Esta reclusão não é um inferno nem uma tragédia. Inferno é viver como Anne Frank viveu. Tragédia é morrer como ela morreu
O "Atrás da Cortina" de hoje remete-nos para uma história conhecida, que parece a minha e a nossa. Que parece a vossa. De 1940 para 2020 ou a lição que o passada dá ao presente. Esta é a história de vida de Anne Frank, a menina judia, de alma pura e idade inocente, que foi obrigada a viver escondida, para tentar escapar ao regime de Hitler
25.03.2020 às 17h42

TIM SLOAN
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A fuga da família Frank para Amesterdão aconteceu em 1934, pouco depois da ascensão do nazismo ao poder. O início da perseguição ao povo judeu não lhes deixou alternativa.
Na Holanda, os primeiros tempos foram de normalidade e tranquilidade. Anne, pais e irmã tinham uma vida pacata, com qualidade e sem sobressalto, mas essa fase não duraria muito tempo.
A invasão alemã aos Países Baixos (1940) mudou tudo. Foi um momento viral, que obrigou uns a refugiarem-se em suas casas, outros a combaterem pela vida dos compatriotas, muitos a morrerem em nome deles.
A família de Anne decidiu que a única solução seria esconderem-se. Estar na rua não era opção, por ser demasiado perigoso. Permanecer em casa era menos arriscado, era a única saída que tinham.
Os dois anos seguintes foram passados em condições que muitos de nós dificilmente sobreviveríamos: confinados num anexo secreto, exíguo e sem as mínimas condições de habitabilidade, não tinham luz, água ou gás. Não tinham televisão nem qualquer outra distração.
Eram, ao todo, oito pessoas (juntaram-se outras mais tarde), amontoadas numa espécie de labirinto, montado estrategicamente para não ser visto. Uma casa de bonecas dissimulada por armários antigos, escadarias inclinadas e cortinas fechadas.
Do sol nem um raio. Nem a sombra.
O banho era semanal e racionado à chávena. A comida escassa e escrupulosamente repartida.
A vida era vivida assim. A sobreviver mas pouco.
Uma vez por dia, ligavam o rádio com volume baixo e ouviam as notícias. Tinham esperança que fossem boas, mas raramente eram animadoras.
Sabiam, no entanto, que aquela prisão garantia-lhes liberdade. Sabiam que mais valia estar vivo numa cela temporária do que mortos numa qualquer vala ao ar livre.
Os dias passavam lentamente e o silêncio só era interrompido pelo estrondo das bombas que caíam, ora mais longe, ora perto. Nessas ocasiões, os corações disparavam, o medo ganhava espaço, as lágrimas saltavam.
Dia após dia a angústia era permanente. Havia, em todos, a sensação que a qualquer momento os alemães arrombariam a porta e levariam todos para a morte certa.
A jovem descreveu tudo isto num pequeno diário oferecido pelo seu pai. Foi nele que contou pormenores íntimos da sua vivência diária, tal como o namorico que teve com um jovem que se juntou a eles à dor imensa de perder o avô que tanto amava.
Foi nele que escreveu o que sentia a cada momento, o que sonhava ser quando fosse grande, o que mais temia enquanto menina. Foi através da sua publicação, anos mais tarde, que a humanidade ficou a conhecer a privação que Anne e família passaram. Foi através da sua divulgação que soubemos como foi aquela longa e penosa "quarentena".
Apesar de tantos sacrifícios, a família Frank foi denunciada, apanhada e enviada para "campos de trabalho" na Alemanha. Anne morreu doente, com 15 anos. Ironicamente quase no fim do conflito que tanto sofreu para ultrapassar.
Não é preciso fazer desenhos para explicar a relação desta história com aquilo que todos enfrentamos agora.
O que os Frank passaram, por obrigação, nós estamos a passar por prevenção. O nosso afastamento das pessoas deve-se à contenção de um adversário poderoso mas comum. Comum a todos.
A reclusão deles deveu-se a um inimigo humano, mais letal portanto, movido por instintos megalómanos e traços profundamente xenófobos, doentios.
O nosso vírus não discrimina cor, raça, credo ou extrato social.
O deles sim.
Para nós, ficar em casa pode ser chato, mas não nos obriga a ouvir bombas a explodir de madrugada nem nos impõe sacrifícios quase desumanos. O nosso medo é um medo diferente, de expectativa mas com esperança tremenda que tudo passe. O deles não era assim.
Temos luz, água, gás, televisão, internet, telemóveis e computadores. Temos jogos, brinquedos e animais de estimação. Temos a companhia de quem amamos, circulamos por casa como queremos.
Temos espaço, comida, condições de higiene, tranquilidade e liberdade para criar, inventar e produzir. Liberdade para descansar, conviver ou, simplesmente, estar. Temos até capacidade de trabalhar e produzir.
Somos mais livres entre quatro paredes do que fora delas.
Esta reclusão não é boa, não é agradável nem é desejada, mas não é um inferno nem uma tragédia. Inferno é viver como Anne Frank viveu. Tragédia é morrer como ela morreu.
Fiquem em casa.
Estaremos de regresso não tarda nada.
*A ideia de escrever sobre Anne Frank foi inspirada numa publicação da Diana Gaspar.
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