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Futebol feminino

As jogadoras interessam e importa, muito, ter Kika Nazareth

À hora de jogo, o Sporting ganhava por 0-1 e aí saiu do banco quem é cada vez mais inexplicável que comece um jogo lá sentada. Quando os 19 anos de descaramento técnico e flagrante aptidão para desequilibrar um jogo de Francisca Nazareth entraram em campo, o Benfica virou outra equipa. E, numa final com prolongamento, conquistou (4-1) a Supertaça de Portugal

Diogo Pombo

PAULO CUNHA/Lusa

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Paula é o seu nome e está sentada na bancada do estádio. Não se digna a identificar-se com um apelido, a jornalista do Canal 11 acerca-se e o espampanante é o verde que tem vestido, é do Sporting, veio dali “perto” das redondezas de Leiria. Pouco lhe dizem as jogadoras, “não me interessa, de facto”, foi pela bola tocada por mulheres que trocou um euro pelo bilhete e via televisão é impossível auscultar-lhe sintomas de sarcasmo, nada, parece ser factual que Paula quer é o jogo e não ver as “nossas” jogadoras a “imitar muito os homens”.

Pluraliza-se, fala que “estamos a cair no erro”, passa a indicativa, diz que “fazem aquele teatro, a caírem para o chão, a retardarem a bola”, depois já é conclusiva: “isso não valoriza nada o futebol feminino que tem de lutar tanto para ser valorizado”. A crónica de uma final que não se vulgariza nesses artifícios futebolísticos, imunizando-se contra manhas, começa com Paula porque a factualidade a que ela se refere está no que as mulheres nada têm a ver: o esfarelado e seco relvado do Municipal de Leiria, estádio onde as equipas nem são autorizadas a treinar nas vésperas.

Deu-se à decisão da Supertaça de Portugal feminina um tapete nem perto de se coadenar à ação que acolhe. As campeãs nacionais do Benfica colhem tempo com bola, querem-na para abusarem da defesa a quatro adversária, em muitos ataques lá têm iguais quatro jogadoras para fixarem a última linha e forçarem um par de situações mais repetitivas: abrir o flanco direito para a lateral Lúcia Alves receber bolas na profundidade ou vincar metros entre defesa e meio-campo onde Andreia Norton pudesse aprofundar a sua relação com a bola.

Da média dos toques curtos, fintas iô-iô entre os pés e calma a decidir vieram as maiores bonanças do Benfica: de uma roleta para proteger a bola, arrancar área dentro e tocar para trás surgiu um remate de Pauleta, de um pára-arranca no meio de três jogadoras inventou um passe a rasgar para a Jéssica Silva de complicómetro ligado, insistente a embelezar ações que pediam toques simples, rematar para as mãos da guarda-redes. E mais vezes as encarnadas se aproximaram da área contrária.

Mas, ao intervalo, a oportunidade flagrante era do Sporting que demorou a desamarrar-se do afinco com que, sem bola, as médias adversárias viraram sombras de Brenda Pérez e, sobretudo, Cláudia Neto. As referências individuais que o Benfica marcava para todo o lado nos momentos em que a equipa queria sair da área apenas foram baralhadas quando, perto da meia hora, as centrais leoninas assumiram um pouco de risco - conduzirem um pouco a bola, correrem com ela até alguma adversária lhes sair na pressão (libertando espaço nas costas) e escolherem o passe.

PAULO CUNHA/Lusa

Só aí, na assunção de um risco necessário, a mutável equipa que se defendia em 4-4-2 e, nos primórdios com a bola, projetava Ana Borges à direita e deixava Alicia Correia a fazer de central para conspirarem jogadas a três, teve jogadas ligadas pela relva. A bola que rasou o poste após Ana Capeta se esticar, na área, para desviar um cruzamento de Ana Borges surgiu no início desse espreguiçar do Sporting.

A segunda parte despertou com a equipa de Mariana Cabral a magicar com as marcações individuais, com as suas jogadoras a arrastarem as adversárias e os pés de Cláudia Neto e Brenda Pérez a terem maior vizinhança, a serem casas geminadas onde se assentou uma supremacia com bola até Lúcia Alves derrubar Ana Capeta na área. O penálti, à hora de jogo, fez da retornada portuguesa que mais se categorizou nos futebóis lá de fora enganar a guarda-redes com o corpo. Mas o 1-0 acordaria, depois, o Benfica.

De pronto entrou em campo o corpo de talento impossível de amestrar que tem Kika Nazareth, colocou-se nas relvas de ninguém entre defesas e médias e nas campeãs nacionais de Filipa Patão avistaram-se, consecutivamente, jogadas a abusarem de movimentos constantes de rutura de Lacasse e Ana Vitória. Eram avançadas com um objetivo descarado: forçarem as jogadoras da linha defensiva muito subida do Sporting a terem de ajustar as posições a toda a hora e a correrem para trás. E outro, porque assim geravam espaço para a técnica da recém-entrada espreitar.

Apesar de Chandra Davidson ainda ter uma chance de fazer o segundo golo quando as encarnadas já ameaçavam o empate, o tempo seriam preenchido pelas consequências das receções orientadas de Kika e das diagonais de Cloé a massacrarem a central Carolina Beckert. Ao terceiro remate ameaçador, Ana Vitória teve a calma de costas para a baliza que esperou pela fuga da desequlibradora-mor à marcação e lhe tocou a bola com que Kika fez o 1-1, à entrada da área. Os 20 minutos restantes foram a continuação de um sufoco que reduziu o campo à metade pertencente ao Sporting.

Nove em cada 10 bolas intercetadas, cortadas ou recuperadas por quem já só resistia eram logo reclamadas pelas jogadoras que forçaram, pareciam outras e eram-no, quando a final pediu substituições o Benfica tem peças desiguais ao Sporting não dispõe e as trocas evidenciaram-no, na bancada Paula dizia que as futebolistas não interessam, mas importam. Com elas e o ímpeto da pressão alta, de Andreia Norton a ordenar qualquer reinício de jogada e Kika a distribuir problemas, a sola da chuteira da última penteou a bola que Ana Vitória disparou aos 90’ e Hannah Saebert impediu que acabasse com o jogo.

Com uma mão disse à Supertaça para prolongar a sua espera e, de novo, o Sporting teve um recomeço auspicioso, Ana Capeta zarpou pela esquerda atrás da bola e rematou-a logo ao poste, um choque que aparentava um refundado equilíbrio. Foi um engano. O Benfica prosseguiu depois com a sua avalanche de movimentos machucadores na frente e Kika teria outro remate, este contra um braço de Beckert que deu o penálti convertido por Ana Vitória.

PAULO CUNHA/Lusa

Nos 24 minutos seguintes, uma equipa jogou e outra resistiu. Foram do Benfica, quem ganhava insistiu na fórmula e quem tinha o prejuízo fazia o possível para tentar reagir ao pioramento em curso da sua condição. O massacre nas costas da linha defensiva do Sporting continuou, os desequilíbrios já sem voz de tanto gritarem quando a cabeça de Vitória fez o terceiro golo num canto e o pé esquerdo de Nycole Raysla o quarto, servida de bandeja pelo calcanhar de Kika, na área e de costas para o ela não poderia ter visto, mas viu.

O 4-1 com que o Benfica conquistou a Supertaça de Portugal não é devido a uma futebolista, seria redutor julgá-lo assim, mas, no mínimo, pode ser explicado por uma jogadora especial, Francisca Ramos Ribeiro Nazareth Sousa especializa-se cada vez mais em qualquer partida que a deixe estar perto da bola, estando livre de lesões e quezílias físicas roça o incompreensível que comece um jogo no banco de suplentes porque é ela, e como ela é, que mais fazem jogar.

Houve uma final pré-Kika e outra com os seus 19 anos em campo, tão nova e com tanto descaramento técnico reminiscente de tempos antigos do futebol, quando craques se podiam dar ao luxo de driblarem parados, esperarem por adversários, driblarem só com ginga e distribuírem passes que até quando as corridas de colegas são as erradas as deixam na cara da baliza. Houve períodos em que Kika Nazareth, que sempre joga com o mesmo elástico, com o mesmo padrão, recuou no tempo e parou a final aí, onde primou como talvez já ninguém se exceda como ela em Portugal. Não por ela, mas muito com ela, o Benfica acabou a atropelar o Sporting.

E engane-se a Paula das bancadas, as jogadoras sim que importam bastante, têm uma influência por vezes não mensurável e para breve estará o tempo que nenhum clube no país consiga manter este talento por cá durante os seus melhores anos. As futebolistas interessam muito e ao Sporting, de momento, faltam nomes (para lá, por exemplo, das que ainda são juniores e que jogaram) que se equiparem mais de perto com os que dão ao Benfica a capacidade de ter a equipa campeã nacional e dona da Supertaça de Portugal.