A distinção de treinador mais aprumado já ninguém tira a Hajime Moriyasu. O japonês da camisa sem um vinco, do nó de gravata simétrico, do colete apertado dentro do casaco fechado e da postura senhorial a segurar o pequeno bloco de notas na mão, escrevinhando apontamentos curtos sem um pingo de emoção na cara. Feitos os rabiscos, procede de imediato à postura de origem, cruzando as mãos atrás das costas e prosseguindo como estátua aperaltada e de pé diante do banco de suplentes.
Não se lhe notou, pelo menos na atenção do realizador de serviço, outra reação quando a primeira parte já ia longa e o Japão, respeitador de meticulosidade treinada na bola parada, bateu um canto à maneira curta para mexer com a linha defensiva croata e Ritsu Doan cruzar. A bola curvada desviou num adversário e Daizen Maeda, um pequeno rato de área que se farta de correr no Celtic de Glasgow e há pouco fazia-o pelo Marítimo do Funchal, rematou-a para os nipónicos irem com uma novel sensação neste Mundial para o intervalo.
Nunca tinham marcado um golo (43’) sem sofrerem um primeiro, desconheciam o que é serem eles a provocarem alarido em vez de se apressarem a mandar equipar as suas armas nada secretas para se fazerem à vida. Os japoneses chegaram aos ‘oitavos’ reagindo mais do que agindo e a culpa é do senhor formal na vestimenta, conservador nas abordagens e conspirador com fados do jogo. Mas, frente aos croatas com médios usurpadores de bola e uma seleção assente na capacidade desse trio em tomar conta das operações, Moriyasu saiu um pouco da casca.
Divergindo da estratégia usada contra espanhóis e alemães, adversários igualmente ditatoriais da bola, os japoneses quiseram tê-la. Ou dividi-la, pelo menos. Sem esperarem atrás e concederem as rédeas do jogo sem pudor, Morita e Endo deram-se à saída de bola a meio-campo para Doan e Kamada andarem entre linhas a pedirem a remessa das jogadas. Já não eram a espera paciente por ataques rápidos, queriam algum protagonismo a lidarem de pé para pé, passe curto e passe curto, com o bloco subido da Croácia que não os importunava muito por cada ação japonesa ser recebida com uma pressão mansa.
As aproximações perigosas a uma área foram, assim, dos japoneses revigorados pela valentia recém-achada pelo seu treinador e que apenas foi incomodada quando a Croácia, presa na lenta redoma com que pretendia manter a bola, tentava lançar Kramaric ou Perisic nas costas da errática linha defensiva comandada por Maya Yoshida. Só a tentarem passes na profundidade ou a carregarem no espaço aéreo sobre a área nipónica causavam incómodos.
Pouco demorou até a agressividade no ataque à frente do adversário e a desigualdade de estaturas congeminarem para Perisic, surgindo nas barbas de Ito, cabecear quase no limite da área um cruzamento vindo da bota de Lovren, um defesa central. O empate (55’) deu ao jogo a fragrância japonesa de ser uma questão de tempo até o selecionador Moriyasu despertar as pernas dos talentosos a repousarem no banco e, claro, a técnica ambidestra de Mitoma, a potência de Asano a desmarcar-se e a fineza de Minamino com bola no pé seriam lançadas quando o rame-rame já se alastrara por completo.

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Feita a hora de partida - e o remate curvado de Endo, mais o pontapé em força de Modric - não mais se veria animação nas áreas. A partida era um novelo a meio-campo, a lentidão croata a entrelaçar-se na dúvida japonesa entre manter a segurança dos passes no pé ou procurar a vertigem de lançar as setas que tinha à espera no ataque. Ninguém se predispôs a levar a sua avante e o primeiro prolongamento deste Mundial apareceria para esgotar as pilhas de uma lenda e dar uma infelicidade aos espetadores: pouco antes dos 100 minutos, um Luka Modric fustigado por lutas no coração do campo saía. Com ele foi também Mateo Kovacic.
A cautela reinou como estratega da meia hora de bónus. Nada desempatou, tudo foi esgotando e salvo uma correria solitária de Mitoma, pela esquerda, a carregar sozinho um contra-ataque e a rematar à mão de Livakovic, as pernas do Japão cederiam primeiro. E as intenções, porque reter a bola, respirar com ela e obrigar os adversários a cansarem-se não é a formatação que o selecionador aprumado deu à equipa. Os poucos vislumbres em ataque posicional pertenceram à Croácia, ainda assim com parca criatividade face aos nomes que restavam em campo. Só Lovro Majer, na derradeira jogada, repescou uma segunda bola à beira da área para o remate não acertar na baliza.
A maior individualização que existe no futebol seria vista aqui, pela primeira vez, neste Mundial, os capitães Maya Yoshida e Dejan Lovren ainda sorridentes quando viam a moeda do árbitro rodopiar no ar para decidirem em que baliza se bateria os penáltis. Postos a 11 metros da baliza, na breve quietude onde o que vai dentro da cabeça ganha toneladas de peso, os japoneses das reviravoltas fantásticas cederiam. Sem nada a reverter, mas tudo a perder, Yoshida falharia depois das tímidas tentativas de Minamino e Mitoma, só Asano convertendo o seu pontapé enquanto os croatas diligentemente marcaram os seus - à exceção de Marco Livaja, todo-confiante que rematou ao poste o penálti que poderia ter decidido tudo.
Não que fossem exatamente estes, mas os croatas tiveram os nervos testados há quatro anos, na Rússia, onde solidificaram as ânsias nestas caminhadas da linha do meio-campo até à área e nos segundos entre o apito do árbitro e a corrida para a bola, intermitências dos nervos em que superaram Dinamarca e Rússia em 2018 e agora o Japão em 2022 para alcançarem os ‘quartos’. Luka Modric pulou relvado dentro com a sua lenda, que durará para deslizar classe nestes relvados por mais um dia, enquanto Hajime Moriyasu discursava no meio da roda de olhos encharcados em lágrimas dos japoneses.
A aventura levou-os tão longe quanto o Mundial anterior, mas a pegada no imaginário futebolística não deixou a mesma marca.