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Paixão pela vida: uma crónica sobre Pedro Martins de Lima, o primeiro surfista português que viveu como um pioneiro

O pai do surf em Portugal, que morreu esta semana, aos 92 anos, praticou hipismo, natação, ginástica, râguebi e boxe na sua juventude e viu surf ao vivo, pela primeira vez, em 1945, na ilha Terceira, nos Açores, e teve a primeira prancha sem saber que tinha de aplicar cera para os pés não escorregarem. E já nos seus sessentas experimentou o motocross, recorda Miguel Pedreira, enciclopédia do surf que escreveu sobre o precursor da modalidade no país

Miguel Pedreira

Pedro Martins Lima, o primeiro surfista português.

Kenton Tatcher

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Quando tive o privilégio de conhecer pessoalmente o Pedro Martins de Lima, tinha ele 66 anos, já tinha ouvido muitas histórias sobre “o primeiro surfista português”, lido entrevistas e artigos do diretor da saudosa revista Surf Portugal, João Valente, sobre a sua vida extraordinária. Mas nada me tinha preparado para aquele “embate”.

Tudo aconteceu na conferência de imprensa do primeiro campeonato de nível CT (Championship Tour) em Portugal, realizado na Figueira da Foz, em 1996. Fernando Eloy, criador do evento, lembrou-se de convidar “o primeiro surfista português” para apadrinhar “o primeiro CT em Portugal”, e Pedro Martins de Lima carinhosamente aceitou. Quando cheguei à apresentação, percebi que havia um aglomerado de gente à volta de alguém, junto à porta do recinto, mas de longe não dava para ver quem era.

Ao aproximar-me, deparei-me com um homem de baixa estatura mas de aspeto rijo, cabelo todo branco e olhar brilhante, a encantar todos os que o rodeavam com as histórias que contava, como se as estivesse a viver de novo. Era o Pedro! Então, nos meus vinte e tal anos, surpreendido com tão vibrante personagem, aproximei-me cordialmente, para ouvir melhor o que contava. Pedro falava das suas aventuras desportivas, nas várias modalidades que praticou, deixando todos os presentes de queixo caído e encantados. “Qual a que mais gostou de praticar?”, perguntou a assessora de imprensa Patrícia Curinha. “Todas!”, respondeu o Pedro. Depois de uns bons minutos de aventuras e de lhe ser apresentado, arrisquei perguntar qual o desporto que mais praticava no momento... ficou sério e disse-me que andava a descobrir um novo. “Golfe ou Ténis”, pensei eu, condescendente. Qual não foi o meu espanto quando me respondeu: “Motocross!”

Ia caindo para trás, não sei se pela ousadia do Pedro ou pela inspiração que vi na sua rebeldia. Ao perceber a minha incredulidade, o Pedro soltou a sua famosa gargalhada, sonora e de sorriso bem aberto, e lá me explicou que tinha andado muito de mota quando era mais novo, mas que nunca tinha explorado a possibilidade de andar a fundo no meio do mato. E que queria experimentar... A primeira lição estava aprendida – nunca subestimar a curiosidade deste homem!

Depois deste episódio e de me ter imediatamente apresentado a “sua” Mané, a encantadora esposa e companheira de tantas aventuras, a sua alma gémea, acabámos por nos cruzar em vários eventos de surf, para os quais ele era constantemente convidado.

Do convívio assíduo e longas conversas acaloradas nasceu uma amizade, que ele insistia em tratar por tu. “Somos todos companheiros do mar! Somos iguais na água. Aos meus companheiros eu trato por tu, por isso faz o mesmo comigo”, dizia ele, no seu absoluto sentido de fraternidade. “Pois, Pedro, eu entendo... mas não o consigo tratar por tu!”, respondia eu, meio encavacado. A determinada altura convidou-me para ir a sua casa, em Gaia. Quando lá cheguei não queria acreditar! Uma casa térrea, simples, construída com as suas próprias mãos, com um jardim bem cuidado e uma garagem forte, onde guardava os seus tesouros – pranchas de surf, de windsurf, caiaques, skis de neve, garrafas de mergulho, armas de caça submarina, arpões, diversos fatos, um pequeno barco... enfim, os seus queridos “brinquedos”, com os quais se mantinha sempre ativo, fisicamente. Dentro de casa, guardava os tesouros para a mente e para o espírito. Livros, discos, fotografias, instrumentos e inúmeras recordações das suas aventuras. Mas havia uma regra fundamental!...

Naquela casa, o que quer que estivéssemos a fazer, tudo parava às cinco da tarde e servia-se um gin tónico, a sua bebida de eleição! Bem, por vezes isso também podia acontecer pelas 11h da manhã, se estivesse sol e o jardim apetecível...

D.R.

Ao longo destes últimos 26 anos, a visita à casa do Pedro sempre que me deslocava a Norte, em trabalho ou lazer, era peregrinação obrigatória. Entre cafés, almoços e gins, fui ouvindo as suas histórias e conhecendo as suas aventuras de vida (ou será vidas de aventura?...) em pormenor.

Nessas partilhas soube que cedo quebrou a tradição familiar, seguindo por onde a vida o levou, mas sobretudo pelas vendas e pelo marketing na área dos têxteis (pai, avô e outros antepassados seguiram a carreira militar, embora inquietos, como o Pedro viria a tornar-se); que foi uma das primeiras pessoas a introduzir as t-shirts em Portugal (sim, aquelas que hoje temos como algo banal e comum); que praticou hipismo, natação, ginástica, rugby e boxe na sua juventude; que viu surf ao vivo, pela primeira vez, em 1945, na ilha Terceira, nos Açores; que em 1946 já apanhava ondas com o corpo, em Carcavelos, com o auxílio de umas barbatanas, trazidas por um primo, do Hawaii; que em 1947 fez uma pequena prancha com cortiça, para o ajudar a deslizar nas ondas, uma espécie de percursor do bodyboard; que em 1948 foi um dos fundadores do Hot Clube de Portugal, tendo tocado contrabaixo em inúmeras jam-sessions noite dentro, com os seus amigos; que em 1959 comprou a sua primeira prancha de fibra, em França, mas que andou um ano a tentar surfar com ela sem saber que era preciso colocar cera antiderrapante na parte de cima; que foi igualmente pioneiro no mergulho com escafandro, na pesca submarina, no esqui de neve (subia a pé, com alguns amigos, da Covilhã até à Torre, na Serra da Estrela, dormia num abrigo de montanha e descia no dia seguinte, com esquis feitos por ele, de madeira); que conviveu e foi amigo de Jacques-Yves Cousteau e Alain Bombard, duas lendas do estudo do mar; que mergulhou na Grande Barreira de Coral da Austrália, no meio de tubarões, para ajudar os amigos cineastas de documentários submarinos a captarem imagens debaixo de água (construiu uma câmara estanque a partir de uma panela de pressão!).

Que desbravou a maior parte da costa portuguesa, muitas vezes na companhia do filho, também Pedro e também surfer, como ele gostava de dizer, surfando sozinhos muitos dos picos que hoje os “locais” tentam proteger da massificação; que passou temporadas de férias nos Açores, a viver do mar, com o que pescava, nas ilhas mais afastadas e menos habitadas; que esgotou o tempo de um time-sharing em Tignes, nos Alpes Franceses, onde iria este ano para a sua 63.ª temporada e onde era recebido pelos guias de montanha como “a pessoa que melhor conhece esta estância”, com direito a “guarda de honra local”... entre tantas outras histórias e aventuras. Centenas delas, que não caberiam todas num eventual guião para um filme sobre a sua vida. O Pedro viveu várias vidas nesta vida.

Ricardo Bravo

Nos anos 2000 tornou-se embaixador da marca Lightning Bolt em Portugal e, com isso, ficou mais conhecido pelos praticantes da modalidade, nunca recusando um conselho, fotografia, sorriso ou história a quem o abordava. O Pedro, naturalmente, tornou-se um verdadeiro embaixador do “Aloha” havaiano, esse espírito de dádiva, partilha e amor pela natureza. Tornou-se o “pai” do surf português.

Até pode não ter sido o primeiro... Carlos “Garoupa” Medeiros, açoriano da Ribeira Grande, em São Miguel, falecido no ano passado, aos 87 anos, também começou a “voar como uma cagarra nas ondas, com uma prancha de madeira”, em 1947... Outros relatos, da mesma época ou anteriores, indicam outros curiosos, na Figueira da Foz e em Santa Cruz, que construíram pranchas de surf de madeira, com base num esquema publicado na revista americana “Popular Mechanics”, e apanharam ondas com elas. Mas o Pedro Martins de Lima foi o primeiro a abraçar o estilo de vida do que hoje entendemos como surfista e a tornar-se o primeiro praticante regular da modalidade em Portugal, abrindo o caminho para os milhares de praticantes não profissionais que o país hoje tem.

Avesso a competições, dizia que não gostava de competir por ondas com os seus parceiros, com os seus companheiros de mar. Que a sua competição era consigo próprio e com a natureza. Embora os seus contemporâneos sorriam de forma mordaz quando ouvem essa afirmação. A partilha, por vezes, era interrompida para “mais uma boa onda”, tivesse ou não prioridade. Mesmo assim, um dos seus maiores orgulhos era mostrar as fotos do seu neto, também Pedro, também surfer, a receber o seu primeiro prémio de vencedor de um campeonato... das suas mãos de avô babado! Será que o seu bisneto, também Pedro, também surfer, sabe desta história?

O Pedro deixou-nos esta semana, terça-feira de Carnaval, aos 92 anos. Partiu para outras aventuras, mas deixou-nos as suas histórias maravilhosas, a sua doce Mané e um legado difícil de digerir, de tão vasto. Teve uma vida cheia. Não só de aventuras, como de sorrisos, de amizades, de alegria, de atitude. Enfrentou a vida de frente, bebeu-lhe o sangue até à última gota e foi maior que ela. Sempre um gentleman, a elegância estava-lhe impregnada. Direto mas delicado, educado e seguramente duro com os mais próximos, de tão perfecionista que era. Sobretudo consigo próprio. Talvez fosse esse o seu defeito mais visível. Mostrou-nos que sonhar é bom, mas que entrar em ação para tornar esses sonhos realidade é ainda melhor. Que não é preciso ser rico ou ter nascido em berço de ouro para se fazer o que se gosta. E que, no fundo, essa é a única forma séria de se viver. O seu espírito livre foi em busca de novas aventuras, agora que o seu corpo físico, embora bem cuidado, já não aguentava mais tanta energia.

D.R.

Em abril do ano passado, depois de mais uma etapa do circuito nacional de surf no Porto, resolvi passar de surpresa em sua casa quando regressava à minha. Uma das surpresas que mais me orgulho de ter causado. Comigo viajava o “pai da indústria do surf” em Portugal, Nuno Jonet, companheiro de muitas das suas aventuras. A surpresa foi de ambos, mas a felicidade foi toda minha e da Mané, que me piscou o olho quando nos viu. Não se viam há mais de 10 anos e o Pedro, de volta da torneira da cozinha que pingava, rapidamente deixou a chave inglesa e foi buscar o gin. Foi mais uma sessão de histórias e aventuras, desta vez a dois! Era dia 25, dia da Liberdade. Há lá melhor forma de a comemorar?

A última vez que estive com o Pedro Martins de Lima foi em dezembro do ano passado. Mais uma ida ao Norte e mais uma visita-surpresa, ao final do dia. O Pedro tinha vindo de uma consulta no hospital e estava a descansar no sofá. Quando me viu, levantou-se energicamente e rapidamente se pôs a falar da vida, das suas histórias e dos seus projectos. “Só não te ofereço um gin porque sei que vais a conduzir para baixo, mas um cafezinho vai, não vai!?” Claro que foi. Quando me despedi, pedi-lhe desculpa por ter aparecido tão tarde, ao que ele me respondeu: “Não te preocupes com isso. Fizeste muito bem! Até porque nunca se sabe quando vai ser a última... Alguma vez eu achava, quando era miúdo, que chegaria a esta idade!?” E largou a sua famosa gargalhada.

Eu olhei para ele e respondi-lhe: “Tens razão. Fica bem!” Ele deu-me um abraço e riu-se. “Estás a ver como conseguiste tratar-me por tu?”

É verdade Pedro, consegui. Que privilégio ter sido teu amigo! Obrigado por tudo e pelo teu legado maravilhoso. Obrigado por teres iniciado um caminho que, neste país por vezes ainda tão cinzento, seria provavelmente mais difícil de descobrir. Se Portugal poderia viver sem ti? Poderia... mas não seria a mesma coisa! Aloha e boas ondas!