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Crónica de Jogo

Países Baixos - EUA. O football também é soccer, mas Memphis não é do Tennessee, Blind não é cego e Dumfries fez o resto

Grande jogo de abertura dos oitavos de final do Mundial, com neerlandeses e norte-americanos a entregarem um jogo aberto, dinâmico, onde ninguém especulou. A vitória por 3-1 dos Países Baixos explica-se para objetividade e pelo talento que ainda está no banco - mais do que dos jogadores suplentes, de um senhor chamado Louis van Gaal

Lídia Paralta Gomes

ADRIAN DENNIS/Getty

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Há um verbo que recentemente entrou no sempre dinâmico e curioso léxico do futebol que muito aprecio. Trata-se do vocábulo “especular”. Há equipas que especulam o jogo, futebolistas que abordam a narrativa do encontro de forma especulativa. Que é como quem diz entrar a estudar o jogo, perceber o que vem aí, contemplar a realidade e só depois agir. Especula o jogo quem nele não quer pegar, pelo menos em certos e determinados momentos, quem nele não quer ter a iniciativa. É provável que seja o antigo “pragmatismo”, quem sabe, mas nisto do futebol gosta-se sempre de inovar no dicionário, mesmo quando não é preciso.

Posto isto, o melhor deste Países Baixos - Estados Unidos da América, o jogo que abriu os oitavos de final deste Mundial 2022, é que ninguém especulou: foi um jogo dinâmico, aberto, com transições em barda e olhos na baliza das duas equipas. E no final ganhou aquela que, entre talento individual em campo e no banco, estava num nível superior.

E esse nível superior pressupõe também algum, lá está, pragmatismo. Os estrategas são mesmo assim e Louis van Gaal anda há mais tempo nisto do futebol que muitos de nós a calcorrear o planeta. O arranque do jogo, vivo e enérgico, com os Estados Unidos até por cima, precisava de alguma objetividade, que os Países Baixos não demoraram a dar. Aos 3’, Pulisic falhou uma oportunidade clara e, na resposta, Memphis Depay marcou na primeira chance prometedora dos Países Baixos, numa bela jogada rápida que virou o flanco, com Frenkie de Jong a livrar-se da pressão, a bola a passar de jogador vestido de laranja em jogador vestido de laranja até chegar a Dumfries, ligeiramente apagado neste Mundial até este sábado. O lateral cruzou atrasado e Memphis-not-Tennessee apareceu na zona dos 11 metros para encostar. Muito simples e eficaz.

Os Estados Unidos, que já estavam bem no jogo, continuaram o assédio à área, com Weah e Dest a assustarem. Mas seria numa fase em que o encontro até já estava mais mortiço - e com os jogadores norte-americanos a implorarem pelo intervalo - que apareceu o 2-0, uma quase cópia do primeiro, com a diferença de tudo ter começado num lançamento lateral na direita. Um par de tabelinhas moldou bem o lance, com de novo Dumfries a cruzar atrasado. Desta vez foi Daley Blind a surgir para encostar.

picture alliance/Getty

O intervalo não mudou o jogo, que após a pausa regressou veloz, proativo. Tim Ream teria reduzido logo nos primeiros momentos se Cody Gakpo não estivesse na linha para salvar e logo de seguida começou o festival de falhanços de Memphis Depay, com três oportunidades claras cada uma separada por 10 minutos. Todas desperdiçadas.

Do outro lado, a entrada de Haji Wright para o ataque pressupunha um futebol mais direto de uma equipa que na fase de grupos sofreu e marcou poucos golos, mas que não coíbe de os procurar: isto do football ser superior ao soccer já foi bem mais verdade. E foi mesmo o suplente a trazer de novo alguma empolgação a um jogo que sempre pareceu estar em aberto, apesar da maior competência laranja nos momentos decisivos. Depois de uma oportunidade falhada, no canto Wright deu um toque mágico na bola que se transformou numa espécie de chapéu que enganou Noppert. Um toque aparentemente involuntário, quem sabe, ou não, vamos pensar que não, vamos acreditar que foi tudo pela beleza do jogo.

O que interessou, na altura, foi que os Estados Unidos podiam sonhar com o empate.

O problema é que quatro minutos depois, aos 80’, Dumfries deixou-se de assistências para ele próprio marcar, vindo da ala para concretizar um cruzamento largo de Blind. Talvez um golpe demasiado duro para os Estados Unidos, que, lá está, fez um favor ao football não especulando nunca com o jogo. Os norte-americano vão para casa, mas com a certeza que há uma boa geração para o Mundial em casa, daqui a quatro anos. E os neerlandeses vão descansar para os ‘quartos’ sabendo que, a seguir, pode vir a Argentina e Messi, mas com gente como Depay, Dumfries, Aké ou Van Dijk a subir paulatinamente de nível no Catar. Sem especulações.