“Se estás a 10 pontos e uma onda vier, tens hipótese, é assim que tens de pensar. Senti-me muito bem, surfei bem no último par de dias, senti-me solto. Não me senti stressado nem com medo da situação, até estava a desfrutar bastante do dia. Enfim, estamos cá a respirar.”
Tinha o seu olhar meio-perdido, a fitar o vazio enquanto lhe dirigiam perguntas. Com o olho azul a intuir respostas algo divagadoras, Kelly Slater estava de tronco nu e de boné na cabeça, com as ondas de Margaret River a quebrarem ao fundo. Para elas olhava, atento, sem prestar grande atenção ao motivo para ser ele, o perdedor de uma bateria da terceira ronda, a falar na entrevista rápida reservada aos vencedores. Nem o carregador do microfone, algo temerário, se atreveu a tocar diretamente no assunto, deixando o elefante a pairar no ar - apenas lhe perguntou sobre o futuro.
Aos 51 anos, a questão nunca teve tanta relevância na carreira de Kelly Slater. “Quero muito ser entubado algures”, disse apenas o norte-americano, tentando mascarar a breve e evasiva resposta com um pequeno sorriso, logo desviando a conversa para as ondas que via a quebrarem lá no horizonte da praia de Western Australia, onde decorre a quinta etapa do Championship Tour (CT). Bem-disposto apesar de acabado de sair do mar com uma derrota, falava enquanto surfista já desqualificado do circuito mundial e cortado pela lâmina com que a World Surf League (WSL) permite que só os 24 melhores do ranking prossigam para as cinco últimas etapas do ano.
O quarto 17.º lugar do ano, conjugado com tão-só um 9.º posto, confirmou um contexto inédito para aquele a quem mais se aplica o emoji de um bode no surf. Kelly Slater ficará abaixo da linha do denominado cut de meio da época do CT, introduzido em 2022 e do qual o norte-americano sempre foi um crítico, ficando sem qualificação garantida para o circuito do próximo ano. De repente, uma modalidade, toda uma indústria, corteja a possibilidade há muito anunciada: o fim competitivo do melhor surfista que já existiu.
O desvanecer da luz de um crónico fugitivo da idade acentua-se de relevância pelo mistério que o próprio faz por manter. Na última década, Kelly Slater tem sido um acumular de incertezas e respostas não definitivas, ainda mais desde janeiro de 2022, quando a meras semanas de virar cinquentão venceu a 56.ª prova da carreira em Pipeline, no arranque do passado CT, trinta anos depois de lá ganhar pela primeira vez e mais de uma década desde o seu 11.º título mundial. E fez as pessoas duvidarem: seria um tardio despertar da grandeza mantida em banho-maria para voltar a ser irradiada em força ou um derradeiro espernear de uma lenda a esgotar as últimas forças?
A segunda hipótese confirmar-se-ia com o tempo. Antes da só ir uma vez aos ‘oitavos’ de uma etapa este ano, nas restantes nove de 2022, falhou duas por lesão e um 3.º lugar e dois 9.ºs foram o melhor que logrou; não conseguindo acabar entre os cinco do topo do ranking que se qualificam para as WSL Finals, espécie de play-off final adaptado ao surf para se determinar quem é o campeão mundial. Formato showbiz adotado pela entidade sediada na Califórnia, quase à beira-mar, que não tem o carinho de Kelly Slater. “Não concordo com isso porque estamos a definir quem é o campeão num lugar, num dia, em determinadas condições. Não temos de ganhar o ano todo, temos de ganhar em Trestles [[nos EUA, onde a finalíssima é realizada]. Por isso, só se ganha uma vez”, criticou o mês passado, quando estava em Peniche, a competir na etapa portuguesa.
Há outra regra, contudo, sobre a qual o opinativo Kelly Slater jamais se pronunciou, caso sequer saiba da sua existência.
No manual das regras da WSL foi introduzida uma adenda que pouco abona à justiça que fundamenta as palavras com que o 11 vezes campeão mundial argumenta contra a forma da entidade determinar quem vence o título. Na página 18, lê-se que a WSL pode, “à sua discrição”, atribuir um wildcard masculino por etapa a partir do cut a meio da época, o que é comum, mas os pontos desse surfista não podiam ser contabilizados para a classificação. Até agora, porque hoje também é legível que os pontos amealhados passam a valer “se o surfista for um antigo campeão do mundo ou tiver sido um dos cinco competidores nas WSL Finals”.

Thiago Diz/WSL
Ou seja, se Kelly Slater recebesse um convite para surfar nas restantes cinco etapas que restam e tivesse em sintonia com as ondas que o banhassem, poderia colecionar pontos que o restaurassem entre os 24 melhores do ranking. O que é improvável, mas não impossível - mais expectável é que esteja na próxima prova, no Surf Ranch, em Leemore, interior da Califórnia onde o circuito pára na piscina de ondas que ele construiu; e na décima, em Teahupo’o, onde o patrocinador principal é a Outerknown, marca que detém. “Pois, eu conheço um tipo”, soltou, entre risos, quando o entrevistador o sondou acerca da possibilidade de receber um wildcard para a etapa do Taiti.
Caso o convidem para essas duas previsíveis provas, provável será ver Kelly Slater a surfar o suficiente para juntar pontos que lhe permitam escalar na classificação. O que provoca outra questão: esses pontos contariam, na mesma, para o CT, ou seriam acumuláveis para o ranking do Challenger Series, o principal circuito de qualificação? O regulamento da WSL não explica. O primeiro cenário soa a inconcebível, pois tal significaria que um dos 22 surfistas que garantiram a permanência para 2024, afinal, não desfrutaria dessa conquista; o segundo tem ares mais exequíveis.
E há um terceiro possível para voltarmos a ter o anfíbio entre humanos que mais títulos mundiais colecionou de pé numa prancha (um em 1992, cinco consecutivos entre 1993-97, e, regressado de uma mini-reforma, outros cinco em sete anos) de volta à elite do surf. Kelly Slater poderá receber, na próxima temporada, um season-long wildcard dos dois que a WSL tem para dar a cada ano. Entre as saídas que não dependem da sua proeza a domar ondas, esta é capaz de ser a mais previsível.
Porque a careca, o olho azul e os ecos propagados pelo seu nome ainda são o maior chamariz que o surf tem, pensando no global da modalidade e no particular de quem gere as competições. A WSL, virada sem timidez para a espetacularização do produto que maneja, não se fica pelas ondas geradas pela natureza, inventando as suas para as navegar em força: aos drones nas filmagens, às WSL Finals inflacionadas constantemente, aos pequenos vídeos de manobras para as redes sociais juntou-se, entre outras, uma série de 11 episódios, a “Lost Tapes”, que acompanhou Kelly Slater no CT durante no passado. Há uma lenda para monetizar, um surf a ser montado às cavalitas do seu maior embaixador.
Por ele e por outros nomes (Gabriel Medina, John John Florence, Stephanie Gilmore, Carissa Moore) que chegaram a um estatuto de sinonimarem surf é que a WSL terá feito a adenda às suas regras. E talvez daí venha a descontração do cinquentão. Ou, então, vem da simples constatação que tem nada a provar a ninguém.