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Dos treinos de 12 horas e da imunidade ao cansaço à anorexia e às lesões crónicas: Eteri Tutberidze, a polémica treinadora das patinadoras russas adolescentes

Eteri Tutberidze fala com Kamila Valieva durante os Jogos Olímpicos de Pequim
Eteri Tutberidze fala com Kamila Valieva durante os Jogos Olímpicos de Pequim

Tendo orientado atletas que venceram medalhas na patinagem artística nas três últimas edições dos Jogos Olímpicos de Inverno, Tutberidze — já condecorada por Putin — é guru para uns e vilã para outros, devido aos seus métodos de trabalho que exploram o físico e a mente das jovens, que antes dos 20 anos são descartadas, várias delas com problemas de saúde. O colapso de Valieva colocou-a novamente no centro das críticas

Dos treinos de 12 horas e da imunidade ao cansaço à anorexia e às lesões crónicas: Eteri Tutberidze, a polémica treinadora das patinadoras russas adolescentes

Pedro Barata

Jornalista

27 de novembro de 2018. O esplendor do Kremlin acolhe uma cerimónia de homenagem a várias figuras que, por uma razão ou outra, têm contribuído para o prestígio e promoção internacional da imagem da Federação Russa. O anfitrião da ocasião, Vladimir Putin, sabe bem como beneficiar da solenidade do momento e, ao mesmo tempo, alimentá-la, como se comprova pela decoração rebuscada da sala. Os homenageados vão-se aproximando do presidente, com uma certa timidez reverencial.

A certa altura, uma mulher, mais alta do que Putin, aproxima-se. O presidente coloca-lhe ao peito a medalha da Ordem de Honra da Rússia. Eteri Tutberidze, a agraciada com a distinção, via o país reconhecer-lhe, de forma oficial, o contributo para as glórias desportivas trazidas para Moscovo.

Eteri Tutberidze receives recebe a Ordem de Honra da Rússia, entregue por Vladimir Putin (Foto: Mikhail KlimentyevTASS via Getty Images)

Meses antes da cerimónia, Eteri Tutberidze, treinadora de patinagem artística, havia levado Alina Zagitova e Evgenia Medvedeva, suas pupilas, a vencerem, respetivamente, o ouro e a prata nos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeongchang. Nos anos anteriores, Tutberidze orientara um conjunto de atletas rumo aos mais diversos êxitos internacionais, num caminho de triunfos ao mais alto nível que se iniciara em 2014.

Nos Jogos de Sochi, Julia Lipnitskaia, de somente 15 anos, deixou o mundo boquiaberto. Com o seu vestido vermelho, e ao som da música do filme “A Lista de Schindler”, a jovem realizou uma prova plena de graciosidade e agilidade, praticamente sem falhas, com manobras que evidenciavam uma leveza e elasticidade anormais. A prestação da adolescente foi decisiva para que a Rússia ganhasse o ouro na competição por equipas, tornando-a na mais jovem a subir ao mais alto lugar do pódio na patinagem artística desde 1936.

Nos oito anos que se seguiram à exibição de Lipnitskaia, Tutberidze tornou-se numa máquina de produzir atletas com aquelas qualidades anormais. Cada vez melhores, cada vez mais leves, cada vez mais elásticas, cada vez mais quase perfeitas. “Produtos de laboratório”, como lhes chamou Rui Silva, no excelente podcast — de escuta obrigatória para quem quiser estar por dentro do olimpismo — “Tocha Olímpica”.

Mas tanta obsessão pelo triunfo e tamanha exigência de perfeição não surgem sem preços a pagar.

Eteri Tutberidze e Yulia Lipnitskaya nos Jogos Olímpicos de 2014, quando a patinadora só tinha 15 anos e surpreendeu o mundo, no começo da série de êxitos para a treinadora (Foto: Matthew Stockman/Getty Images)

Julia Lipnitskaia deixou a patinagem artística aos 18 anos, somente três voltas ao sol depois de fascinar o mundo em Sochi. A jovem admitiu sofrer de anorexia, tendo ingressado, de maneira voluntária, numa clínica de reabilitação. Pouco antes da sua retirada, desconfortável perante os rumores de que estava grávida, Lipnitskaia questionou: “Será que tenho de pesar 37 quilos eternamente só para deixar os outros felizes?”. Após a sua última prova, a jovem assumiu já não se sentir “atraída pelo gelo”.

Evgenia Medvedeva competiu nos Jogos de 2018 com um osso do pé rachado. Elizabet Tursynbaeva, atleta do Cazaquistão que se tornou na primeira mulher a aterrar um salto quádruplo nuns Mundiais, em 2019, retirou-se o ano passado, aos 21 anos, devido a uma lesão crónica nas costas. Outra pupila de Tutberidze, Darya Usacheva, sofreu um problema físico muito grave em novembro, tendo de voltar para casa de cadeira de rodas.

Todas estas jovens foram vítimas dos métodos aplicados por Eteri Tutberidze e pelo seu clube de patinagem, o Sambo 70, em Moscovo: as sessões de trabalho podem ter durações de 12 horas — “os treinos são duros e rígidos”, assume Tutberidze —, o controlo com o peso é ao grama e não há espaço para o cansaço ou para algo que não seja a busca incessante pela perfeição. Romain Haguenauer, treinador francês que tem acompanhado várias campeãs, acusou a russa de promover treinos “abusivos, até militares”. “Ela não se poderia aproximar de crianças se fizesse aquilo no Canadá”, comentou o gaulês que vive na América do Norte.

“Acredito que ela exija muito das patinadoras, com muitas regras. Elas fazem patinagem desde o pequeno-almoço até ao jantar. Há muito trabalho de ginásio ou ballet e dietas muito rigorosas”, comenta à Tribuna Expresso Carla de Almeida, treinadora da Federação de Desportos de Inverno e do Revolution Figure Skating Club, primeira equipa de patinagem artística no gelo em Portugal, que aponta que, na modalidade como um todo, há “uma certa cultura de exigência excessiva”.

Eteri Tutberidze, numa entrevista à televisão estatal do seu pais, justificou a sua filosofia: “O que eu tento ensinar às minhas alunas, começando mais ou menos com 13 anos, é que não podes vir para os treinos e começar a lamentar: ‘Estou cansada. Não posso fazer isto agora. Fazemos amanhã’. Olhem para o mapa e vejam o tamanho da Rússia. Quando vais a uma competição internacional e tens o nome da Rússia escrito no casaco, é suposto que sejas a melhor que a Rússia enviou para o mundo ver. Logo, não podes ir para o gelo com uma má atitude, dizendo que estás cansada. Não podes”.

Eteri Tutberidze abraça as suas pupilas Alina Zagitova e Evgenia Medvedeva durante um encontro com Vladimir Putin, em fevereiro de 2018 (Foto: Mikhail Svetlov/Getty Images)

A abordagem da treinadora à patinagem artística voltou a ocupar um lugar central na discussão internacional durante os Jogos Olímpicos de Inverno que estão a decorrer em Pequim. Audrey Weisiger, antiga treinadora olímpica dos Estados Unidos da América, diz que os “treinadores russos têm a missão” de produzir “uma nova campeã olímpica a cada quatro anos”. E, no sistema de Tutberidze — acusada de, quando os anos passam, o peso aumenta ou a agilidade diminui, descartar atletas por outras mais novas —, havia uma atração principal para os Jogos na China.

Aos 15 anos, Kamila Valieva chegou a Pequim como campeã russa e europeia, capaz de pontuações nunca antes vistas. A adolescente começou os Jogos correspondendo às expectativas, tornando-se na primeira mulher a aterrar um quádruplo em Jogos Olímpicos — durante a competição em Pequim, Anna Shcherbakova e Alexandra Trusova, outras duas pupilas de Tutberidze com 17 anos cada, também conseguiram saltos quádruplos, levando a que a seleção russa seja conhecida como “The Quad Squad”.

No entanto, o espanto com Valieva rapidamente tornou-se em dúvida, descrédito e polémica. A 8 de fevereiro, já depois do começo dos Jogos, um laboratório sueco reportou que Kamila havia testado positivo num controlo anti-doping feito a 25 de dezembro, para trimetazidina, uma substância regularmente utilizada em doentes com angina, mas proibida no desporto. Apesar da infração, Valieva — que terá dito que o acesso à substância foi feito através de um medicamento que o avô toma — foi autorizada a continuar a competir nos Jogos Olímpicos de Pequim.

Devido à sua idade, Valieva é uma “pessoa protegida” na legislação anti-doping e, de acordo com o artigo 10.º da “Carta anti-doping de direitos dos atletas”, esse estatuto confere “proteção adicional”, “incluindo na avaliação das suas infrações”. Sendo menor, a agência antidopagem russa e o Comité Olímpico Internacional alargaram a investigação, também, a treinadores e médicos da equipa russa — recorde-se que, em Sochi 2014, deu-se um dos maiores esquemas de dopagem da história, com o apoio do estado russo.

Numa entrevista à televisão estatal russa sobre o caso Valieva, Tutberidze sugeriu que tudo era “um plano muito bem desenhado” contra a sua seleção. “Desejo que os nossos dirigentes não nos abandonem, defendam os nossos direitos e provem a nossa inocência”.

Depois de tanta atenção e escrutínio mediático concentrado sobre si, Kamila Valieva entrou na prova individual feminina como maior candidata à vitória. No entanto, com o peso do mundo sob os seus ombros de rapariga de 15 anos, falhou o objetivo do triunfo, terminando no quarto lugar.

A reação da sua treinadora, logo após o final da prova e perante o desconsolo e lágrimas de Valieva, tem sido apontada como um exemplo da abordagem de Tutberidze: “Por que paraste de lutar? Explica-me. Porquê?”

Carla de Almeida não é indiferente àquilo que “de muito triste” aconteceu a Valieva, indicando que “os Jogos Olímpicos são para seniores, mas as meninas que estão a patinar têm 15 anos”. Para a treinadora, “seria melhor eles reverem as idades”, ainda que ressalve que “Valieva entrou numa competição sénior e é natural que a olhem como adulta”.

Ainda assim, o ouro e a prata foram para as duas pupilas da moscovita, com a vitória a ir para Anna Shcherbakova e o segundo lugar a ficar nas mãos de Alexandra Trusova. O grau de dificuldade dos elementos que as discípulas de Tutberidze realizam é tão elevado que, mesmo com um ou outro erro, é praticamente impossível que a concorrência as supere.

Eteri Tutberidze e Kamila Valiyeva (Foto: Sergei BobylevTASS via Getty Images)

Evgenia Medvedva, que orientada por Tutberidze venceu duas medalhas de prata nos Jogos de 2018, retirou-se em dezembro passado, aos 21 anos, depois de muito sofrer com problemas físicos. Medvedva disse que, durante a temporada de 2018, tinha de ficar o “mais seca possível”, sendo “impossível” realizar o programa que lhe fora destinado se ganhasse peso. A russa, então com 18 anos, afirmou que todo o processo “fez muito mal” ao seu corpo.

Polina Shuboderova, outra antiga pupila de Tutberidze, disse ao “Sport Express Russia” que “mesmo que estejas cansada ou lesionada, tens de ir para o gelo e treinar”. Shuboderova revelou também que “variações de peso superiores a cerca de 0,2 quilos não são permitidas”. “Apesar da patinagem artística ser um desporto gracioso e lindo de se ver, tem uma parte por detrás de muita violência”, realça Carla de Almeida.

A treinadora frisa que “temos de ter cuidado com a sobrecarga de treino em atletas tão novas, que têm o corpo a crescer”, pois “podem haver muitas lesões resultantes” dessa sobrecarga. Daí que, na opinião da treinadora, seja “importante estabelecer regras e saber trabalhar especificamente com cada patinadora”.

Uma das maiores críticas a Eteri Tutberidze prende-se com a forma como, a cada ciclo olímpico — ou até menos — são descartadas atletas em favor de outras mais novas. Quando o peso aumenta, e muitas vezes antes dos 20 anos, as patinadoras são substituídas por novas adolescentes, que voltam a elevar a fasquia. “Há demasiadas atletas da Rússia a retirarem-se com 19 ou 20 anos por causa de lesões ou por já não conseguirem fazer os saltos que faziam quando eram mais novas”, resume Carla de Almeida.

“Atletas de menor idade saltam com maior facilidade. Está relacionado com o peso do corpo e é por isso que vemos atletas mais novas conseguirem fazer mais rotações no ar do que outras mais altas e pesadas. Por isso é que as atletas nos Jogos vão sendo sempre mais novas porque o corpo permite fazer coisas novas e mais exigentes, como os quádruplos”, explica ainda a treinadora portuguesa.

Um processo que não deixa de ter um paralelo com a própria carreira de atleta de Eteri Tutberidze. Inicialmente patinadora artística, a moscovita passou para a dança no gelo quando se tornou demasiado alta. Depois de “uma falhada carreira na patinagem”, Tutberidze tornou-se uma “treinadora nómada pelos Estados Unidos”, como descreve o “Washington Post”, tendo começado a trabalhar em Oklahoma, Cincinnati, Los Angeles ou Texas, antes de regressar ao seu país.

(Foto: Valery SharifulinTASS via Getty Images)

Em 2021, numa entrevista a uma televisão russa, Eteri Tutberidze foi questionada quanto à sua fama: “Rígida? Eu digo às minhas atletas a verdade, porque suavidade elas ouvirão de outras bocas. A verdade, como as coisas são de facto, só ouvirão de mim”, assegura a treinadora, que reconhece que às vezes as patinadores “se ofendem” com os seus métodos, mas justifica isso com “idades difíceis” e “as hormonas”.

Apesar de reconhecer a “qualidade” de Eteri Tutberidze, Carla de Almeida lamenta que, “na voragem de estarmos sempre a bater recordes”, se possa “perder a beleza do desporto” e a “mística” de “uma coreografia bonita”.

“Claro que eu quero que uma alteta seja a melhor que pode ser, mas quero que elas adorem o desporto, porque quando nós adoramos o que fazemos é mais fácil atingirmos os objetivos”, rematou a treinadora do Revolution Figure Skating Club, com sede em A-dos-Francos.

Os treinos de Tutberidze podem levar a Rússia — perdão, o Comité Olímpico da Rússia — a atingir níveis que se julgavam impensáveis, mas cada vez mais vozes se têm levantado quanto aos métodos desta espécie de linha de montagem que usa e descarta adolescentes, deixando-as marcadas para a vida. A treinadora, por seu lado, parece plenamente convicta do que faz.

“Quando vejo uma atleta que pode fazer muito melhor, sinto imensa pena que isso não esteja a acontecer. Então, tenho de ser um dragão, para conseguir acender o interruptor dela. Porque, caso eu não fizesse isso, a atleta não teria a alegria posterior de estar num pódio com o nosso hino a tocar em honra dela. É preciso fazer tudo para o conseguir, com dedicação máxima”.

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