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Rui Vitória: “A minha sensibilidade foi: não posso deixar o Benfica assim. Vou tentar até ao limite mesmo que saia daqui prejudicado”

Saiu do Benfica e, 10 dias depois, era confirmado no Al-Nassr. Não tinha planeado ir para a Arábia Saudita porque "nunca" fez "um projeto de carreira definido" e garante que o que lhe deu "mais gozo" no clube da Luz foi apostar na formação e em portugueses e "conseguir ganhar". Esta é a primeira parte da entrevista a Rui Vitória, mais focada na saída do Benfica e na vida na Arábia, originalmente publicada no Expresso de 20 de julho de 2019

Texto Diogo Pombo, Fotos Tiago Miranda e Vídeo José Cedovim Pinto

Rui Vitória, ex-treinador do Benfica

TIAGO MIRANDA

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Fora o trabalho, como é viver na Arábia Saudita?
A experiência tem sido melhor do que pensava e adaptei-me muito bem. Temos uma imagem muito diferente da realidade de quem lá vive. O meu dia-a-dia, primeiro, é praticamente futebol, mas lá treina-se mais da parte da tarde, de manhã não se treina. É tudo mais puxado para a noite: acorda-se mais tarde, deitamo-nos mais tarde. Mas tem sido muito positiva também porque, de certa forma, cá temos as expetativas negativas e lá verifiquei que é o contrário.

O Ramadão é assim tão difícil como se julga ser?
Difícil é fazê-lo na Europa. O ritmo é diferente. Lá é tudo adaptado em função do Ramadão. Os empregos são alterados, os nossos horários de treino são alterados e todas as refeições também. Eles acabam por dormir durante o dia e fazem a vida mais à noite. No fundo, é inverter o ciclo, mas, como é uma coisa genérica, não se tem muita dificuldade. Vê-se os muçulmanos com um sentido muito positivo, mas cá é sempre associado a algo negativo, acha-se que os jogadores não vão aguentar. Mas, quando temos uma equipa envolvida nisto, fica mais fácil. Depois é gerir os estrangeiros que temos com os muçulmanos e temos que separar as coisas. Foi uma experiência de vida muito interessante nós, como equipa técnica, termos que montar isto. A própria confeção das refeições é diferente, eles não podem beber água durante o dia e tudo tem que ser bem pensado. Correu tudo bem, porque acabámos por ser campeões mesmo no meio do Ramadão.

Imagino que isto implique deitarem-se, também, às tantas.
Não é difícil, porque ao estarmos mais sozinhos, sem praticamente família lá, temos essa flexibilidade. Depois, o português tem capacidade de adaptação e de perceber o contexto, que faz toda a diferença. Foi uma experiência que vivi com muito agrado.

E como é dar treinos e trabalhar sempre com um tradutor ao lado?
[Ri-se] Quando cheguei lá, lembro-me que aterrei à hora de almoço e fui treinar ao final do dia. O primeiro treino foi uma estranheza enorme. Normalmente estou dentro do exercício e, de repente, tenho uma pessoa quase colada a mim, a andar por tudo o que é lado, sempre os dois juntos. Fez-me uma confusão tremenda. Mas tem que ser assim. Tem sido muito interessante e tem funcionado bem, apesar de não ter tradutor de português para árabe - tenho um tradutor inglês-árabe. Como o meu inglês não era muito fluído, foi um desafio que criei a mim mesmo. Depois, porque vivo desta passagem da mensagem com emoção, o meu tradutor faz isso exatamente assim. Se altero o tom de voz, ele também altera. Temos situações curiosas por causa disso.

Não sente que do português para o inglês e do inglês para o árabe se perde alguma coisa?
Perde-se, porque sou muito de ir buscar expressões do nosso dia-a-dia e transportar isso para situações árabes fica difícil. Por exemplo: “O cavalo passa à porta de toda a gente”. Tenho que passar isto para inglês. Isto, muitas vezes, surge a meio das palestras de forma muito espontânea e intuitiva. E ficamos ali um bocado apertados, porque também temos de pensar na cultura. Então, comecei a preparar as minhas intervenções com o tradutor, especialmente as de pré-jogo e durante o intervalo, para ver se conseguia transmitir aquilo que eu queria e se isso se percebia. Estas expressões não são fáceis de ser traduzidas.

Ajuda que o tradutor perceba de futebol ou pode limitar-se só a traduzir?
Ajuda muito, muito. Este tradutor já tem 20 anos de experiência, já passou por muitos treinadores. Há coisas nos exercícios que nós, treinadores e jogadores, quase só com uma indicação está percebido. Mas, se o tradutor não perceber, fica difícil. Eu não falo um inglês corretíssimo, mas ele percebe tudo aquilo que quero e passa a mensagem como eu gosto.

Estou a lembrar-me da final da Taça da Liga, com o Paços de Ferreira, em que vai ao quarto dos jogadores dar-lhes uma carta. Na Arábia Saudita fica mais complicado ter estas estratégias de comunicação/motivação?
[Ri-se] Tive um episódio curioso na Arábia. Faço isso em função do contexto que tenho à frente - dos jogadores, do grupo, da cultura. Num dos últimos jogos, quis passar um pequeno vídeo, com 30 segundos, para apelar um bocadinho à solidariedade, à cooperação, à entreajuda e até à humildade. O vídeo era simples, era uma pega de uma tourada. O vídeo estava praticamente pronto para avançar e eu, à última hora, lembrei-me de perguntar ao meu tradutor. Quando lhe pergunto, ele diz: "Coach, is better no". Porque eles podiam entender aquilo de forma diferente, não conhecem as touradas, parece que estamos a enfrentar um touro... O que é que aconteceu? Perdemos. Durante a semana seguinte, o homem estava completamente assustado, andava em pânico, porque associou: será que isto aconteceu porque não fiz o que o coach queria? Tive que o tranquilizar, claro que não perdemos por não passarmos o vídeo.

Os árabes são muito supersticiosos?
Não senti. É evidente que o dia deles é associado à parte religiosa e temos que ter um cuidado extremo com as rezas. Mas não vejo os jogadores agarrados a isso para ganharem. A reza não podemos contrariar e tudo tem que ser certo. Temos que preparar sempre o processo de treino em função dos horários das rezas.

Porque decidiu ir para o Al Nassr?
Surgiu-me um convite aliciante, financeiramente também. Depois, porque entendi duas coisas: ou ficava em Portugal e, se calhar, fazia uma paragem durante uns meses, também para fazer uma introspeção e pensar um bocado na vida; ou saía um bocadinho para um contexto diferente e aproveitava uma experiência que podia ser importante para o ano seguinte. Fazer três, quatro meses de uma época para agora entrarmos neste, se não fôssemos campeões, preparávamos as coisas para o sermos este ano. Foi a parte financeira e foi o discurso das pessoas. Senti uma persistência enorme em quererem que eu fosse para lá. Testemunhei isso porque podiam ter contratado outro treinador, havia uma pressão enorme para que fosse buscar alguém, quando a equipa não estava a ter resultados. Houve uma pessoa que foi convicta, que forçou, que esperou e eles diziam-me muito isto: não queremos só um treinador, queremos um partner. Essa pessoa foi criticada, mas teve muito mérito para que eu fosse para lá.

Quem é essa pessoa?
É um elemento da anterior direção que agora vai sair. Foi, praticamente, a pessoa mais responsável por me levar para lá. Pelo discurso, pela convicção, pela forma como transmitiu a mensagem e como satisfez tudo o que queríamos para irmos para a Arábia. Estiveram, salvo erro, dois meses com o Hélder [Cristóvão] como treinador interino e esperaram porque viram que era eu quem eles queriam. E olhe, deu certo.

Tomada a decisão de sair de Portugal, quis que fosse para um campeonato mais afastado?
Teve que ser uma decisão de 24, 48 horas. Ou se decidia naquela altura, ou eles tinham que optar por outro treinador. Não tive tempo para amadurecer muito isso. Não fiz um projeto de carreira muito definido, é uma das coisas que tenho para a minha carreira. Vou abraçando as situações que vão aparecendo, que me tocam, onde vejo que posso ser feliz. Tive ali qualquer coisa, um feeling com aquela pessoa... Até disse uma frase na altura: "Nós vamos, mas vamos para ganhar".

Entre a saída do Benfica e o anúncio oficial no Al-Nassr passaram sete dias.
Foi menos até. Ficou decidido num fim-de-semana. Saí na sexta-feira e, na segunda, tive desde as 10h até às 3h e tal da manhã para decidir se ia para a Arábia.

Quando saiu do Benfica disse que havia um desgaste da opinião pública. Sentiu-se aliviado por sair de Portugal?
Não. Às vezes, estamos envolvidos neste contexto e acabamos todos contagiados por isso. É quase como morarmos todos na mesma rua e vivemos a vida uns dos outros. Quando fui para a Arábia não era porque necessitasse desse alívio. Foi, também, por obrigação da profissão, porque me tive que dedicar ao Al-Nassr, ponto. Passei a debruçar-me completamente sobre o que se passava na Arábia. Não foi um alívio, mas acabou por ser um virar de página.

Saiu a bem do Benfica e de forma pacífica, como chegou a dizer?
Sim, completamente a bem. Não havia outra razão. Dava-me e dou-me muito bem com as pessoas que estavam a trabalhar diretamente comigo, nomeadamente com o presidente e o diretor-desportivo. Não houve qualquer problema em relação a isso. Entendemos que há momentos em que temos de mudar de estrada para chegarmos ao caminho comum. Foi isso que fiz e que o clube também fez.

Um mês antes de sair, Luís Filipe Vieira vê uma luz, tem um feeling e o Rui fica. O que sentiu?
Nessa altura tomámos a decisão em conjunto. Nesse dia, se saísse dessa forma do Benfica, se calhar estava a assinar por outro clube durante a tarde. Era assim. Olhando agora para trás, talvez o indicado fosse sair. Mas todos quisemos tentar. Sabíamos o que estávamos a fazer, o que tínhamos construído durante três anos. Fiz isto de consciência e hoje fazia na mesma. Aceitei continuar e o clube aceitou que continuasse.

Mas hoje aceitaria, mesmo, de novo?
Gosto sempre de me posicionar no momento. Agora é fácil. Naquele momento, a minha sensibilidade foi: se ainda acredito nisto, não posso deixar o Benfica assim. Vou tentar até ao limite, mesmo que saia daqui prejudicado.

Quando um treinador passa muitos anos no mesmo clube, isso cria uma ligação que depois dificulta estas decisões?
Não quero dizer frieza, mas sou pragmático na minha vida. Mas, em relação a isso, sou mais sentimental, de facto. Estive quatro anos em Fátima, quatro anos em Guimarães, fiz um ano em Paços de Ferreira e no Benfica já ia para o quarto ano. Nunca pensei na história de ganhar e sair, como alguns colegas meus fazem, com toda a legitimidade. Mas nunca pensei nisso porque é assim que me sinto bem. Olhando para trás, foram quase quatro anos que vivi em cada clube. Porque gosto de me envolver muito mais, vou mais além do que a apresentação de uma equipa ao fim de semana e, às tantas, estou envolvido na parte organizacional das equipas. É assim que gosto de estar e não vejo que seja um problema. Aliás, o dia-a-dia vai-me dando razão, cada vez mais os clubes português não fazem contratos só por um ano com os treinadores. Há mais estabilidade nas equipas e há noção de que essa estabilidade traz frutos. Também penso assim.

Luís Filipe Vieira disse que os benfiquistas ainda iam ter muitas saudades suas. O que acha?
Não sei. O que o presidente quis dizer, percebo perfeitamente, não tem a ver com resultados. E posso falar disto abertamente: tem a ver com o facto de nós, em conjunto mas partindo muito dele, termos mudado um bocadinho o que se falou como o paradigma no Benfica. Houve um trabalho árduo em que corremos riscos e foi nesse sentido. Sei como o presidente pensa, conheço-o bem e aquilo foi uma mensagem clara de amizade. Tem a ver com ele sentir que tínhamos contribuído muito para o Benfica. Ele acreditava naquela mudança e eu também. E conseguimos aquilo que pensámos ao início.

PATRICIA DE MELO MOREIRA

Havia o risco que qualquer treinador herda caso não seja campeão no Benfica e continue no clube?
O maior risco não foi aí. Quer dizer, ir para o Benfica e para um clube grande é sempre arriscado, mas é algo a que nunca se pode negar. Todos tínhamos a noção de que ir para o Benfica, naquele contexto, em que o treinador anterior tinha sido campeão, em que havia uma esperança enorme de renovação do título - no caso, seria o tri - era um risco. Mas o risco foi a mudança que queríamos fazer. Havia jogadores da equipa B que fui acompanhando e que entedíamos que podíamos ir lançando na equipa principal, esse é que foi o risco. Podia ter lá chegado e ter voltado para trás, como esteve quase a acontecer numa primeira fase da época em que as coisas não estavam a correr bem e numa segunda fase é que começaram a aparecer os resultados. Aconteceu o mesmo quando fui para o Paços, em que senti que vou e se calhar volto para a Segunda Liga. Depois, o risco foi a continuidade do trabalho, quando ganhámos e depois não ganhámos. O que me deu maior sabor foi ir para o Benfica e acreditar na ideia que levava: apostar em jogadores que podia haver na formação, sempre que possível apostar em mais portugueses e conseguir ganhar. Isso é que me deu gozo, porque pensámos nisso antecipadamente.

Sendo treinador do Benfica, está sempre a ir a conferências de imprensa e é questionado sobre tudo e mais alguma coisa do clube. É desgastante?
Muito. Depois, é curioso analisar o que cada vez mais treinadores começam a ter o tal ano sabático. E estamos a falar de treinadores jovens: o Guardiola já fez, o Ancelotti, o Luís Enrique, o Zidane, o Villas-Boas. Teoricamente, uma pessoa com 60 anos, com a vida organizada em termos financeiros, é que pensa em descansar um ano. Mas não, estamos a falar de treinadores jovens e isso quer dizer que há uma tensão muito grande nesta profissão. Tem que se ter uma estrutura mental com determinado perfil, se não, temos a propensão para nos desequilibrarmos e podermos começar a cometer erros.

Chegou muitas vezes a casa com a cabeça a arder?
Isso não, porque desligo. Consigo ser muito auto-regulado em relação a isso. Saía do Seixal e fazia questão de ter a minha vida normal em casa. Via televisão com as minhas filhas quando tinha de ver. Era um cidadão normal e conseguia separar. Entendo que, para ser melhor treinador, tenho que ter esta vida social. É uma questão de equilíbrio.

Ter a família em casa não lhe fez falta na Arábia Saudita?
Também fez, mas, lá está, o português consegue-se adaptar. Claro que é sempre agradável ter o conforto da família em casa quando se tem um dia menos bom. Mas a vida de treinador é isto, nunca podemos ter estabilidade total, para se ter uma coisa não se pode ter outra. Agora é passar por estes sacrifícios, é mesmo assim, não vale a pena estar a lutar contra isto.

Conseguiu ir vendo os jogos do Benfica este tempo na Arábia Saudita?
Não via muito futebol português. Lá via um jogo ou outro, mas não. Preocupei-me com aquilo que se passava na Arábia, fiz quase um reset. É evidente que ia acompanhando, mas não o suficiente para ter uma opinião fundamentada e ao pormenor.

Soube-lhe bem desligar do que se passava em Portugal?
Sim, também para viver outra realidade, conhecer outro mundo, integrar-me noutra sociedade e adaptar-me à cultura. Soube-me muito bem. Não tive esse afastamento por medo do futebol português, não foi por isso. Foi porque me soube bem conhecer outras coisas. Fui para a Arábia com uma perspetiva muito positiva e foi meio caminho andado para o sucesso.

Quando estava no Benfica lia muito o que os jornais escreviam e o que se dizia nos programas de televisão?
Nada, deixei de ver. É com alguma mágoa que o digo, mas, quando era muito mais novo tinha a preocupação de, todos os dias, ler um jornal desportivo. Gostava de estar no café a ler. A partir do Vitória de Guimarães deixei de ver os jornais desportivos. Só se houvesse alguma coisa que as pessoas que trabalhassem comigo me indicassem é que os lia. Na televisão deixei de ver os programas porque, a determinada altura, pensei: acrescenta ou não acrescenta para o meu bem-estar? Se não acrescenta, então prefiro ver outra coisa. Tenho mais coisas para fazer e ver com a minha família. E hoje dou por mim a receber os jornais e a não os ler. De certa forma, há um desgosto, algum lamento, porque acabamos por não dar tanta importância aquela informação, por não ser muito linear, é sempre muito embrulhada em muitas coisas.

É o tal desgaste de que falou quando saiu de Portugal?
Não, já muito antes disso só dava atenção aquilo que entendia ser pertinente para a minha profissão. Ou ao que me chamava atenção. Caso contrário, nem sequer estava para aí virado. Não ligava. Acho que desgostado é uma palavra muito forte, mas houve algum desgosto com esta parte que adorava antes de chegar a este nível. Quando era mais novo sabia tudo o que era segunda e terceira divisões, conhecia tudo, e a determinada altura perdi aquilo de que tanto gostava, que era olhar para esses campeonatos. Não por qualquer falta de humildade, ou por ter chegado ao Benfica, não. Pura e simplesmente, deixei de ler jornais. Perdi algum rasto a jogadores, treinadores e clubes com quem me dava bem.