Crónica de Jogo

O Sporting abusou do talento de Quenda e Trincão contra quem veio do Cazaquistão

O Sporting abusou do talento de Quenda e Trincão contra quem veio do Cazaquistão
Gualter Fatia

Os leões arrancaram esta época de Liga dos Campeões em Alvalade, anfitriões do Kairat que fez mais de 8.600 quilómetros e cruzou cinco fusos horários para perder, por 4-1, num jogo em que teve várias fases a ser sufocado. O Sporting teve um bis do intermitente, mas genial Trincão, acabou com 21 remates e viu o seu adolescente-prodígio tresandar a talento no melhor golo da noite

Humanos que somos, desde que virámos gente que precisámos de nos situar, ter noção onde estamos, então os antepassados puseram-se a desenhar mapas, giz, pincel ou lápis na mão, a darem uso ao polegar nesse uso com ar de ancestral por comparação ao atual, de esfregar o dedo no ecrã se fizerem o obséquio, antes de continuarem a ler, de irem ver no mapa onde fica Almaty, lá longe no Cazaquistão, quase a beijar na China. São mais de 8.600 quilómetros do lugar ao qual é lisonjeiro tratar por europeu até Lisboa, uma canseira de viagem, pelo menos 90 horas se feita ao supetão de carro ou 11 a voar contra os cinco fusos horários de diferença.

Poderia ser a desculpa cabida, aceitável se ouvida, dos jogadores do Kairat para o certo assomo a que foram sujeitos pelo Sporting sob as luzes brilhantes da primeira noite de Champions da época em Alvalade, de bancadas atoladas a assistir à pressa harmónica com que, no arranque, Hjulmand recuperou uma bola dentro do meio-campo contrário, Suárez deu-lhe uso e lançou Pedro Gonçalves para o engenho deste sentar um adversário na área e rematar com a parte exterior do pé direito. A perna de um nascido em 2007 negou-lhe o madrugador intento.

A estreia dos 18 anos do guarda-redes, Sherkhan Kalmurza, era brindada com um cerco impiedoso, cheio de arqueiros, flechas e disparos. Os leões faziam-se mandões, os cazaques encolhiam-se, empurrados para trás pela meia dúzia de jogadores que o Sporting mantinha dentro do bloco adversário, quando atacava, confiante de que ficar com Quaresma e Inácio atrás, com Hjulmand e Kochorashvili por perto, bastava para estancar qualquer intenção do Kairat nas bolas que perdesse. A asfixia resultava, um lado jogava para sufocar, o outro resistia na tentativa de respirar.

RODRIGO ANTUNES

As combinações a abusarem das descidas de Luis Suárez no campo, como pivô, sucediam-se, Trincão e Pote na sua órbita a combinarem com poucos toques. As jogadas fluíam nas costas dos médios do Kairat. Pote desfazia outro adversário perto da área antes de cruzar, Quenda insistia em ludibriar pernas da direita para dentro, mas ao disparar, por duas vezes, houve muitas pernas pela frente. O volume ofensivo era gordo, até Kochorashvili inventou uma espécie de pontapé de bicicleta pouco antes de tanta insistência contra os lesados por algum jet-lag os apanhar: ao preparar-se para aliviar uma bola que cortou, na área, Aleksandr Mrynskiy pontapeou Suárez, rápido na ratice com que detetou a chance de forçar uma ratoeira.

O colombiano pôs o pé onde o cazaque ia ceifar o seu, levou a pancada, foi penálti, dos 11 metros é distância para Hjulmand, mas a confiança do capitão a atacar a bola embalado para abrandar à última, dando um saltinho antes de plantar o pé de apoio, resultou apenas em metade. Ao retardar o remate, o capitão do Sporting fez tombar o guardião, o mais difícil caíra, faltou o fácil: pontapeou a bola para o meio da baliza, ao alcance da perna direita (a mesma que bloqueara Pote, no arranque) que Kalmurza esticou, por instinto. Num instante, Alvalade arriscava parir um herói adolescente.

Ou melhor, não foi apenas com um, porque o imberbe guardião, de feições quase infantis se tiverem outra bondade de verem pelas fotografias, ameaçou ser a cara de uma frustração dos leões, que decididos a não quebrar continuaram a carregar, insistiram, ainda mais jogadores projetaram para o ataque, tanto que um par de perdas de bolas permitiu ao Kairat ver a baliza. Numa delas, o fenómeno com tempero cazaque, Dastan Satpaev, estourou um disparo para forçar trabalho a João Virgínia - hábil avançado, rápido de processos, estreou-se no futebol aos 15 anos, chegou à seleção aos 16 e com 17 já foi apanhado na pesca de arrastão do Chelsea a qualquer talento sem idade legal para conduzir.

RODRIGO ANTUNES

A sua tentativa acentuou uma equipa do Sporting furibunda, também funesta no seu embalo para o ataque. Seriam 14 os remates feitos até ao intervalo, Pote voltou a tentar, Luis Suárez canalizou a sua fúria à facilidade com que monte remates com o pé esquerdo, sempre em força, lá foi um contra o poste. Quenda rematou em arco, a tresandar a golo, mas Sherkhan Kalmurza voou cheio de estilo. Teve de ser o mais discreto dos atacantes, quem espanta por a sua arte ainda conhecer a intermitência de quem agarra um jogo pelo colarinho e depois se parece evadir dele, desaparecendo na neblina, a aliviar o Sporting no jogo.

Numa insistência à entrada da área, servido por um toque de calcanhar de Kochorashvili, o pé canhoto de Francisco Trincão golpeou a bola de primeira, desenhou com ela um arco a fugir das luvas do miúdo na baliza que entendeu a trajetória, pulou ao seu encontro, mas estirou o braço tarde demais. A chapada que tentou dar no remate seria uma festinha. A noite de Kalmurza, afinal, tinha desgostos.

Por pouco, no reatar, os leões não conheceram um. O Kairat vindo de Almaty retornou ao campo arisco com a toada do jogo, voltou a pressionar alto e a apertar a saída de bola do Sporting, logo na área. Vindos de tão longe, queriam manter-se perto do resultado e tiveram uma recuperação alta, serviram Satpaev e só João Virgínia, rápido a cair ao remate, impediu um festejo do prodígio do Cazaquistão. Pouco depois, o avançado Jorginho, um dos portugueses que rumaram ao Oriente para jogarem na Champions ocidental (o outro, Luís Amado, estava na defesa) arranjou espaço à beira da área e rematou. A bola sobrevoou a barra, mas o Kairat mostrava que não se afastara assim tanto da disputa do encontro.

DeFodi Images

Mas, estancada essa reação, resistência dada ao espernear, o Sporting pouco demorou a recompor-se. Antes da hora de jogo já Suárez, após baixar de novo em apoio, servir Trincão e este, cheio de técnica, lançar Pote na direita para este cruzar e o colombiano desviar a bola para a barra, por pouco não castigando uma saída extemporânea, por demais incauta, de Kalmurza, contra quem embateu. O jovem guarda-redes teria outra, para dessa vez chocar com Pote. Foi como um duplo toque da campainha, acabava o recreio.

Já depois de Rui Borges, vendo as amostras de vacilos na equipa, substituir três jogadores de uma assentada, abdicando de Pedro Gonçalves e Suárez além de Kochorashvili, os leões tiveram um conjunto de minutos avassaladores e a condizer. A um trio de voltas ao relógio foi confirmar a vitória, cheio de um ímpeto que o treinador pareceu querer propagar à equipa com as mexidas.

Primeiro foi o talentoso a quem soa a insolência descrever como intermitente, mas na sua existência-toupeira, a mostrar-se e a ausentar-se por momentos do jogo, Francisco Trincão usando a sua varinha, doseando a magia. Afinal, se somos humanos tendemos a entranhar o que vira costume, o que muito se repete. Aos 65’, após uma cavalgada de Fresneda pela direita (não carece de agressividade a atacar adversário, falta-lhe servir melhor os seus), lá estava, a pedir-lhe a bola atrás para novamente de primeira encaixar a bola a um canto da baliza. Com calma, compostura, ajeitando o pé à situação.

RODRIGO ANTUNES

Foi a bola ao meio e, quando o Sporting a reaviu, Geovanny Quenda pediu-a, zarpou da direita, correu rumo ao centro e deixou-a em Alisson Santos. Aos 67’, recebeu e prontamente rematou, estreando-se a marcar na sua estreia na Champions. Depois sim, logo na jogada seguinte, Alvalade assistiu à mais cabal prova de que em Lisboa moram semelhanças com Kairat. Também já contratado pelo Chelsea, o adolescente Quenda recebeu um passe, à direita, enfrentou um cazaque, depois outro, ainda um mais, com a sua maneira bamboleante de driblar, o corpo a baloiçar em enganos e a bola quieta, a ver os corpos adversários a desequilibrarem-se.

Aos 68’, depois de os enganar a todos, um balbuceio propositado, passou o 4-0 às redes.

Era o adolescente-prodígio de Alvalade a mostrar, cheio de exuberância, com direito a camisola despida, o seu talento a uma falange que a julgar pela efusão pouco ou nada duvidará dele, do tipo de aptidão que rareia no futebol, mas cujas aparições na equipa têm rareado pela preferência do treinador por Geny Catamo.

Gualter Fatia

Mais fintas de Quenda haveria, viram-se passes bonitos de Morita, notou-se a vontade algo trapalhona de Ioannidis e o frenesim pouco concreto de Alisson, pela esquerda. Os recursos abundam no Sporting, quase incomparáveis com os do Kairat, que faria o seu golo, quase no fim, num relaxamento de defesa dos leões aproveitada por Edmilson - um avançado com passado em Portugal, onde jogou no Länk Vilaverdense e no Marco, na terceira e quarta divisões.

No Cazaquistão pescam como podem, e já puderam muito, este era o 9.º jogo da equipa nesta Champions, superadas quatro eliminatórias para aterrarem em Lisboa.

De Almaty à capital portuguesa cabem mais milhas futebolísticas do que quilómetros terrestres e o Sporting quis, de início, acentuar as diferenças que fez por engordar durante bastante mais tempo do que aqueles três minutos avassaladores. Era o jogo mais acessível dos leões nesta Liga dos Campeões, a seguir viajará a Nápoles, haverá de ir a Munique, acabará em Bilbao. O seu mapa não lhe dará tantas novidades nas latitudes como a quem vem do Cazaquistão para levar com o talento de Quenda e Trincão.

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