É mais fácil ganhar campeonatos ou manter uma bicicleta em Lisboa?
[risos] Eu acho que dei azar, cara. Foram duas bicicletas [roubadas], uma aqui no Benfica e outra à frente do [centro comercial] Fonte Nova, perto da minha casa. Acho que dei azar. Mas agora, na terceira, tenho seguro. Esta não a vão levar, comprei seguro, não a vão levar.
Chegou em maio de 2018. Como tem sido esta trajetória?
Dá orgulho pela trajetória profissional. Tenho aproveitado do jeito que dá a trajetória pessoal, envolvido nessa pandemia. A família ficou um pouco para trás, não pude conhecer a Europa do jeito que eu queria. É uma oportunidade para quem mora fora, estar aqui e poder fazer umas coisas. A pandemia atrapalhou um pouco essa questão da família, mas também deu para focar mais nas pessoas. Aquela coisa que todo o mundo fala não é um cliché, a gente ficou mais dentro de casa, conheceu bem a família, curtiu os filhos, mas não tive o que queria: aproveitar mais Portugal. Mas a trajetória profissional é sensacional, acima da expectativa, até da minha, no sentido em que se tem sempre um pouco de receio do que vai acontecer, então está sendo incrível.
O que destaca desta época importante com a conquista do triplete?
Para conseguirmos isso passámos bons momentos no nosso limite. Nunca é fácil. Tivemos jogos apertados, não é?, que podiam ter calhado para um lado ou para o outro, em que a gente se testou para vencer. Acho que destaco esse trabalho no limite que temos no dia a dia. Pode parecer simples, mas é um trabalho que exige sempre muito dos jogadores e da equipa técnica. Orgulhamo-nos do trabalho que fizemos, do que deixámos aqui na quadra. Destaco essa entrega durante o ano.
Depois desses triunfos todos, [o líbero] Ivo Casas disse que não se cansam de ganhar. Queria perguntar se é mesmo assim: no treino, depois de ganhar tanto, não há aquela descompressão ou relaxamento? É aí que entra o treinador e o desgaste, requer mais energia?
As temporadas não são iguais, as coisas mudam um pouco. Os títulos podem ser os mesmos, mas a história, o dia a dia e o que aconteceu não tem nada a ver. Mudam os adversários, muda alguma peça aqui dentro, pode vir um jogador novo ou pode até, dentro da própria equipa, alguma coisa mudar a configuração. Todos os anos são diferentes. Os títulos são os mesmos, mas o jogo não é. Isso é uma coisa que motiva os jogadores, motiva-nos para trabalhar. O objetivo do Benfica é sempre ganhar, é o objetivo de qualquer profissional numa equipa que tem condições para ganhar. Há alguns, em equipas mais fracas, que dizem "quero ser campeão", mas a gente sabe que é difícil e que não é assim: o objetivo é jogar bem e evoluir. O nosso objetivo, aqui, é sempre ganhar as competições internas. A Liga dos Campeões é um pouco mais complicada de vencer. Mas a motivação vai existir porque as temporadas são diferentes, as equipas mudam. Temos sempre aquela coisa de ver como vai ser a relação com os principais adversários, se a equipa vai encaixar, que tipo de dificuldades vamos ter. É por aí. Não cansa, entendeu? Não cansa.
Quando chegou, na apresentação, anunciou metodologias diferentes. O que implementou e o que ficou por implementar nesse plano inicial?
A equipa técnica já estava aqui com o Rodrigo [Barroso] há muito tempo, é o meu adjunto. O Duarte [Carvalho] tem um ano a mais do que eu, o Daniel [Moreira], que é o analista de desempenho, chegou comigo, eu e o Rodrigo formámo-lo, já tínhamos experiência nessa parte. Cara, existe um modelo de trabalho brasileiro, existe um modelo de trabalho mais daqui da Europa, fazemos um misto dos dois. Existe uma equipa que tem necessidades diferentes, temos tentado melhorar. No primeiro ano fazíamos blocos de cinco treinos seguidos e começou a dar uma sobrecarga muito grande, fomos ajustando isso. O vólei treina bidiários quase diretos, há pouca folga, treinamos duas vezes por dia. Isso dá sobrecarga. Pelo número de sessões, o ano que cheguei foi um pouco superior ao que tinha terminado. Mas isso até já reajustou, hoje não sei se estamos treinando um pouquinho menos ou com mais qualidade do que no início. Não repetimos treinos, os objetivos vão mudando também para motivar os jogadores. Eles chegam e não sabem o que vai acontecer, não têm ideia do que vai ser o treino, não têm rotina de "segunda é mais isto, terça é mais isto, quarta é mais aquilo...". Eles vêm e há dias em que são exigidos de uma maneira, há dias que são de outra, há dias que é mais pelo volume, intensidade, mais para cumprir alguma tarefa. Essa é uma coisa que me motiva muito, o dia a dia do trabalho, e é isso que para mim é bom porque aqui há uma estrutura sensacional para trabalhar. A gente passa muito mais tempo dando treino do que jogando, não é? No treino tens de comandar, ficar atento a 14 jogadores, no jogo só tens de cuidar mais ou menos de seis, fica mais fácil. O dia a dia deixa-me "desconfortável", ter de exigir o máximo dos jogadores, tentar fazê-los sair da zona de conforto para crescerem. É por aí que eu vou.
Como é que neste desporto em que as jogadas são padronizadas, há aquele guião receção-passe-ataque, se dá a assinatura do treinador? Como é que se forja uma identidade?
Uma das coisas que procuramos ter é uma equipa tecnicamente boa, com condição de executar o que temos de plano. Como temos uma equipa com 14 jogadores com qualidade boa, a gente tem vantagem e o adversário não consegue identificar muitos padrões, isso é favorável para nós. Temos as dinâmicas que são mais organizadas, no sentido de como funciona o jogo, exploramos isso no treino, mas acho que a preparação para o adversário e a execução no jogo variam bastante. A capacidade técnica que treinamos no dia a dia e depois a questão de organização tática vão muito de acordo com o adversário. E aqui é dividido: a parte ofensiva fica com o Rodrigo, ele controla essa parte, dá treino e organiza isso no jogo, comigo mas é uma parte que compete a ele. [Isto é], receber, organizar a equipa e atacar, ou pelo menos receber e organizar e distribuir, o Rodrigo cuida. O ataque é o jogador que tem de finalizar, temos de preparar bem para o jogador finalizar. E a parte mais defensiva - serviço, bloqueio e defesa - fica mais comigo. Dividimos e trabalhamos dessa maneira, mas o principal é ter a capacidade técnica para executar as coisas bem, o básico bem feito e depois ajustar de acordo com o adversário.
Na quadra que espaço há para a criatividade? No voleibol há essas jogadas que parecem sempre tac-tac-tac, mas…
É, mas tu tens razão. O jogo de vólei é formatado de acordo com as posições que o distribuidor dá e temos as jogadas ali. Parece pouco, mas é uma variação grande: fazendo uma matemática rápida, tens três ou até quatro jogadores para atacar em cada posição, são seis posições, então já vais para 24 combinações. Se colocares aqui o central [começa a usar os dedos na mesa], à frente, atrás ou afastado [do distribuidor], então já passas para 70 e poucas [combinações]. Por mais que pareça um negócio padronizado, esse encaixe é bem vasto. A gente traça um tipo de estratégia, de maneira global, e muitas vezes para ganhar é não inventar, não é ser criativo, é ser eficiente, entendeu? A gente insiste nisso.
A plasticidade do jogo tem a ver com o distribuidor, é ele que define...
É ele que define essas situações.
É o jogador criativo.
É o jogador criativo e eficiente. Não adianta ter criatividade e não ser eficiente e ser... burro. Tem de ter o controlo do jogo. Um cara muito criativo, muitas vezes, vai na intuição e não tem o controlo do negócio. Um jogador que é mais 'aqui' [consciente do jogo diz] "o caminho é por aqui" e coloca um jogador numa posição. Tem uma tendência para dar certo, então vai, vai, vai e vai, depois dá certo sempre e ganhas.
Tem de haver cultura de jogo.
O [Tiago] Violas é um jogador que tem essa noção, consegue controlar o jogo taticamente. E o Bernardo [Westermann] precisa de evoluir nesse aspeto, é um jogador com um potencial muito alto, mas ainda joga mais no feeling e na criatividade, mas muitas vezes não tem o controlo do que está acontecendo.
O que é ter coragem numa quadra de voleibol?
Muitas vezes, um cara ser corajoso pode ser uma coisa que é não ter o que falei, a eficiência. Um jogador tem de conseguir jogar com inteligência, fazer as coisas certas, trabalhar, não sempre na coragem e na força, ou no enfrentamento, para resolver as coisas. Acho que ter coragem é não ter medo de conseguir trabalhar no seu limite, é não ter receio de fazer as coisas bem feitas, e não jogar de acordo com o adversário, no sentido de "se o cara é grande, vou tentar fazer uma coisa diferente", ter medo de jogar contra o adversário. Acho que a equipa tem muita coragem, enfrenta qualquer adversário com coragem e também com respeito em relação àqueles adversários que está acostumada a vencer.
Numa conversa entre [o ex-selecionador argentino de voleibol] Julio Velasco e o selecionador de basquetebol da Argentina, eles diziam que a coragem ("huevos") é a mão não tremer, é a receção não ir para a bancada, que é muito mental. É assim?
Estava a ir pelo lado mais animal, do cara ter coragem de enfrentar e ser pouco racional, ter pouca inteligência, descontrolo. A coragem é o controlo pessoal de conseguir trabalhar no limite independentemente do adversário que está do outro lado.
A mão não tremer.
A mão não tremer. A gente pode dizer o braço não encolher [risos].
O Marcel trouxe os números para o dia a dia, mostra-os nas redes sociais, assim como certas especificidades do voleibol. Sente que tem a responsabilidade de explicar o jogo às pessoas?
Sim! Total. É uma das coisas que ainda precisamos de melhorar. Não é uma modalidade fácil de entender, não é simples. Acredito que está começando a haver mais curiosidade, os adeptos têm vindo mais aqui e acompanham os jogos. A presença deles aumenta ainda mais essa necessidade de passar um pouco mais do que acontece no jogo, para eles entenderem os processos. Aqui em Portugal, pelo jornalismo desportivo, vejo que no futebol há essa característica, as pessoas já conseguem perceber como foi, usa-se aquela linguagem um pouco mais técnica. A gente tem a nossa linguagem técnica no vólei, eu sei que não vamos falar para cinco milhões de pessoas, por exemplo, mas, se tivermos de falar para 50 ou 100 pessoas que têm interesse em compreender um pouco mais, temos de falar.
Imagino que os dados digam tudo sobre o desempenho de cada jogador. Há alguma plataforma ou máquina que diga onde está o buraco ou a linha ideal para atacar?
Existe. Temos um software que é o Data Volley, é italiano. É muito normal, quase todas as equipas de alto nível têm. Têm surgido outras opções nos últimos três ou quatro anos, mas há 15 anos que este é o software que domina o mercado. Permite trabalhar num modelo mais padrão, mais refinado, no sentido de ter mais dados lá dentro. Tens de ter alguém que opera isso, o Daniel consegue operar bem. Tanto o Rodrigo como eu já fomos dessa função, então sabemos o que dá para explorar. Um treinador que não mexeu no programa não sabe até que ponto pode chegar, nós conhecemos o programa. É muito personalizável. O Fonte Bastardo, Benfica e Sporting têm [esse software], mas como cada um mexe é diferente. Conseguimos, em função dos filtros que usamos, ter muito do caminho que acontece. Se a gente vai conseguir colocar a bola lá, é uma questão que pode ser um pouco mais complicado ou ser o segredo do sucesso. Mas que a gente tem o caminho, a gente tem. Temos o caminho de tudo, o mapa, tudo o que acontece.
Pode ser uma armadilha?
Pode... mas pode salvar também. Vou dar um exemplo muito simples: Peter Wohlfahrtstätter é um jogador que tem um serviço mais agressivo. Nalgum momento fui pelos números e pedi-lhe para tirar a pressão no jogo e aí a gente perdeu um set, por exemplo. Depois, "cara, não fiz o negócio certo". Em algum momento também já tive de ver que não estava a ir tão bem pelos números, então falei "tem que ir, vai, aperta". Tenho, dentro desse programa, muitos dados que vão acontecendo. Quando colocamos muito filtro e queremos ser muito específicos, o jogo não te dá ações suficientes para essa especificidade, então ficamos mal. São muitas variáveis e no jogo não acontecem tantas variáveis. Pegas em oito jogos e consegues ter um mapa espetacular, muita coisa, mas depois tens 10 coisas para avaliar, com bastante volume de dados para tratar. Chega ao jogo e o jogo como um todo dá-te uma destas [ações] e não dá para dizer se foi para a direita ou esquerda. Tem de ser um pouco mais simples, o jogo não vai completar os mapas que temos previamente. Mas é difícil. Estou no meu quinto ano como treinador [principal], quando eu era assistente técnico eu achava curioso como é o treinador conseguia ter um controlo do que estava a acontecer sem ter os números e recursos no computador. Hoje já aprendi a concentrar-me. Num treino, quando não tenho computador, percebo muitas das coisas e vão ficando meio que gravadas, a memória vai melhorando. Uma coisa que aconteceu no início lembro-me dela no final. Nesta função tens de fazer com que a cabeça funcione diferente do que quando és adjunto. Estou evoluindo nessa questão mental, de gravar as coisas na cabeça, de perceber o jogo para poder atuar com um feeling com um pouquinho de memória, não só na emoção. Já conheço os jogadores quase todos, já sei o que podem dar, sei também quem trabalha mais no raciocínio e menos no feeling, sei quem trabalha mais no coração e menos no negócio "como é que eu tenho de interferir?". É um dos segredos que está a fazer com que a equipa consiga render próximo do máximo.