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Treinador acusado de assédio sexual por jogadoras do Rio Ave foi contratado pelo Famalicão apesar de o clube ser alertado para as denúncias

Miguel Afonso, recentemente contratado pelo clube minhoto, trazia com ele histórias obscuras dos tempos em que treinou o Rio Ave: várias jogadoras acusaram-no de assédio sexual, noticia, esta quinta-feira, o jornal “Público”. Os responsáveis do Famalicão terão sido alertados para o perigo da contratação, mas nada fizeram. Federação Portuguesa de Futebol vai instaurar um processo disciplinar

Expresso

PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty

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Miguel Afonso, o recém-contratado técnico da equipa de futebol feminino do Famalicão, é acusado de assédio sexual. A questão não é nova. O antigo treinador do Rio Ave acumulou este tipo de denúncias no clube de Vila do Conde, escreve o “Público”, e foi com alguma estranheza que a notícia da sua contratação foi acolhida no seio do grupo minhoto. Tanto mais que, supostamente, os dirigentes do Famalicão terão sido alertados para os riscos.

“Um boato, sem qualquer tipo de prova”, foi o que disse Samuel Costa, recém-empossado diretor-desportivo do Famalicão e responsável por sugerir o nome de Miguel Afonso para orientar a equipa feminina, em resposta ao mesmo jornal. “Ligaram-me com insistência na semana em que o treinador foi contratado para que fosse despedido. Questionámos naturalmente o técnico e ele garantiu-nos que era tudo mentira. Nós acreditámos”, admite o dirigente. A Tribuna Expresso tentou contactar o Famalicão, mas, até ao momento, não obteve resposta.

Foi em Vila do Conde, na época 2020/21, que vieram ao de cima as primeiras suspeitas de comportamento inapropriado do técnico. A equipa feminina tinha acabado de ser criada e o treinador estava a conhecer as novas atletas. “Gostas de mulheres e de homens?” foi a primeira pergunta que Afonso terá colocado a Maria (nome fictício), de 19 anos. Houve mais mensagens e, veio a perceber-se, dirigidas a outras jogadoras. Chegado o fim da época, com várias atletas a ameaçar sair, quem foi embora foi mesmo Miguel Afonso, para encontrar novo local de trabalho em Ovar.

O treinador, de 40 anos, começou a trabalhar com o futebol feminino no pequeno clube Bonitos de Amorim, em 2019-20. Na temporada seguinte, estava no Rio Ave, onde muitos dos episódios suspeitos, relatados pelo “Público”, aconteceram. Antes de ingressar no Famalicão, Afonso treinou a Ovarense.

Por vergonha, Maria não falou com ninguém sobre o assunto durante algum tempo. Veio a perceber então que também Joana, da mesma idade, era vítima do treinador. “A abordagem dele é quase sempre a mesma”, contou Joana ao mesmo diário. Maria admitiu que, no início, achava que era só com ela. “Chegou ao ponto de me pedir vídeos, dizendo que gostava de ver os meus movimentos corporais”, admite.

“Passou a ligar-me várias vezes ao dia. Tentou combinar coisas comigo (…), mas eu recusei sempre de forma educada e nunca agressiva”, contou Joana. Nos treinos, não se notava qualquer alteração nos métodos de trabalho ou no tratamento das diferentes futebolistas. A jogadora prosseguiu o relato: “Começou também a ligar-me várias vezes ao dia para falar de assuntos aleatórios. Como as perguntas eram estranhas, partilhei a situação com os meus pais”. Um dos telefonemas foi ouvido pelos pais de Joana. Foram eles que lançaram o alerta: nada daquilo tinha a ver com a relação profissional entre treinador e jogadora. A atleta contou a Miguel Afonso que os pais tinham conhecimento de tudo e o assédio terminou.

No entanto, Joana começou a sentir-se descriminada a nível desportivo: “Ele tentou afastar-me da equipa e fez reuniões com os responsáveis do clube, inventando coisas que eu não tinha dito”. Alegadamente, Afonso acusava Joana de perturbar a equipa, dizendo que a jogadora era “um elemento que não fazia falta ao grupo”. Nos jogos seguintes, a atleta não foi sequer convocada.

Afonso recorria muitas vezes ao WhatsApp para comunicar com as jogadoras. Existem inúmeras mensagens áudio e escritas que comprovam as acusações de assédio. O jornal “Público” tentou falar com o técnico, que disse apenas: “Não sei onde querem chegar com isso e que tipo de conversas são essas”. O jornal garante que a direção do Famalicão tem conhecimento do que se passou em Vila do Conde, mas não fez nada até agora. O presidente do clube, Jorge Silva, terá sido informado dos factos três dias depois de anunciar Miguel Afonso como treinador da equipa de futebol feminino. Silva recusou comentar o assunto.

A 1 de julho de 2022, entrou em vigor o Regulamento Disciplinar da Federação Portuguesa de Futebol. Pela primeira vez, estão previstas medidas específicas para casos de assédio sexual no futebol (artigos 126-B e 15-A). A suspensão para quem for considerado culpado pode ir de três meses a um ano. No entanto, no regulamento, apenas são referidos “dirigentes” e “jogadores”. Todavia, sabe-se que a atitude dos treinadores encaixa na designação “dirigentes”, como é referido no artigo 183.

Em comunicado enviado à "TSF", o Conselho de Disciplina da FPF declarou que “irá abrir um processo disciplinar” ao caso, enaltecendo que o regulamento da entidade que organiza as provas de futebol feminino no país “tem punições específicas para casos de assédio”.

“Informar a FPF de uma situação de assédio não tem uma implicação direta em termos de processo penal”, diz Carla Ferreira, da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV). A gestora técnica, que considera a medida da FPF importante, prossegue: “Pode existir um processo penal paralelo a uma comunicação à federação responsável e às sanções desportivas que venham a ser aplicadas”.

Carla Ferreira refere a importância de existir, ao mesmo tempo, uma ação penal da parte da justiça, para que o comportamento do cidadão – e não apenas do desportista – seja punido. “Uma coisa é ter um comportamento indesejado; outra coisa é ter comportamentos indesejados na forma física, que passam mais por coação sexual e que normalmente são tratados de forma diferente pela justiça”, acrescentou.

A dirigente da APAV lembra que estes casos não acontecem apenas no futebol e que é necessário inserir um caráter formativo no dia-a-dia das atletas. “Muitos desportistas sofrem este tipo de violências e acabam por não as denunciar, também por receio de eventuais represálias que afetem o progresso da sua carreira desportiva”, afirmou Carla Ferreira, que acrescentou: “As vítimas muitas vezes acham que isto é normal, por ser a forma de ser ou estar da pessoa em causa, que estão a exagerar um bocadinho ou que ninguém vai acreditar, face ao estatuto do suposto agressor”.