Após ter chocado contra um autocarro enquanto circulava a 60 km/h, os médicos disseram a Egan Bernal que tinha 95% de probabilidades de ficar paraplégico. Voltar a andar foi obra taumatúrgica. Nessa ocasião, talvez fosse mais fácil perguntar ao colombiano o que é que não danificou do que obrigá-lo a elencar todas as peças que esborrachou. Ainda assim, fê-lo: “Quase 20 ossos partidos... 11 costelas. Fémur. Rótula. T5-T6 [vértebras]. Odontoides. Metacarpo. Um polegar. Perdi um dente. Perfuração de ambos os pulmões.”
Bernal ganhou o Tour, em 2019, e o Giro, em 2021. O acidente, nesse ano da vitória do Giro, fez com que todos os dias que se seguiram fossem de superação, mas provar que está vivo não lhe bastou. Com a resiliência dos heróis, quis tentar até ao fim da carreira voltar à forma do passado. Talvez não o tenha conseguido. Talvez nunca o venha a conseguir. Talvez o seu exemplo de ciclista-milagre seja mais valioso do que qualquer pódio.
Em 2025, já tinha terminado em sétimo na Volta a Itália. Agora, mais de quatro anos depois da última vitória numa corrida (excluindo campeonatos nacionais), voltou a cruzar o risco branco em primeiro lugar, feito que devia ter sido mais bem celebrado.
As manifestações pró-Palestina voltaram a ter impacto na Vuelta. Tal como aconteceu na etapa 11, o final foi antecipado. A meta virtual foi colocada a 8 km da meta física e aí se tiraram os tempos e se definiu o vencedor. Egan Bernal bateu Mikel Landa, mas não houve levantar dos braços, apenas olhares intrigados com a efetiva conclusão do percurso.
Quando se entra na última semana de uma grande volta, até um suspiro pode ter segundas intenções. A desconfiança transmite-se como um vírus e a verdade confunde-se com a mentira. O instinto sobrepõe-se.
A UAE vive numa anarquia de ciclistas que são servidos pelos mesmos mecânicos, usam as mesmas bicicletas e licras, bebem os mesmos suplementos e dormem no mesmo hotel, mas talvez não estejam todos comprometidos com a causa comum. Entrando para a 16.ª etapa com 48 segundos de desvantagem para o camisola vermelha, João Almeida viu Marc Soler encorpar a fuga de 17 corredores.
O espanhol podia ser apenas um lobo solitário ou estar a movimentar-se dando possibilidade a uma jogada estratégica da UAE. Desatualizando as declarações do diretor da equipa, Matxin, que no dia de descanso disse à “Marca” que “trocaria as vitórias em etapas pela classificação geral”, Soler gastou energias que podiam ser usadas para defender João Almeida nas corridas decisivas que se aproximam.
A alma grande de Mikel Landa passou o grupo pela peneira e filtrou a lista de potenciais vencedores quando os foragidos começavam a esmorecer. Egan Bernal foi a reboque. O colombiano ia fazendo simultaneamente um ataque ao top-10 da classificação geral. A resposta do jovem Clément Braz Afonso foi igualmente digna. Soler não reagiu de imediato, mas perseguiu.
Quem menosprezasse a subida de segunda categoria plantada a 23,4 km, seria fortemente penalizado pelas pendentes a baterem nos 18% no Alto de Prado. Foi nessa fase crucial da corrida que Jonas Vingegaard teve um furo e trocou de bicicleta com Ben Tulett sem prejuízo para o dinamarquês.
Esta corrida de mangas arregaçadas não fez diferenças na luta pela camisola vermelha. O grupo principal atrasou-se cerca de seis minutos face ao vencedor. No entanto, João Almeida manteve a distância para o rival, ficando a aguardar mais oportunidades para iniciar a "Missão Remontada". A etapa 17 pode ajudar.
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