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‘Estou? Tudo bem? Queres vir substituir o Kelly Slater?’ Uma manhã na vida de Matias Canhoto, penichense de 17 anos

‘Estou? Tudo bem? Queres vir substituir o Kelly Slater?’ Uma manhã na vida de Matias Canhoto, penichense de 17 anos
Thiago Diz/WSL
O adolescente de 17 anos estava a jantar, na terça-feira, quando o telefone tocou e o organizador do MEO Rip Curl Pro lhe disse que havia um surfista lesionado. Não lhe disse quem, mas Matías Canhoto foi incapaz de terminar o prato: “Nem consegui dormir.” Depois, saberia que, à última hora, iria fazer as vezes de Kelly Slater, o lendário surfista com mais títulos mundiais da história. E no seu primeiro heat no circuito mundial, o local qualificou-se para a ronda seguinte (mas só soube quando já estava na areia)

São já 15 anos em que as areias na praia de Supertubos têm uma vertente movediça. Desde o início, em 2009, movem uma enormidade de gente a este pedaço de linguareja o mar de perto e quem for português e pretender ver a maralha do mar, vestindo a licra de competição e olhando para terra, há poucas formas possíveis de competir na etapa portuguesa do circuito mundial de surf. Uma é a feita por Frederico Morais, qualificando-se tradicionalmente para o tour, vida árdua e trabalhosa. Esperar por um convite, os conhecidos wildcards, é outra, por norma concedidos ao campeão nacional, no caso Joaquim Chaves. A restante, pelos vistos, é sentir o azar alheio a soprar-nos sorte à última hora.

Na noite de terça-feira, véspera de arrancar o MEO Rip Curl Pro, à mesa de jantar estava Matias Canhoto. “Bem tranquilo” e em casa, tinha a cabeça posta no campeonato, há anos que o acompanha da areia que é sua vizinhança. Nascido e criado em Peniche, ouviu o telemóvel a cravar atenção com uma chamada. Era Francisco Spínola, organizador da prova. O adolescente largou os talheres, não tardaria a perder as estribeiras também. O diretor-geral da World Surf League ligou-lhe “a dizer que havia um surfista lesionado e havia a possibilidade de entrar no campeonato”. Lá se foi a compostura do rapaz de 17 anos, de pele acastanhada pelo sol de inverno e cabelo de imitação na cor.

Matias Canhoto nem conseguiu acabar de jantar, “os nervos começaram logo a correr”. Levou para a cama o que entrou no estômago até à ânsia cortar a refeição, mas “nem dormiu” e bem precisava. Avisado tão à última hora, teria de estar de prevenção para entrar no mar logo no terceiro heat do evento, pelas 9 horas, no inclemente frio do este ao qual ninguém o supera na habituação, porque ele é de Peniche e isso explica muita coisa: o jovem português nunca participara numa prova do circuito mundial, mas por ser local, estar aqui ao lado e o seu patrocinador principal calhar ser o mesmo do evento (a Rip Curl), era a escolha mais acessível, dizem-nos da World Surf League. O resto, para lhe acrescer ao nervosismo, é que acentuou o inusitado da ocasião.

Porque Matias Canhoto foi substituir Kelly Slater, o surfista dos surfistas.

Thiago Diz/WSL

Nem era preciso ser o careca mais conhecido das ondas o contemplado do azar. Ainda de madrugada, a organização deu conta de que “devido aos seus problemas na anca”, o 11 vezes campeão mundial desistira da prova. Portanto, ainda mais cedo, o adolescente penichense teve de ser avisado. “É a maior coisa que já me aconteceu na vida, estou muito contente por estar a competir em casa”, diria o português, saído do mar, quando o sol da manhã já se deixava sentir um pouco na pele. Molhado e com a licra branca, Matias Canhoto tinha acabado de surfar o seu primeiro heat no Championship Tour.

Quando falou, pensou ter sido o pior na comparação com o australiano Callum Robson e o norte-americano Griffin Colapinto, vencedor desta etapa em 2022. O português até se atirou sem pudores às ondas, fez uma nota de 5 pontos, durante algum tempo a melhor da bateria. A uns dois minutos de soar o gongo na praia, Matias remou para uma onda com prioridade e pareceu desistir da intenção quando olhou em frente e viu Colapinto à sua frente, melhor posicionado, mas esse vai-não-vai teria consequências de que o estreante não sabia quando chegou à areia: seria assinalada uma interferência ao americano, o que tornou inválida a sua segunda melhor onda da bateria.

Após o azar da lesão de Kelly Slater, que tudo estaria a ver do palanque da competição (tinha o carro parado no seu lugar de estacionamento à entrada da praia), ainda havia uma precipitação alheia a beneficiar Matias Canhoto. O castigo imposto a Griffin Colapinto deixou o português no 2.º lugar do heat e qualificado para a terceira ronda da prova. À primeira vez no MEO Rip Curl Pro, o talento de Peniche vai logo surfar pela passagem aos oitavos de final. “Tudo é possível, é uma grande oportunidade e quero aproveitar ao máximo”, desabafou antes, quando julgava ter seguido para a ronda de eliminação que junta os perdedores das baterias iniciais. A sua alegria agora deve ter escalado mais um pouco.

Ser chamado a substituir Kelly Slater é “a mesma coisa de estar no banco de um jogo de futebol” ao lado de “Messi e Ronaldo”, disse ele. A analogia será apropriada, embora não certeira - é mais como entrar para o lugar de um deles. Quanto ao nome que mais vem à cabeça quando se pensa em surf, de amores-ódios há muito complicados com Supertubos, o ano passado, pelos vistos, terá mesmo sido a última vez a competir em Peniche.

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