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Aos 51 anos, Kelly Slater está desqualificado do circuito mundial. A não ser que usufrua de uma pequena exceção à regra

O senhor surf e dono de 11 títulos mundiais, que o ano passado ganhou, no Havai, uma etapa do Championship Tour, não reuniu pontos suficientes para ficar entre os 24 melhores do ranking que permanecem no circuito após as cinco primeiras etapas. Mas, discretamente, a WSL alterou as regras: agora, caso seja convidado a participar numa etapa, os pontos conquistados por um surfista que não integre o mundial são contabilizáveis caso ele seja um ex-campeão do mundo

Diogo Pombo

Ed Sloane/World Surf League

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“Se estás a 10 pontos e uma onda vier, tens hipótese, é assim que tens de pensar. Senti-me muito bem, surfei bem no último par de dias, senti-me solto. Não me senti stressado nem com medo da situação, até estava a desfrutar bastante do dia. Enfim, estamos cá a respirar.”

Tinha o seu olhar meio-perdido, a fitar o vazio enquanto lhe dirigiam perguntas. Com o olho azul a intuir respostas algo divagadoras, Kelly Slater estava de tronco nu e de boné na cabeça, com as ondas de Margaret River a quebrarem ao fundo. Para elas olhava, atento, sem prestar grande atenção ao motivo para ser ele, o perdedor de uma bateria da terceira ronda, a falar na entrevista rápida reservada aos vencedores. Nem o carregador do microfone, algo temerário, se atreveu a tocar diretamente no assunto, deixando o elefante a pairar no ar - apenas lhe perguntou sobre o futuro.

Aos 51 anos, a questão nunca teve tanta relevância na carreira de Kelly Slater. “Quero muito ser entubado algures”, disse apenas o norte-americano, tentando mascarar a breve e evasiva resposta com um pequeno sorriso, logo desviando a conversa para as ondas que via a quebrarem lá no horizonte da praia de Western Australia, onde decorre a quinta etapa do Championship Tour (CT). Bem-disposto apesar de acabado de sair do mar com uma derrota, falava enquanto surfista já desqualificado do circuito mundial e cortado pela lâmina com que a World Surf League (WSL) permite que só os 24 melhores do ranking prossigam para as cinco últimas etapas do ano.

O quarto 17.º lugar do ano, conjugado com tão-só um 9.º posto, confirmou um contexto inédito para aquele a quem mais se aplica o emoji de um bode no surf. Kelly Slater ficará abaixo da linha do denominado cut de meio da época do CT, introduzido em 2022 e do qual o norte-americano sempre foi um crítico, ficando sem qualificação garantida para o circuito do próximo ano. De repente, uma modalidade, toda uma indústria, corteja a possibilidade há muito anunciada: o fim competitivo do melhor surfista que já existiu.

O desvanecer da luz de um crónico fugitivo da idade acentua-se de relevância pelo mistério que o próprio faz por manter. Na última década, Kelly Slater tem sido um acumular de incertezas e respostas não definitivas, ainda mais desde janeiro de 2022, quando a meras semanas de virar cinquentão venceu a 56.ª prova da carreira em Pipeline, no arranque do passado CT, trinta anos depois de lá ganhar pela primeira vez e mais de uma década desde o seu 11.º título mundial. E fez as pessoas duvidarem: seria um tardio despertar da grandeza mantida em banho-maria para voltar a ser irradiada em força ou um derradeiro espernear de uma lenda a esgotar as últimas forças?

A segunda hipótese confirmar-se-ia com o tempo. Antes da só ir uma vez aos ‘oitavos’ de uma etapa este ano, nas restantes nove de 2022, falhou duas por lesão e um 3.º lugar e dois 9.ºs foram o melhor que logrou; não conseguindo acabar entre os cinco do topo do ranking que se qualificam para as WSL Finals, espécie de play-off final adaptado ao surf para se determinar quem é o campeão mundial. Formato showbiz adotado pela entidade sediada na Califórnia, quase à beira-mar, que não tem o carinho de Kelly Slater. “Não concordo com isso porque estamos a definir quem é o campeão num lugar, num dia, em determinadas condições. Não temos de ganhar o ano todo, temos de ganhar em Trestles [[nos EUA, onde a finalíssima é realizada]. Por isso, só se ganha uma vez”, criticou o mês passado, quando estava em Peniche, a competir na etapa portuguesa.

Há outra regra, contudo, sobre a qual o opinativo Kelly Slater jamais se pronunciou, caso sequer saiba da sua existência.

No manual das regras da WSL foi introduzida uma adenda que pouco abona à justiça que fundamenta as palavras com que o 11 vezes campeão mundial argumenta contra a forma da entidade determinar quem vence o título. Na página 18, lê-se que a WSL pode, “à sua discrição”, atribuir um wildcard masculino por etapa a partir do cut a meio da época, o que é comum, mas os pontos desse surfista não podiam ser contabilizados para a classificação. Até agora, porque hoje também é legível que os pontos amealhados passam a valer “se o surfista for um antigo campeão do mundo ou tiver sido um dos cinco competidores nas WSL Finals”.

Thiago Diz/WSL

Ou seja, se Kelly Slater recebesse um convite para surfar nas restantes cinco etapas que restam e tivesse em sintonia com as ondas que o banhassem, poderia colecionar pontos que o restaurassem entre os 24 melhores do ranking. O que é improvável, mas não impossível - mais expectável é que esteja na próxima prova, no Surf Ranch, em Leemore, interior da Califórnia onde o circuito pára na piscina de ondas que ele construiu; e na décima, em Teahupo’o, onde o patrocinador principal é a Outerknown, marca que detém. “Pois, eu conheço um tipo”, soltou, entre risos, quando o entrevistador o sondou acerca da possibilidade de receber um wildcard para a etapa do Taiti.

Caso o convidem para essas duas previsíveis provas, provável será ver Kelly Slater a surfar o suficiente para juntar pontos que lhe permitam escalar na classificação. O que provoca outra questão: esses pontos contariam, na mesma, para o CT, ou seriam acumuláveis para o ranking do Challenger Series, o principal circuito de qualificação? O regulamento da WSL não explica. O primeiro cenário soa a inconcebível, pois tal significaria que um dos 22 surfistas que garantiram a permanência para 2024, afinal, não desfrutaria dessa conquista; o segundo tem ares mais exequíveis.

E há um terceiro possível para voltarmos a ter o anfíbio entre humanos que mais títulos mundiais colecionou de pé numa prancha (um em 1992, cinco consecutivos entre 1993-97, e, regressado de uma mini-reforma, outros cinco em sete anos) de volta à elite do surf. Kelly Slater poderá receber, na próxima temporada, um season-long wildcard dos dois que a WSL tem para dar a cada ano. Entre as saídas que não dependem da sua proeza a domar ondas, esta é capaz de ser a mais previsível.

Porque a careca, o olho azul e os ecos propagados pelo seu nome ainda são o maior chamariz que o surf tem, pensando no global da modalidade e no particular de quem gere as competições. A WSL, virada sem timidez para a espetacularização do produto que maneja, não se fica pelas ondas geradas pela natureza, inventando as suas para as navegar em força: aos drones nas filmagens, às WSL Finals inflacionadas constantemente, aos pequenos vídeos de manobras para as redes sociais juntou-se, entre outras, uma série de 11 episódios, a “Lost Tapes”, que acompanhou Kelly Slater no CT durante no passado. Há uma lenda para monetizar, um surf a ser montado às cavalitas do seu maior embaixador.

Por ele e por outros nomes (Gabriel Medina, John John Florence, Stephanie Gilmore, Carissa Moore) que chegaram a um estatuto de sinonimarem surf é que a WSL terá feito a adenda às suas regras. E talvez daí venha a descontração do cinquentão. Ou, então, vem da simples constatação que tem nada a provar a ninguém.