Malcom Kerr tinha o gosto pela vida académica no sangue. Nascido em Beirute, no Líbano, em 1931, era filho de dois professores universitários que, na altura, se encontravam a trabalhar no Médio Oriente. Malcom especializou-se em estudos árabes e do Médio Oriente, tendo conquistado notoriedade académica enquanto professor na Universidade da Califórnia em Los Angeles, entre 1962 e 1982, ainda que fazendo viagens regulares ao seu Líbano natal. Em 1982, Malcom Kerr, pai de quatro filhos, foi nomeado presidente da Universidade Americana de Beirute.
Em plena guerra civil do Líbano, o país não era seguro para cidadãos norte-americanos. A 18 de janeiro de 1984, Malcom Kerr foi morto a tiro por dois homens no corredor que dava para o seu escritório. O homicídio do professor foi uma notícia tão relevante nos EUA que até mereceu uma condenação veemente por parte do presidente da altura, Ronald Reagan.
Um dos quatro filhos que Malcom Kerr deixou, Steve, tornou-se uma das figuras mais relevantes do basquetebol norte-americano. Oito vezes campeão da NBA — cinco como jogador e três como treinador —, o atual técnico dos Golden State Warrios, com os quais venceu a liga em três ocasiões, nunca escondeu as marcas que a morte do pai, que sucedeu quando tinha 18 anos, lhe deixaram.
E foi com este passado nas costas que Steve Kerr se deslocou à conferência de imprensa antes de mais um encontro da sua equipa frente aos Dallas Mavericks, nos play-offs da NBA. O treinador sentou-se, deixou claro que “não iria falar de basquetebol” e, de cara carregada, voz emocionada e frases claras e diretas, falou sem parar durante quase três minutos, abandonando depois a sala.
Kerr falava pouco depois do ataque ocorrido numa escola primária em Uvalde, no Texas, que, segundo o último balanço, levou à morte de 21 pessoas, 18 delas crianças. O técnico lembrou que, “nos últimos 10 dias”, houve “pessoas de idade negras mortas num supermercado em Buffalo, fiéis asiáticos mortos na Califórnia” e agora “crianças assassinadas na escola”. “Quando é que faremos algo?”, perguntou Kerr, indignado. A tragédia do Texas junta-se a uma lista de outras ocorridas no passado recente nos EUA.
O treinador dos Warriors confessou-se “cansado de oferecer condolências às famílias devastadas” e dos “momentos de silêncio”. “Já chega”, disse. Kerr dirigiu-se a “todos os senadores que se recusam a fazer algo sobre a violência e os massacres nas escolas e supermercados”, perguntando-lhes: “Vão colocar o vosso desejo de poder à frente da vida das nossas crianças, idosos ou fiéis?”.
Num tom crescente, Kerr apelou a que quem o estivesse a ouvir que pensasse “nos seus próprios filhos ou netos, mães ou pais, irmãs ou irmãos” e em “como se sentiriam se isso lhes acontecesse hoje?”.
O técnico opinou que “50 senadores em Washington têm as pessoas reféns”, porque “90% dos norte-americanos, independentemente do partido político, quer verificações de background [para deter armas de fogo]”. “Eles querem manter o seu próprio poder. É patético. Para mim chega”, concluiu um emocionado e contundente Kerr.
Kerr durante o minuto de silêncio no embate entre Dallas Mavericks e Golden State Warriors
Tom Pennington/Getty
Após o jogo, que terminou com triunfo dos Dallas Mavericks por 119-109, Steve Kerr voltou a abordar o ataque. O treinador lamentou "não saber como expressar condolências para com as famílias". "Esperemos que alguém decida valorizar as vidas dos nossos cidadãos mais do que o dinheiro e poder. É, basicamente, isso".
Um passado de contestação que o levou a enfrentar Donald Trump
Stephen Curry, grande estrela dos Golden State Warriors, também falou sobre o ataque depois do encontro: "Eu tenho filhos. Levá-los à escola todos os dias, deixá-los lá... Não consigo imaginar a dor que os pais estão a sentir".
Curry falou sobre as declarações do seu treinador, classificando-as como "poderosas" e "com significado". O jogador disse "apreciar a liderança" de Kerr neste tema, lembrando que o técnico "tem-no feito [posicionar-se na questão das armas] desde que" Curry o conhece.
Em agosto de 2019, depois de massacres na Califórnia, no Texas e Ohio, Steve Kerr considerou que "todos os cidadãos dos EUA estão vulneráveis" quando vão "a um concerto, uma igreja, ao supermercado, ao cinema ou à escola". Kerr classificou, então, a liderança política do país como "cobarde".
Steve Kerr foi abertamente crítico da administração de Donald Trump, com recorrentes publicações no Twitter contra as políticas do ex-presidente dos Estados Unidos da América. Em maio de 2019, durante os protestos devido à morte de George Floyd, o técnico também recorreu às redes sociais para escrever uma das suas mais duras mensagens contra Trump.
"Em 2017, Trump chamou aos atletas da NFL que se ajoelhavam, protestando pacificamente contra a brutalidade policial, 'filhos da mãe'. Na noite passada apelidou os manifestantes de Minneapolis de 'bandidos'. É por isto que racistas não deveriam ser presidentes".