António é o chefe da nutrição do Sporting em guerra com a “charlatanice” e a banha de cobra “sexy” que se vende aos jogadores

Editor
Fala pausadamente, os olhos não se fixam por defeito no ecrã, vagueiam com frequência pela sala onde está, sintoma de quem se repercute em sinapses mentais sobre o que está a dizer. Porque quer dizê-lo com clareza, sem atalhos e ao detalhe. António Pedro Mendes é ciente de que ele, um nutricionista formado e com anos de prática, dizer a um atleta que “tem de comer hortícolas diariamente, seja na sopa ou no prato” é um exemplo da contraposição que lhe enche a gamela da profissão a cada dia - no segundo seguinte, se for preciso, está um conhecido, um amigo ou até um desconhecido que se multiplica em seguidores nas redes sociais a apregoar “soluções milagrosas” que fomentam o risco de ‘ganhar’ num ápice ao que ele tenta instruir. Aconselhar um futebolista a povoar o almoço e jantar com verduras “não é uma estratégia sexy” como as que influenciadores apresentam de inovadoras, mas "sabe-se que funcionam". E tratam-se de “evidência”. E “ponto final”.
António entrou no futebol há 10 anos, pelo Paços de Ferreira, parece ontem na grande escala do tempo, mas ainda se lembra de quase ter de explicar o que fazia, em concreto, um nutricionista. Esteve quatro anos no FC Porto com uma época no Al Nassr, da Arábia Saudita, pelo meio antes de chegar ao Sporting, em 2021, depois de o clube saciar a barriga do jejum de títulos de campeão nacional. É hoje chefe do departamento de nutrição dos leões e acabou de lançar um livro, ‘Muito Mais do que Proteína’, no qual declaradamente assume “uma guerra à desinformação” que vê grassar diante de futebolistas e atletas profissionais, como de desportistas amadores, todos cada vez mais recetivos a formas de obterem ganhos marginas na sua performance.
No dia em que ia apresentar o livro cujo prefácio saiu das letras de Rúben Amorim, o treinador inóspito em entrevistas e raríssimo em palavreado dado além de flash interviews e conferências de imprensa, António Pedro Mendes guardou parte da manhã para conversar com a Tribuna Expresso. Enérgico e entusiasmado a receber cada perguntas acerca de nutrição, sensações que emanou ao falar de Arsène Wenger, um precursor nos seus tempos de Arsenal que até chegou a fazer a introdução num artigo científico, ou de como não é, de todo, descabido servir hambúrgueres no balneário aos jogadores mal termine o jogo - é uma oportunidade para aproveitar o momento em que “o atleta tem uma descarga emocional que leva a uma maior apetência por comidas de maior palatibilidade”. A nutrição, ciência recente, tem hoje 10/11 profissionais dedicados no departamento que lidera no Sporting, clube longe de ser indiferente à área e que em Alcochete tem uma cantina dedicada só a quem trabalha no futebol.
É lá, a regular com pinças o que é servido aos atletas e a instruí-los acerca do que devem comer e em que quantidades, que é possível controlar cerca de 80% do que chega à barriga de quem corre atrás de uma bola pelo Sporting se os e as futebolistas ainda levarem para casa alguma refeição. “Eu sei que os outros 20% podem ser maus, mas aqueles 80% fomos nós que definimos. Vamos ter um impacto muito grande”, explica. Porque a nutrição, dizia uma frase batida e “curiosa” que António Pedro Mendes recorda, “não transforma um atleta medíocre num de elite, o que pode fazer é que um atleta com potencial em chegar à elite, seja apenas um medíocre”.
Tanto no teu livro como nas tuas redes sociais declaras uma “guerra à desinformação” sobre a nutrição. Essa é a tua principal cruzada?
Diria que sim, tanto com a escrita do livro como com o podcast que criei há três, quatro meses. Sendo a informação útil, sincera e honesta menos vendável do que a desinformação, àquela mais sensacionalista, acredito que tudo o que pudermos fazer em termos de projetos que possam potenciar a literacia em nutrição deva ser feito. Esse foi um dos grandes motivos que me levou a escrever um livro. Não conheço nenhum que aborde o grande tema da nutrição em contexto desportivo. Depois, o que existe são alguns blogs, sites e redes sociais que devem um bocadinho à honestidade intelectual e, muitas vezes, têm alguns conflitos de interesse, nomeadamente económicos, muito ligados. Portanto, senti que fazia falta um projeto como este.
Preocupa-te o acesso dos atletas profissionais a esse tipo de conteúdo? Afinal, qualquer pessoa tem um telemóvel na palma da mão e apanha isso redes sociais.
E até, diria eu, com argumentos mais convincentes para quem é atleta do que se calhar os nutricionistas que trabalham com base em evidência científica.
Como assim?
O que é um argumento convincente para um atleta? Por exemplo, outro colega dizer que fez determinada coisa e se sentiu melhor com isso. Aí já estamos a não conseguir dissociar um efeito placebo de um efeito fisiológico. Isto acontece muito com os vendedores de banha de cobra porque, efetivamente, conseguem conquistar o atleta ou a procura que os procura porque prometem soluções relativamente milagrosas, coisas inovadores que eles nunca tinham ouvido falar antes e isso leva a que os atletas sintam que estão a ter um tratamento personalizado, diferenciado do que se calhar receberam até ao momento. É por isso que digo ser tão difícil lutar contra a desinformação, estamos a lutar com argumentos menos convincentes, ou sexys, do que aqueles que os vendedores de banha de cobra têm para oferecer.
Achas que os atletas vos encaram, a vocês que trabalham nos clubes e tu no Sporting, como aqueles chatos que estão lá a ter uma conversa científica com eles?
Eu espero que não, tanto no meu caso como na elite no desporto acredito que os profissionais escolhidos para trabalharem nesta área têm a capacidade, enfim, de convencer os atletas. Mas, em muitos clubes em que não há um nutricionista ou um departamento de nutrição, a procura por estes exemplos mais exóticos acaba por ser maior. Ainda assim, temos alguns exemplos na imprensa desportiva de atletas do Barcelona, mais recentemente do Atlético de Madrid, que são clubes com departamentos muito bem estruturados e com muita qualidade, a procurarem ajuda fora. E esta procura é, diria, na esperança de um tratamento diferenciado e inovador. Quando ouvimos falar em algo inovador, isso deve ser logo o nosso primeiro sinal de alerta para potencialmente vir aí banha de cobra, vem aí charlatanice. É esse logo o principal sinal.
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