a mensagem de Dolores. “Estamos solidárias, encorajamos todas as pessoas que sofrem. Isto não é só no futebol, é na sociedade. Infelizmente, aconteceu agora no futebol. Mas damos-lhes força e coragem para não se calarem”, afirmou a futebolista de 33 anos.
Ana Borges, de 32 anos e com 149 internacionalizações, passou muitos anos no estrangeiro e voltou a Portugal quando o futebol feminino começava a vestir-se de uma maneira diferente, mais importante e capaz. Questionada pela Tribuna Expresso se ao longo destes anos todos foi sempre tratada por treinadores e dirigentes de forma adequada, a ala direita que é avançada na seleção admite que sim: “Felizmente, comigo sempre foi adequado”. E as notícias dos últimos dias surpreendem-na? “Se calhar não me surpreende tanto. Cada vez mais se vê, não só no futebol e no desporto, em todas as modalidades e não só. Agora, claro está, é um momento triste, é uma situação desagradável para quem a vive. Só podemos desejar sorte e dar o nosso apoio.”
A futebolista do Sporting fez um apelo às vítimas de assédio sexual. “Não se calem, denunciem, não tenham medo. Entendo que, por vezes, haja esse receio, mas existe a plataforma para o fazer de forma anónima, não têm de se expor. São situações muito delicadas. Da minha parte, em tudo o que puder ajudar…”
Questionada se considera que a profissionalização transversal do futebol feminino poderia proteger as jogadoras em casos destes, Dolores Silva foi afirmativa. “Poderia acelerar [o processo] talvez, sim, mas acho que isto é uma coisa que está muito intrínseca na nossa sociedade e não tem só a ver com o amadorismo, tem a ver com o ser humano em si”, reflete.
Ana Borges tem 149 internacionalizações
Hernani Pereira | FPF
E acrescenta: “Já vem do passado, de há muitas décadas. Cabe-nos a nós tentar melhorar e tentar fazer com que cada vez esteja menos presente este tipo de assunto que entristece muito o que é o futebol e o desporto e a sociedade como um todo”.
“Falta-nos este Mundial”
A primeira cueca da tarde, nos meiinhos, sofre-a Kika Nazareth, a virtuosa que enche de esperança quem aprecia a estética e a beleza no jogo de futebol. Mas a influência e os números também começam a aparecer, por isso a jogadora do Benfica começa a encantar tudo e todos. Os risos ecoam na Cidade do Futebol, afinal uma bola por entre as pernas é a forma mais diabólico-ternurenta de atiçar um grupo.
O robusto segundo lugar no Grupo H, só atrás da Alemanha, permitiu às portuguesas a presença no play-off, com vista ao próximo Campeonato do Mundo, em 2023. Primeiro vem aí a Bélgica. Depois, se superadas as belgas, a Islândia (11 de outubro).
Dolores Silva garante que o foco está elevado. “Sabemos da importância deste jogo, do que representa para nós. É um momento importante para a nossa seleção”, diz, num tom desafiante, ambicioso. “Sabemos que a Bélgica é uma seleção forte, esteve presente no Campeonato da Europa, conseguiu bons resultados, chegou aos quartos de final. É uma seleção que vai com tudo.”
Portugal só tem uma fórmula, avisa: “Encaramos este jogo com o máximo respeito pelo adversário, mas, acima de tudo, com respeito pelo que somos e pelo que temos construído, mantendo os pés assentes na terra, dando tudo para representar Portugal da melhor maneira possível”. É que, desabafa, “é uma imensa alegria podermos representar o nosso país numa fase tão importante".
Hernani Pereira | FPF
A expressão “mata-mata” é referida por Sílvia Rebelo, um termo que nos faz recuar ao início do século, quando Luiz Felipe Scolari tornou este país um pouco mais apaixonado pela seleção. “Sabemos que é uma Bélgica competente, mas só dependemos de nós e queremos muito estar no Mundial. Vamos fazer tudo o que está ao nosso alcance”, promete.
Estar nesta fase, apesar de tudo e de todas as incertezas, é algo “especial”, admite a central dos atuais campeões nacionais. “Todas as seleções querem estar no Mundial e trabalhámos muito. Estar no play-off é mais uma oportunidade”, anima-se, explicando que uma eliminatória a apenas uma mão não permite corrigir erros ou emendar ideias. “Estamos conscientes do momento em que estamos. Portugal está bem, vai ser um bom jogo.”
Ana Borges, ciente da finitude de tudo, parece dar um beijo na testa da nostalgia. “Estar presente num Mundial seria um acabar ou finalizar uma carreira na seleção no mais alto patamar. É isso que nos falta, é aí que queremos estar.” Se entrar em campo na quinta-feira, em Vizela, a futebolista que passou por Chelsea e Atlético de Madrid alcança as 150 internacionalizações.
Borges lembra que as jogadoras que por ali estão prestes a pisar o relvado para mais um treino já todas jogaram em fases finais de Campeonatos da Europa, seja sub-17, sub-19 ou na seleção principal. “Falta-nos este Mundial. Portugal está a crescer, temos equipa e potencial enorme, não só aqui mas na formação. Estar num Mundial só ia colocar Portugal onde merece.”
Por isso tudo, pelo sonho e pela oportunidade de testemunhar o crescimento do futebol jogado por mulheres, tudo a Vizela, na quinta-feira, às 18 horas. “Contamos com o apoio dos nossos adeptos”, diz Dolores. “Da última vez que estivemos em Vizela correu muito bem, esteve muita gente presente. Toda a gente é bem-vinda, sejam meninos, meninas, pais, mães. Contamos com toda a gente, oxalá possamos fazer um grande jogo.”