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O raiar do miúdo Henrique Rocha, a surpresa adolescente do Estoril Open que em breve deixará de pedir desculpa

Imberbe, sem uma ponta de barba e do alto do seu 596.º lugar do ranking, o tenista do Porto estreou-se no quadro principal de torneios ATP no Estoril Open antes sequer de jogar algum Challenger. O português perdeu contra Bernabé Zapata Miralles, espanhol que é top-50, enquanto pediu desculpa por festejos e lhe aplaudiu pontos, sinais de quem está a apalpar os primeiros pedaços de terreno desta vida que o poderá levar longe

Diogo Pombo

MIGUEL A. LOPES/LUSA

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“Força, Hugo!”

A inocência pode morar nos erros e o incentivo vem de uma criança sentada na segunda fila. Calções, t-shirt e boné a olhar para trás, está vestido na mesma ordenação do tenista por quem torce, divergindo nas cores e confiando arriscadamente no “H. Rocha” que lê no único ecrã do mini-estádio. O amigo perscruta-lhe a sabedoria. Questiona como é que ele sabe o nome do adolescente de vermelho e pele morena, recebendo em troca a admissão de quem confia no seu poder de adivinhação com base na inicial do nome.

Não é criticável. Pouca gente que não os reais enamorados por ténis, os fiéis seguidores de quem pega nas raquetes em Portugal, saberia quem era Henrique Rocha antes dele arrepiar caminho pelo qualifying do Estoril Open e de lá sair como a imberbe surpresa do quadro principal. De “maluco” chamaria ele quem lhe vaticinasse que jogaria a primeira ronda de um torneio ATP antes sequer de bater uma bola em algum Challenger, explicara na véspera, ainda atónito pela experiência. Ter perna-longa a subir degraus pode originar estas dores inofensivas de reconhecimento.

Sob o sol de meio-dia de terça-feira, tórrido a queimar peles destapadas, Henrique denota o desábito. Joga no Court Cascais, o secundário campo que ladeia o estádio principal, pequeno e humilde, mas já intimidante para um adolescente - as duas tímidas bancadas são tímidas e enchem-se para ver o tenista de 18 anos que há um par de dias ainda viajava em navegador incógnito com a sua alvorada no circuito profissional. A atitude nota-se na forma como age na terra batida e reage aos socalcos do jogo.

Bola por bola, no som estalado das cordas, na velocidade das pancadas, não se nota a diferença de mundos com a rede a servir de equador. Do outro lado mora Bernabé Zapata Miralles, espanhol de Valência que terá nascido a tossir pó de tijolo, mais um, e um batido, com as meias e as sapatilhas alaranjadas pelos 26 anos que leva de ténis e 43.º lugar no ranking. Há semanas era o quadragésimo melhor, auge da carreira que já o levou às primeiras rondas de Grand Slams com a sua pose corcunda a bater esquerdas. Ele não demora a quebrar o português, cedo se põe em vantagem no primeiro set, erra muito menos quando os pontos chegam aos momentos em que cravam por um braço que arrisque visar as linhas.

Quando Zapata Miralles já subsiste, sem arrepios ou pulsos tensos, nesses momentos decisivos, a tal criança das dezenas que mantém o burburinho durante os pontos submete-se ao condicional. “Se o Nadal estivesse ali…”, divaga, antes de o amigo o calar com juízo, o rei da terra batida não é tido nestas freguesias, nem o acharão onde seja em breve porque ele está a tratar do corpo fustigado por tantos deslizes neste tipo de campos onde Henrique Rocha aparenta estar à vontade quando as trocas de bola se alongam.

MIGUEL A. LOPES/LUSA

Essas viagens maiores costumam cair para ele durante quase toda a partida - é fisicamente capaz de cobrir o fundo do court sem arfar e de defender-se das investidas com variedade nas respostas, o que cansa o adversário, frustra-lhe as tentativas. Mas o português perde o primeiro set (6-4). Ainda não tem um serviço no braço que lhe regale conforto quando é ele a começar os pontos, ainda não responde ao saque alheio de maneira a aniquilar a vantagem do outro. Ainda é jovem, ainda não é experimentado, ainda respeita a ocasião.

Um dos seus melhores pontos arranca-lhe um “vamos!” gritado no segundo antes dos aplausos do público e apronta-se a pedir desculpa ao adversário, apressado cuidador do respeito que Zapata Miralles lhe retribui, às tantas, quando corrige o árbitro após este avistar uma bola fora batida pelo português. A espinha da boniteza do gesto, surgida com o espanhol no trono da partida, seria testada mais tarde.

O segundo parcial arrancou logo com um break feito a Henrique Rocha, que lhe forçou um cabisbaixo durante alguns pontos, não muitos. No barulho incaracterístico a rodear o court, talvez tenha ouvido as antenas levantadas quando se reparou que Nuno Borges espreitava o jogo à entrada para o campo, de pé e sem se intrometer nas suas margens. O português a quem o ranking mais sorri hoje (65.º classificado) espreitava a andança do caçula com quem partilhara cavaqueira na véspera e isso coincidiu com a soltura do pulso do número 596 da hierarquia dos tenistas.

Depositando bolas com alguma constância perto dos ângulos do campo, sendo mais agressivo nas respostas, Henrique Rocha teve vários pontos para quebrar o serviço do espanhol, cortejando o 2-2. O ruidoso Bernabé, de sonoros gemidos a cada pancada, clamava pelo apoio do treinador. Gritava “anima-me, Samuel!” quando os espetadores gritavam pela iminência do que não veio a ser. Só mais tarde, fazendo um 4-2, o português teve o singelo break imposto ao espanhol, que terá ficado sentido com a adolescência do atrevimento.

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Com o fim do segundo set a precipitar-se, toda a gente certa do seu desfecho, Zapata Miralles entortou a agulha da sua bússola. Quando uma bola ressaltou em cima da linha e o juiz a concedeu ao português, ele urgiu um reparo, pedindo ao árbitro que descesse da cadeira para ver a marca na terra. Já tinha os óculos da pressa e, pouco depois, o 6-2 fechou-se. Henrique Rocha arrumou a trouxa, levou duas raquetes nas mãos, caminho rumo à porta e foi parada por pedintes de autógrafos

Ele parou, sorriu, dentadura completa à mostra nessa parte “ainda um bocadinho mais complicada de processar” para quem surgiu quase do nada aos olhos das gentes que lhe passam bolas e uma caneta. “Acho que até me saí bem, às vezes é um pouco desconfortável antes dos jogos, quando me estou a tentar concentrar e me pedem um autógrafo ou outro, não sei se a minha reação é muito boa, mas espero que toda a gente tenha ficado contente”, confessa minutos volvidos, ainda sem tocar no boné que não entope todas as gotas de suor.

Assertivo e confiante, não aparenta estar a um par de dias dos 19 anos. Fala segura, articulada e exemplarmente, sem pudores em abrir a mente às perguntas e à análise ao que jogou: “Foi um primeiro set que teve muitos jogos em vantagens, foi um início bastante tremido para os dois lados, senti que o facto de não me conhecer muito bem me deu alguma vantagem para lhe fugir no resultado. Ele serviu melhor. Mas acho que não foi um jogo muito desequilibrado, do fundo do court estava 50/50, mas ele foi muito mais sólido, jogou muito melhor nos momentos decisivos, teve muitas bolas que eu não esperava que entrassem e parecia que entrava tudo, mas por isso é que ele é número 40 do mundo.”

A cara é de miúdo, não engana, mas Henrique Rocha, mesmo “muito chateado” pela derrota, disfarça bem. Sorri no trato, responde cordialmente e tem o queixo erguido enquanto olha para diante. “Foi uma boa experiência de palcos grandes, espero um dia jogar em palcos ainda maiores”, deixou também, suspeito de que em breve se deixará entranhar nos hábitos que o seu prometedor jogo de fundo do court lhe poderá dar noutros lugares.

E poucos se enganarão no seu nome da próxima vez.