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Análise
Nuno Amado

Nuno Amado

Professor universitário

Um campeão competente, fiel às suas ideias e muito justo: o triunfo desportivo de Amorim é um soco no estômago do corporativismo serôdio

Nuno Amado elogia o Sporting 2020/21, montado por "um treinador sem diploma, o que no país dos doutores e do respeitinho a que gostamos de chamar Portugal – já se sabe – é crime de lesa-majestade". Rúben Amorim é especial porque "nos dias que correm, parece cada vez mais raro encontrar um treinador que não abdica das suas ideias e não se põe a mexer na posição dos jogadores em campo a toda a hora, em função dos adversários que tiver pela frente"

Nuno Amado

PATRICIA DE MELO MOREIRA/Getty

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Quando o campeonato nacional 2020-2021 se iniciou, não parecia provável que o Sporting pudesse lutar com Benfica e Porto pelo título de campeão. Mesmo que a equipa se excedesse, dificilmente se acreditava que as duas equipas que nas últimas duas décadas dividiram a glória entre si, e cujo nível de investimento se mantinha muito acima dos restantes opositores, pudessem falhar em simultâneo. Foi exactamente isso que aconteceu: por um lado, tanto o Porto como o Benfica estiveram muito abaixo do que se imaginava que pudessem fazer; por outro, o Sporting de Rúben Amorim superou todas as expectativas. Dezanove anos depois, e numa das épocas em que talvez se esperasse menos que isso pudesse acontecer, o Sporting volta pois a sagrar-se campeão nacional.

Há vários factores que ajudam a explicar o sucedido. Se Jorge Jesus pudesse apontar o principal, era bem provável que, dadas as declarações recorrentes a esse respeito, destacasse acima de todos os outros a imponderabilidade da pandemia. Não me parece justo menoscabar esse factor, e creio por isso que o técnico encarnado tem alguma razão quando repetidamente fala nisso, mas reduzir o insucesso da época desportiva do Benfica, e por conseguinte o sucesso de um dos adversários, às dificuldades que teve em gerir a forma dos atletas e em treinar com o grupo todo parece-me absurdo. É verdade que, dos três principais emblemas do futebol português, o Benfica foi talvez o mais afectado pela Covid-19, e que a equipa talvez tenha perdido gás numa altura em que já não podia perder mais pontos. Mas a qualidade do futebol apresentado por Jorge Jesus nunca convenceu, nem antes do surto mais problemático (ao longo do mês de Janeiro) nem depois. É difícil saber ao certo de que modo a doença prejudicou o rendimento posterior dos atletas infectados, mas já antes a equipa parecia pouco entrosada e se notavam problemas em todos os momentos de jogo, pelo que não faz sentido usar isso como desculpa. Foi de facto um ano atípico, e seria admissível explicar os maus resultados recorrendo ao pretexto da pandemia se de algum modo se notasse a relação entre esses maus resultados e uma inconsistência exibicional que os justificasse. Ora, não foi o caso. A qualidade do futebol apresentado pelo Benfica não sofreu grandes alterações ao longo da época: foi consistentemente medíocre.

Se a pergunta fosse feita a Sérgio Conceição, era por sua vez possível que o treinador do Porto justificasse o fracasso da época a nível interno pelas más arbitragens e conspirações análogas. Não foram poucos os jogos em que se socorreu desse expediente, dando aliás sequência à tradição bem portuguesa de achar que todos nos querem mal. Há um lado quixotesco nesse modo de estar na vida, que é o de ver gigantes onde muitas vezes só há moinhos. Ainda que possa ter razão em alguns casos, a revolta que se apodera de Sérgio Conceição sempre que o resultado não é o desejado pressupõe a convicção de que a sua equipa só não consegue superiorizar-se ao adversário quando é escandalosamente prejudicada. A ideia de que só falhamos se forças malévolas nos fizerem falhar, e contra as quais não podemos senão gritar, é um bom modo de limpar a consciência sempre que as coisas correm menos bem. E, mais do que isso, é um bom modo também de apelar à união de uma nação. Enquanto o povo acreditar que passa fome porque os inimigos lhes incendiaram as colheitas, não se lembra de ir empunhar forquilhas para a beira do palácio a perturbar a sesta a quem verdadeiramente lhes fica com o pão. Bem diz a sabedoria popular que com papas e bolos se enganam os tolos. Sérgio Conceição encarna um ideal de vida no qual muitos desses tolos na verdade se revêem, e que é bem descrito por outro provérbio bem conhecido: ‘quem não sente, não é filho de boa gente”. Para o mal e para o bem, o seu Porto tem sido, ao longo destes anos, o retrato perfeito desse ideal. E o futebol apresentado foi sempre pouco mais do que o sangue, suor e lágrimas que se exige aos que combatem por uma causa.

Nem um ano atípico, repleto de azares pandémicos, nem o infortúnio das alegadas velhacarias dos juízes do apito, explicam o sucesso dos novos campeões nacionais. Não significa isto que, pelo contrário, o mérito da equipa de Rúben Amorim seja absoluto. Ter ficado de fora das competições europeias, podendo concentrar-se exclusivamente nas competições internas, terá contribuído bastante para a regularidade exibicional da equipa, e isso não pode ser desconsiderado. De igual modo, as baixas expectativas no início da prova e a ausência de público nas bancadas ao longo de todo o ano terão ajudado a retirar pressão à equipa. Tudo isso tornará o desafio de revalidar o título na próxima época decerto bem mais difícil. Mas nem só de razões extrínsecas se pode explicar o êxito desportivo deste Sporting. Desde o treinador, cuja contratação avultada ainda na época transacta se provou acertada, à construção do plantel e às ideias de jogo implementadas, há muito por onde pegar.

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A chegada de Rúben Amorim a Alvalade foi tema de muita controvérsia. Por um lado, tratava-se de uma aposta arriscada, sobretudo para um clube em recessão. Dar tanto dinheiro por um treinador, ainda por cima com pouquíssima experiência de banco e sem muitas provas dadas, parecia um luxo difícil de explicar aos sócios, tendo sobretudo em conta a incapacidade demonstrada pelo Sporting nos últimos anos para resistir às ofertas pelos seus melhores jogadores. O que é verdade é que, apesar do risco e da incerteza, a aposta se revelou certeira.

Além do esforço financeiro na altura duvidoso, a entrada ao serviço de Rúben Amorim foi ainda controversa por outro motivo: tratava-se de um treinador sem diploma, o que no país dos doutores e do respeitinho a que gostamos de chamar Portugal – já se sabe – é crime de lesa-majestade. A guerra com a Associação Nacional de Treinadores de Futebol (ANTF) ameaçava pesar sobre a equipa de futebol, mas nem isso foi capaz de travar o sucesso da campanha. O triunfo desportivo deste Sporting é aliás um soco no estômago do corporativismo serôdio e profundamente anti-democrático que a ANTF tão bem representa. Se um treinador que não tinha habilitações para o ser pôde chegar a um clube como o Sporting e, contra todas as expectativas, vencer o campeonato à primeira, a ideia de que o acesso à carreira deve ser altamente regulado, obrigando a exorbitâncias e a percursos profissionais penosos sem grande retorno financeiro, cai por terra. Numa profissão na qual os aptos se distinguem dos inaptos naturalmente, pela pressão competitiva inerente à própria profissão, a melhor habilitação só pode ser o mérito exibido por cada um. Teimar que só tem condições para treinar ao mais alto nível quem espera muitos anos para fazer cursos que não ensinam senão a dizer ámen a duas ou três banalidades é como teimar que conduzir a alta velocidade contra uma azinheira não faz mal à saúde. O sucesso de Rúben Amorim e do Sporting esta época configura por isso um preciosíssimo atestado de invalidez à excessiva regulação do sector.

No capítulo estritamente desportivo, uma das marcas distintivas do Sporting de Rúben Amorim foi a fidelidade a um modelo de jogo. Nos dias que correm, parece cada vez mais raro encontrar um treinador que não abdica das suas ideias e não se põe a mexer na posição dos jogadores em campo a toda a hora, em função dos adversários que tiver pela frente. Pese embora os mais bem sucedidos continuarem a ser aqueles que têm uma maneira de jogar muito bem definida e que se adaptam o menos possível à especificidade de cada adversário, cultivou-se a ideia de que o futebol é um jogo de estratégia, e que a principal função de um treinador é preparar a sua equipa para as circunstâncias particulares de cada jogo. A obsessão com o lado estratégico do jogo, que costumava ser responsável sobretudo pelos maus espectáculos nos jogos grandes, naturalmente mais propensos a esse tipo de preocupações, é agora constante e prejudica as equipas a médio e a longo prazo. Ainda que isso possa fazer a diferença em determinados jogos, e ser o factor de desequilíbrio em decisões por eliminatórias, a excessiva dedicação à manigâncias estratégicas dificulta a assimilação de processos e rotinas e debilita as equipas em competições de regularidade, como sejam os campeonatos nacionais. Não há talvez maior mérito no futebol apresentado pelo Sporting esta época que não o de não ter caído nunca nessa tentação contemporânea de querer antecipar o que o adversário da ocasião iria fazer. Rúben Amorim parece entender que o futebol não é uma espécie de papel, pedra e tesoura, ou seja, que não há para cada maneira de atacar uma maneira adequada de defender que a contrarie, e vice-versa. O Sporting jogou sempre sob os mesmos princípios gerais, quase nunca alterando o sistema táctico (a linha defensiva com três centrais mais os dois laterais, por exemplo, parece ser um princípio basilar inegociável), e tirou dividendos claros disso. Por pouco criativa que a equipa fosse em alguns momentos, por mais previsíveis que fossem os seus desdobramentos ofensivos, os jogadores pareciam sempre saber o que lhes competia e o que podiam esperar dos colegas.

Como todos os modelos de jogo, o 343 de Rúben Amorim tem virtudes e defeitos intrínsecos. Uma das principais qualidades, a meu ver, é a de escapar com naturalidade às redundâncias nos corredores laterais, em processo ofensivo. Em sistemas de 442 clássico ou 451 (ou 433, quando se entende que o papel dos extremos é o de jogar por fora), é muito frequente o lateral e o ala (ou extremo), em fase de construção e criação, pisarem as mesmas zonas de terreno. Quando a equipa tem a bola, em organização ofensiva, e se encontra no último terço do terreno, com um jogador bem profundo aberto na linha, manter um lateral no mesmo flanco, mais recuado, é absolutamente redundante. Os corredores laterais não precisam de ser ocupados senão para abrir o adversário, pelo que basta haver um jogador de cada lado para cumprir essa função. Mais do que isso é abdicar de jogadores que podem servir para ocupar outros espaços, para dar coberturas e opções de passe em zonas interiores, para ameaçar a profundidade, etc.. Tais redundâncias privam a equipa de uma distribuição mais eficaz dos seus jogadores pelo terreno de jogo, e são muito frequentes em sistemas que, no papel, apresentam duas linhas de 4 ou uma linha de 4 e outra de 5. Num 343 como o de Rúben Amorim, esse problema não se põe. A natural projecção dos laterais pelo flanco (mais natural do que em linhas defensivas apenas compostas por dois centrais) como que força os três da frente a ocuparem espaços interiores, e o jogo posicional da equipa ganha com isso. Em contrapartida, o sistema possui o defeito de desocupar em excesso a zona central do campo, com tudo o que isso acarreta. Em comparação com um sistema com três médios, por exemplo, não só se lhe torna mais difícil garantir coberturas e proteger condignamente o espaço entre a linha defensiva e a linha média, sobretudo quando um dos médios é atraído para uma zona lateral ou quando salta na pressão, como se lhe torna mais difícil elaborar as jogadas sem saltar fases de construção. Tais virtudes e tais defeitos notaram-se de modo consistente ao longo da época, neste Sporting, mas isso não pareceu incomodar Rúben Amorim. Ao manter o modelo inalterado, privilegiando a sistematização, deixou os jogadores constantemente mais confortáveis a respeito das funções a desempenhar em campo, e isso a longo prazo é fundamental.

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Igualmente preponderante foi a construção e a gestão do plantel. À excepção da contratação de Paulinho a meio da época ao Braga, o Sporting não entrou em loucuras, mas apetrechou-se cirurgicamente. Pedro Gonçalves, Nuno Santos e Tabata foram recrutados internamente, o que só mostra que nem sempre é preciso ir muito longe nem abrir os cordões à bolsa para aumentar a qualidade do plantel de um candidato ao título. Também nisso este Sporting está de parabéns. O regresso de João Palhinha, que esteve para sair e que acabou por suprir as carências da posição como nenhum outro companheiro neste modelo seria capaz, é outro dos momentos-chave da construção do plantel. E o que dizer dos empréstimos de João Mário e Pedro Porro e das aquisições de Feddal e Antonio Adán? Dificilmente se conseguiriam quatro atletas tão adequados ao modelo pretendido por tão pouco.

A precisão clínica com que Rúben Amorim foi colmatando as diferentes necessidades do grupo de trabalho, assim como a aposta destemida na prata da casa (Nuno Mendes, Tiago Tomás, Jovane Cabral, Gonçalo Inácio, Matheus Nunes, Daniel Bragança, Eduardo Quaresma, etc.), são indissociáveis do sucesso alcançado. Ainda que o futebol apresentado nem sempre tenha sido extraordinário (a capacidade de criação da equipa raramente deslumbrou) e que os adversários não tenham dificultado o percurso como se esperava, é inegável que Rúben Amorim soube construir uma equipa competitiva. A solidez defensiva, reflectida aliás na possibilidade ainda em aberto de terminar o campeonato invicto, são bem o retrato dessa competitividade. É possível que no futuro isso não chegue, e que a equipa precise de melhorar na forma como elabora as suas jogadas e pensa o seu jogo, mas foi sem dúvida o suficiente esta época. O título de campeão nacional, dezanove anos depois do último, é por isso justíssimo. E talvez se possa aprender com ele. Pelos vistos, a competência não só não depende de um carimbo que a certifique como na verdade não procede da manha dos estrategas nem se compra em troca de milhões.