Kamila Valieva e uma caminhada em gelo fino que acabou em lágrimas
Aos 15 anos, Kamila Valieva ia ser uma das estrelas dos Jogos Olímpicos de Inverno. Um positivo a uma substância proibida manchou a competição e deixou a jovem russa num limbo. Favorita ao ouro na prova individual feminina, a atleta que para muitos é a melhor a alguma vez pisar um rinque de patinagem artística, colapsou no gelo, falhou o pódio e uma medalha que lhe parecia destinada
O “Bolero” de Ravel arranca com aquele passo quase militar e Kamila Valieva desliza, leve e etérea como em quase todas as competições que dominou desde que completou 15 anos. Campeã russa e europeia, a jovem de Kazan chegou aos Jogos Olímpicos de Inverno envolta numa aura de atleta especial, a melhor coisa a alguma vez pisar os rinques de patinagem artística, bradaram alguns especialistas, com pontuações nunca antes vistas nos programas curto e longo, como máquina de saltos de quatro voltas que é. Era favorita a tudo, favorita dentro das favoritas russas, e na primeira apresentação em Pequim, na prova por equipas, fez desde logo história, ao tornar-se na primeira mulher a aterrar um salto quádruplo em Jogos Olímpicos.
A elegância no esquiar, a graça nos saltos, as longas pernas que se parecem entrelaçar a cada pião – Valieva não era apenas uma atleta, era uma artista das que o mundo parava para ver, como quem compra um bilhete para o “Quebra Nozes”. Até que rebentou a notícia de que a medalha de ouro da equipa do Comité Olímpico Russo estava num limbo, “questões burocráticas” começou por dizer o Comité Olímpico Internacional, para logo se confirmar que a burocracia afinal chamava-se “doping”.
O passado dos atletas russos, ou de quem os governa, os condena: foi em casa, em Sochi, também nuns Jogos Olímpicos de inverno, em 2014, que com o beneplácito do estado local se cozinhou um dos maiores esquemas de dopagem da história. Mas até para os já escaldados com as dúvidas russas, ver uma menina de 15 anos com uma suspeita de doping às costas foi surpreendente: era de Valieva o positivo que atravancava a cerimónia de entrega de medalhas, que nem chegou a acontecer. No sangue da jovem foi encontrada a correr trimetazidina, uma substância associada a tratamentos para a angina de peito, um positivo que surgiu num teste feito em dezembro mas do qual só se soube o resultado poucas horas após a prova por equipas dos Jogos Olímpicos.
Ouvida dias depois pelo Tribunal Arbitral do Desporto, em Pequim, a suspensão provisória de Valieva foi levantada, permitindo que a russa pudesse competir na prova individual – por ser menor, a agência antidopagem russa e o Comité Olímpico Internacional alargaram a investigação ao seu entorno, nomeadamente a treinadores e médicos da equipa russa. A decisão, claro, trouxe vários asteriscos: por a investigação estar em curso, caso Valieva terminasse no pódio não haveria lugar a entrega de medalhas. Nem para ela, nem para ninguém.
Valieva em lágrimas junto à treinadora e coreógrafo (Foto: Xavier Laine/Getty Images)
Da forma mais cruel que se possa imaginar, a natureza como que curou por si própria a arbitrariedade de uma deliberação que não afetava apenas Valieva, mas também as suas rivais. E por natureza leia-se o estado de espírito de uma menina que será uma das menos culpadas no circo mediático e julgatório que se tornou a sua participação olímpica. Depois de ficar em primeiro no programa livre, mesmo que numa exibição com alguns pouco típicos deslizes, Valieva entrou esta quinta-feira para o programa livre como favorita máxima, um primeiro lugar que talvez só as compatriotas Anna Shcherbakova e Alexandra Trusova, também elas adolescentes, com 17 anos, poderiam beliscar. Conhecida como “The Quad Squad”, a seleção russa tornou-se praticamente imbatível desde que começou a distribuir saltos quádruplos nas provas internacionais: o grau de dificuldade dos elementos é de tal maneira alto, que mesmo com uma ou outra falha as russas são inatingíveis para as demais atletas.
A menos que as falhas sejam mais que muitas.
Voltamos ao “Bolero”. De cara fechada, como sempre, Valieva atirou-se ao primeiro quádruplo, um Salchow que não fechou. Não lhe sairia bem também o triplo Axel, uma espécie de Santo Graal dos elementos da patinagem artística. A primeira queda apareceu no fim da combinação quádruplo Toe Loop/triplo Salchow, a segunda pouco depois, em nova quádruplo – Valieva estava ali, mas não estava.
Foi como se naqueles quatro minutos que dura o programa livre caísse o mundo em cima de uma criança que na última semana viveu as maiores pressões numa das provas-rainha dos Jogos Olímpicos de Inverno. No final do programa, Valieva sacudiu a mão como que a afastar os demónios, para logo logo a sua cara se afogar nas luvas vermelhas que lhe vestiam as mãos. Apareceram as primeiras lágrimas, que se tornaram torrenciais na zona “Kiss and Cry”, a sala onde atletas e treinadores esperam pelas notas dos juízes. Quando se confirmou que Valieva nem sequer ao pódio iria, nem o braço de Eteri Tutberidze, a treinadora, a consolou.
Um pódio com diferentes caras
Numa era em que é virtualmente impossível uma não-russa estar num pódio de uma prova internacional de patinagem artística, a atleta mais feliz no Ginásio Indoor de Pequim era mesmo a japonesa Kaori Sakamoto. A patinadora de 21 anos foi bronze com um programa infinitamente menos complexo que o das russas. Mas sem falhas significativas. O ouro foi para Anna Shcherbakova e Alexandra Trusova ficou com a prata, apesar de ter tido a melhor pontuação no programa livre. Aliás, Shcherbakova, atual campeã mundial, foi campeã olímpica apesar de ter sido apenas segunda em ambos os programas.
Um pódio inesperado, com Shcherbakova ao meio, Trusova à esquerda e a japonesa Sakamoto à direita (FOTO: Kirill KUDRYAVTSEV/AFP/Getty)
Entre as duas russas, havia mais incredulidade que alegria, tal era a surpresa por não ver Kamila Valieva com uma das medalhas, num colapso que é apenas o epílogo de um folhetim que entrará para o folclore destes Jogos Olímpicos. “Senti que dei o meu máximo na altura certa, no momento certo. Acho que preciso de algum tempo para perceber o que se passou”, disse Shcherbakova aos jornalistas, antes de confessar sentimentos conflitantes: “Por outro lado, sinto um enorme vazio”.
Para alguém com 15 anos, parece haver apenas futuro. Menos quando se trata de patinagem artística. Nos próximos Jogos Olímpicos de Inverno, Valieva terá apenas 19 anos, mas no prazo de validade do grupo de treino de Eteri Tutberidze poderá já ser tarde. Mais do que a sua atleta, a mítica treinadora russa esteve no olho do furacão da comunidade da patinagem após o positivo de Valieva. Aos seus métodos draconianos, com sessões de trabalho que ultrapassam as 12 horas, levando ao extremo crianças e adolescentes, são apontadas culpas para que muitas das patinadoras russas desapareçam das competições internacionais tão depressa quanto surgem.
Alina Zagitova, campeã olímpica há quatro anos, então com 15 anos, não se qualificou para Pequim 2022. Um ano depois do ouro em 2018, numa entrevista ao site dos Jogos Olímpicos, Zagitova assumiu que os saltos quádruplos, algo raro até para atletas masculinos, eram “demasiado perigosos” para ela e que teria de perder peso para os fazer. Enquanto Valieva, Shcherbakova e Trusova distribuem saltos quádruplos no gelo, Zagitova, com apenas 19 anos, está afastada da competição.