O mercado de transferências do futebol masculino já fechou, movimentou milhões e marcou muitas das conversas deste verão. E não foi o único. No futebol jogado por mulheres os clubes também se mexeram, mas, se houve algo que não passou de um lado para o outro na mesma quantidade que no masculino, foi o dinheiro.
Serão negociações diferentes?
“O valor dos salários, duração, valor da cláusula de rescisão, bónus coletivos e individuais”, são estas as condições que, segundo Raquel Sampaio, fundadora da Teammate Football Management, ficam em contrato. “Normalmente partimos de uma minuta standard com cláusulas iguais, e que são iguais tanto para o masculino como para o feminino, e discute-se as cláusulas variáveis a partir daí”.
Há outras condições a serem consideradas no caso do futebol feminino, como “a questão da casa, dos estudos, voos, refeições, carro, etc.”. Neste caso as negociações variam de país para país ou até mesmo entre clubes.
“Existem clubes que, além do contrato, ainda “oferecem” todos estes ‘extras’ às jogadoras, existem outros que podem proporcionar menos coisas ou até, nenhuma delas. Depende das realidades. Como os salários ainda são baixos, é com este tipo de coisas que os clubes tentam compensar, acredito que isto no futebol masculino não exista, pelo menos, no que às equipas principais diz respeito”, explica Raquel Sampaio, responsável pela primeira agência de jogadoras em Portugal, à Tribuna Expresso.
Com algumas diferenças, mas a base dos contratos masculinos e femininos acaba por ser parecida. Em termos de cláusulas, salários ou bónus, a única diferença está mesmo na quantidade de zeros à direita que os primeiros têm e o futebol feminino não tem. Diferença essa que se arrasta aos valores das próprias transferências.
Segundo um relatório publicado pela FIFA, foram registadas 54.739 transferências, em 2021. 19.372 envolveram homens e mulheres profissionais e as restantes foram no futebol amador. Do lado masculino, o número representou um aumento de 5,1% em relação a 2020. No feminino, a modalidade continuou a ganhar força, com o número de clubes envolvidos em transferências internacionais a aumentar de 347 em 2020 para 414, um aumento de 19,3%.
Do número total, apenas 1.304 transferências correspondem ao futebol feminino, mas isso representa um aumento de 26,2% em comparação com o ano anterior, que também tinha registado um aumento de 23,3%. O crescimento também se deu a nível financeiro. Os gastos em taxas de transferência no futebol profissional feminino aumentaram 72,8%: de 1,2 milhões de euros em 2020, passou-se para €2,1 milhões em 2021.
O relatório fala até do contraste com o jogo masculino, que viu as taxas de transferência diminuírem pelo segundo ano consecutivo em 2021. Mas, na verdade, o maior contraste é este: foram gastos €4,86 mil milhões nas transferências de jogadores homens em 2021.
Embora tenha havido um aumento do público e das receitas do jogo feminino em todo o mundo, os valores das transferências continuam a uma distância enorme dos praticados no futebol masculino.
Porquê?
Antes de tudo, a pergunta surge por se ter colocado o futebol feminino e o masculino em pratos distintos da balança. E é esse o primeiro problema. “Nós não nos podemos comparar com o futebol masculino ou a envolvência da indústria que é o futebol masculino. A indústria não é, claramente, a mesma, [a feminina] não move milhões. É um caminho que teremos que fazer, mas acho que não vamos chegar sequer perto dos valores das transferências do masculino”, diz Edite Fernandes, ex-internacional portuguesa, à Tribuna Expresso.
Como explica Raquel: “É comparar o incomparável. Eles geram receitas de milhões, enquanto o futebol feminino, desculpa a expressão, ‘de tostões’”.
O que não apaga o facto de os valores continuarem a ser bastante baixos. Um dos primeiros motivos que a própria FIFA já mencionou anteriormente prende-se com as transferências a custo zero. Um exemplo recente é o de Jennifer Hermoso, uma das candidatas ao prémio “The Best” em 2021. A antiga jogadora do Barcelona foi, este verão, para o clube mexicano Pachuca a custo zero.
Agustin Cuevas
“Os contratos são mais curtos, logo as jogadoras podem mover-se com maior frequência, não havendo valores de transferência envolvidos nestes movimentos, não existe cash flow entre clubes. E isto leva-nos às fracas receitas”, explica Raquel Sampaio.
E os contratos mais curtos são outro dos motivos que diminuem os valores das transferências. “Ainda existem muitos jogadoras a não renovarem contratos, ou a fazerem contratos somente de um ano ou dois anos, isso acontece muito no futebol feminino, não vemos contratos de jogadoras por três anos ou mais. Estão sempre em movimento e os clubes acabam por não conseguir mantê-las por valores que seriam expectáveis”, acrescenta Edite.
À partida, fica a ideia de que a situação das jogadoras não será a mais segura, visto que de pouco em pouco tempo têm que tomar uma nova decisão em relação ao futuro. Mas este método também tem as suas vantagens.
“Um contrato mais curto é menos seguro no que às lesões, por exemplo, diz respeito. Se tiveres uma lesão grave e tens um contrato de apenas um ano, isto pode fazer com que o clube não queira renovar contigo, podendo levar a atleta a ficar sem clube. [Mas] é mais vantajoso, pois com o crescimento que o futebol feminino está a ter é muito difícil prever que condições vão ser possíveis negociar a curto/médio prazo. Se negociarmos hoje um contrato de três, quatro, cinco anos, o clube vai basear-se na realidade de hoje e naturalmente, este contrato vai ser negociado por baixo. Se negociarmos daqui a três anos para esse mesmo ano, com certeza vamos negociar um contrato melhor”, afirma Raquel Sampaio.
A evolução e crescimento do futebol feminino são, assim, a peça-chave para que estes valores aumentem. E a prova disso é Keira Walsh. A seleção inglesa marcou presença na final do Campeonato da Europa em 2009, onde perdeu por 6-2 contra a Alemanha. 13 anos, muito crescimento e uma forte aposta depois, as mesmas seleções chegaram à final do Euro 2022 e desta vez foi a Inglaterra a vencer. Walsh foi considerada a melhor jogadora dessa partida.
Há pouco mais de uma semana, o Barcelona bateu o recorde de transferências e anunciou a contratação dessa campeã da Europa - por 460 mil euros. É pouquíssimo se, no avultado contexto do futebol, for posto ao lado dos valores praticados no mercado dos homens cuja profissão é jogar futebol. Porém, também é um dos primeiros sinais de que as coisas podem estar a progredir.
Sarah Stier - UEFA
Para Raquel Sampaio, o que levou a este valor é simples: “A valorização da jogadora e a vontade de todas as partes. A vontade do Barcelona em querer contar com a jogadora, a vontade da jogadora em querer transferir-se para o Barcelona e o Manchester City, mesmo não querendo abdicar dela, saber que vai ter que abdicar, pois é um valor irrecusável e histórico para o futebol feminino. Estou confiante que este foi o kick-off. Felizmente, para o desenvolvimento da modalidade, vai ser cada vez mais comum existirem transferências com estes valores e até superiores. Não vai ser imediato, mas vai ser mais recorrente”.
Mas falar da transferência de Keira Walsh é falar de dois dos países onde o futebol feminino mais tem crescido na Europa e os resultados têm sido mais visíveis. Em Portugal, e numa liga onde existem clubes profissionais e amadores, a situação é um pouco diferente para as jogadoras. É por isso que Edite Fernandes considera que antes de se fazer uma comparação com o lado masculino, e de forma a aprender e crescer, é necessário olhar para o futebol feminino de outros países europeus.
“A base de recrutamento [em outros países] é muito grande em relação a nós, apesar de trabalharmos a formação e estarmos a trabalhar bem, mas depois falta-nos ali qualquer coisa para combatermos com esses países. Eu acredito que estamos em crescimento e em evolução, mas ainda vamos demorar algum tempo para podermos chegar lá”, diz, olhando para esse “lá” como o top 10 europeu ou colocando jogadoras no topo da modalidade.
No fundo, trata-se de fazer o caminho que outros países já fizeram com sucesso para que as jogadoras portuguesas possam ter um valor superior. Como as inglesas valorizaram depois do percurso todo que fizeram no Euro.
“A Inglaterra também esteve muitos anos para conseguir chegar onde chegou este verão. Temos que olhar para os outros países, olhar um pouco para aqueles campeonatos mais fortes da Europa. A Espanha tem uma liga totalmente profissional e estamos aqui ao lado. Temos que tentar, dentro daquilo que é o nosso registo e o trabalho que temos vindo a desenvolver, trabalharmos um bocadinho mais”, continua a ex-jogadora.
Esse caminho faz-se pegando, por exemplo, na história recente.
“O que aconteceu neste último Euro, em Inglaterra, acontecer mais vezes. O que aconteceu no Estádio da Luz, quando o Benfica se sagrou bicampeão, acontecer mais vezes”, defende Raquel Sampaio. “Falta mudar mentalidades, tornar o futebol feminino profissional, criando e dando as condições necessárias às protagonistas. Falta colocá-las a jogar mais vezes, onde merecem, nos principais palcos. Falta pensar e criar um produto atrativo, tornando-o num produto com valor, que as pessoas queiram assistir. Falta fazer com que as pessoas paguem por ele. Como consequência, isto vai gerar parte da receita que o futebol feminino precisa”.