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De onde vieste, Kelly Slater 🐐?

Surf

São três décadas de carreira, 11 títulos mundiais, 56 vitórias em etapas e tanto mais em Kelly Slater que tornam apropriado o uso da expressão G.O.A.T. (Greatest Of All Time) para o definir no surf. O americano, que ainda compete e há menos de uma semana voltou a ganhar em Pipeline, faz 50 anos e falámos com quem se cruzou com ele ao longo do seu meio século de lenda em curso. Com histórias de uma ida a um restaurante na Figueira da Foz e um pedaço de chocolate que o pôs aos berros em Peniche

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Diogo Pombo

Diogo Pombo

Jornalista

A perdição no olhar esverdeado que parece focar o vazio eternamente está lá e um quê de timidez reveste-lhe o corpo, pouco tapado por vestes. Tem o fato de neoprene a cobrir as pernas a meio, os braços estão metade à mostra, há uma licra branca no tronco e uma coroa a pontificar a cabeça. Ou não exatamente, é no cabelo que está a distinção floreada, pousada sobre a monumentalidade da maior diferença que a passagem do tempo por ele e por Pipeline, no Havai, lhe causa. “É o que faço na vida”, diz nesse dia, “e estaria a fazê-lo mesmo que não ganhasse dinheiro”, assevera depois o cabeludo, que fecha a intervenção no palco a esconder-se atrás do apresentador de serviço.

Os 20 anos notam-se na miudeza de Robert Kelly Slater e na época de então. É 1992 e acaba de ganhar uma etapa do circuito mundial de surf pela primeira vez. Apesar de “não termos visto um grande Pipe” já as gentes o tinham visto a garantir o título mundial no Brasil, algures na Barra da Tijuca atolada de corpos na areia, onde a sua não tão envergonhada forma de estar já tivera os cabelos alourados ao vento. “Só estou a pensar neste título que ganhei e espero, um dia, tentar ganhar outro”, esperançava, das profundezas do seu desconhecimento imberbe.

Esse Kelly não era o matulão com a pele gretada pelo sol, calvo no seu topo e também de licra vestida. Uma trintena de anos passaram e ei-lo pé descalço no palanque de Pipeline, com calção de banho da mesma marca, que é sua, do boné que lhe tapa o seu lugar inóspito para cabelo, acabado de surfar com pranchas e respetivas quilhas feitas por empresas suas e de ganhar a etapa inaugural do circuito de 2022 que, este ano, não vai parar na onda artificial criada por ele no interior da Califórnia, mas lá foi, nos últimos anos. Tudo ele, que abre a voz meio emocionada e já muito habituada à exposição para desabafar: “Não sei quantas mais destas vão acontecer, vou ter uma conversa comigo próprio. Dediquei a minha vida ao que faço”.

Kelly Slater estava a dias de perfazer os 50 anos que cumpre esta sexta-feira e ganhava pela oitava vez em Pipeline, a onda mais prestigiada, desafiante e tcharam! do circuito onde, três décadas antes, dera soltura ao seu legado lendário de vitórias. São 56 espalhadas por 11 títulos de campeão mundial e várias gerações de surfistas que apareceram, tentaram e sumiram enquanto o americano foi subsistindo na sua grandeza, dando à modalidade a que se dedicou uma certa confusão — o surf baralha-se com o nome de quem “é tão relevante hoje, em 2022, como era em 1992”.

Miguel Pedreira di-lo sem a mínima hesitação. O comentador e enciclopédia ambulante de surf acha-o “mesmo um sobredotado”, não se ficando só pela evidência de “nunca ninguém ter estado no topo da sua modalidade ao longo de 30 anos”. O português viu o nascer do fenómeno Kelly Slater e “terá sido algures em 1988 ou 89” que ouviu falar do americano, antes da preparação de “um Mundial amador”, hoje equivalente aos ISA Games. “Não havia internet, nada, tínhamos conhecimento das coisas através das revistas que vinham com três, quatro meses de atraso”, mas lembra-se de “um miúdo com 17, 18 anos que tinha uma maturidade e radicalidade no surf para lá do comum”. A anormalidade do americano cedo começou a “desafiar muito o establishment”, que é como quem diz que o ainda imberbe Kelly logo tratou de “arrasar” com a primeira de “várias gerações” com as quais coincidiu.

Kelly Slater em 1995, no US Open of Surfing em Huntington Beach, Califórnia (Foto: Getty Images North America)

Kelly Slater em 1995, no US Open of Surfing em Huntington Beach, Califórnia (Foto: Getty Images North America)

Quando apareceu, o rapaz de Cocoa Beach, na Florida, terra nem por isso afamada por ter boas ondas, foi destroçando aos poucos tipos como Tom Curren, Barton Lynch, Damian Hardman ou Martin Potter, todos eles campeões mundiais e vindos de trás, que ganhavam e deixaram de vencer. Quem viria depois — Sunny Garcia ou Mark Occhilupo — e partilhou geração com Kelly também sucumbiu à “chama interna muito grande que o leva a ser ultra competitivo”, sobretudo, “com ele próprio”, resume Miguel Pedreira sobre quem “se confunde com o próprio ato de competir no surf”.

A animalesca aptidão deste americano em plantar os pés numa prancha e domar qualquer onda, subvertendo-a conforme queira, torneando o corpo para a rasgar de qualquer forma, em milhentas condições, seja baseada em fundos de areia, pedra, coral, fê-lo só deixar de ganhar desde 1992 quando, realmente, quis parar. O havaiano Derek Ho ainda seria campeão no ano seguinte, mas, entre 1994 e 1998 foram cinco títulos em série. Vivalma o lograra, nem alguém o conseguiu entretanto e este encadeamento de grandeza chegou a tocar em Portugal.

A primeira vez que o circuito cá parou foi na Figueira da Foz, em 1996. As massas acudiram à praia do Cabedelo e Kelly Slater, sem molhar os pés, já era campeão mundial, culpa da não comparência de Shane Beschen. Bastava-lhe competir e calhou ser num heat a dois, contra Bruno Charneca. “Tenho ideia de uma estrutura gigante, de ondas muito boas e, claro, da hipótese de competir numa prova daquela dimensão”, lembra o primeiro campeão nacional de surf (1989), focando-se nos “últimos minutos” da bateria. ‘Bubas’ ia com a melhor pontuação, tinha a prioridade e “estava a tentar que ele não apanhasse uma onda boa que pudesse alterar a qualificação”.

Bruno ganhou e o espanto na praia superou os grãos de areia em número, como ele estima que terá acontecido na generalidade das cabeças matutadoras sobre o que poderia vir a ser Kelly Slater. “Acho que nunca ninguém acreditou que seria possível uma carreira tão longa. Sempre foi um atleta excecional, focado em competição como ninguém”, argumenta, elogiando-o por ser “impressionante” como ainda é capaz de “manter a técnica que apresentou” em Pipeline, onde prevaleceu com “domínio total” sobre “uma das ondas mais difíceis do circuito”.

A do Cabedelo está a todas as milhas possíveis de o ser, mas, em 1996, a amizade com Fernando Eloy, o promotor e organizador do Figueira Pro, valeu a Miguel Pedreira conhecer Kelly Slater, que menciona como um “rapaz inteligente” e com quem “dá prazer em falar”. De repente, quase parece estarmos perante a normalidade em pessoa. Do conhecimento travado nesse ano e noutros vindouros ficaram histórias, uma fez-se na noite em Lisboa em que Kelly “acabou a lavar a cara no rio Tejo”, outra ainda na Figueira da Foz.

Feita a espera destinada a apanhá-lo a jeito para uma entrevista, Miguel convidou-o para jantar e o barro colou na parede. Ele e Tim Baker, um jornalista da revista “Surfer”, aceitaram a boleia rumo ao restaurante onde combinara jantar com a equipa do Portugal Radical, defunto programa de televisão. Eram umas 20 pessoas. “Apareci com ele e, de repente, fez-se silêncio quando entrámos, ouviram-se talheres a cair, caras embasbacadas e aquilo foi uma risada pegada porque toda a gente queria falar com o Kelly”, conta, escalpelizando um pouco mais o serão que não ficaria pelo repasto à mesa: “Fomos beber um copo e acabámos todos numa discoteca da Figueira da Foz. Montes de amigos à minha volta e perguntavam se era mesmo ele. Depois, claro, ele foi à sua vida”.

Cheio de cabelo e pousando para a fotografia, em 1994 (Foto: Peter Carrette Archive/Getty Images)

Cheio de cabelo e pousando para a fotografia, em 1994 (Foto: Peter Carrette Archive/Getty Images)

Essa altura, com os anos 90 ali nos seus equadores, era “um homem bastante mais solto e desprendido”, leveza que o abandonaria, ele “foi mudando bastante” à medida que ficou “mais velho e maduro”. Aos olhos de Miguel Pedreira, essa mutação apareceu “ali nos seus 30 e muitos, 40s”, quando virou “mais calado e fechado” já após dar um tempo à competição — retirou-se do circuito entre 1998 e 2002, com seis títulos mundiais ganhos — e se experimentar na televisão, com mais de uma vintena de aparições na série ‘Baywatch’ – “Marés Vivas” em Portugal. De lá surgiria o namoro com Pamela Anderson, que o mediatizaria ainda mais.

Para a reputação de ser um árduo entrevistado, de se embalar com um feitio de cortejo difícil e de fugir à exposição além-surf contribuiu, também, o maior dos taco-a-taco que teve na carreira. O seu regresso à competição coincidiu com a ascensão de Andy Irons, o incrível e bipolar surfista que seria o maior rival de Kelly Slater enquanto, mentalmente, construiu um pior inimigo dele próprio. O havaiano seria tricampeão mundial em 2002, 2003 e 2004, quando o choque entre ambos foi inflacionado ao máximo ao ponto de faiscar. “Se eu soubesse que algo o iria chatear, fazia-o, e ele era igual”, ilustraria Kelly, no documentário ‘Touched by God’, ao lembrar um fato integralmente branco que a Quiksilver, o seu patrocinador principal à época, fez e lhe pediu repetidamente para não usar. Mas, perante a admissão de Andy, na cara, dizendo que “odiava aquele fato”, ele vestiu-o durante mais de um ano em competição.

Durante cinco anos, os dois dominaram o circuito. Kelly venceria os títulos de 2005 e 2006, apimentando a rivalidade que, mesmo com Andy Irons a titubear a partir daí, perduraria até 2010, ano em que o havaiano foi encontrado morto na cama de um hotel no Texas, onde aguardava por um voo com destino o Havai. Essa disputa como o surf não mais teve outra, sequer, parecida, é uma das coisas que Filipe Jervis ressalva da carreira de quem é define como “o G.O.A.T.”.

O literal da tradução seria “cabra”, não fossem as letras postas como iniciais de “Greatest Of All Time”, sigla usada a preceito por tudo quanto é gente das ondas. “Não há muitas palavras para o descrever”, refere o surfista que compete no circuito nacional, que teve o fortúnio de se coabitar com Kelly Slater durante uma semana, em Peniche, numa das vezes em que o senhor surf competiu em Supertubos, já com Portugal a ter honras de paragem residente no mundial — acontece desde 2010, já depois de o americano ganhar o mais recente dos seus 11 títulos, em 2009. Ficou na casa da Quiksilver, marca que deu guarida a Kelly apesar de já não o patrocinar.

Filipe dividiu quarto com Kanoa Igarashi e viu de perto a minúcia da lenda caminhante, um pleno quarentão, a “tratar o corpo como um templo”, um completo “obcecado pelas proteínas, sementes e coisinhas todas dele”. O rigor a que assistiu tem a prova no quão o “fora do normal” é Slater, no como o undecampeão “ainda consegue competir ao mais alto nível”, evidência que só poderia viver em paralelo a uma exigência nos píncaros do detalhe. “Houve um dia em alguém lhe comeu um pouco de um chocolate com 95% de cacau, todo xpto”, retrata o português, contando o episódio em que percebeu “um bocadinho” a peculiaridade de Kelly: “Ele andava pela casa aos berros a tentar descobrir quem tinha comido, claro que não ficou irritado, mas deu para ver que preza muito as suas coisas, o cantinho dele e a preparação”.

A semana passaria sem que o português e o americano trocassem uma palavra, nada, nem jantando à mesa com todos os convivas. Slater só lhe “dirigiu a palavra” no último dia, ato tardio que Filipe Jervis não critica, muito menos ressente, antes compreende: “Faz parte da maneira de ser dele, é uma super estrela muito famosa e é sempre preciso ter cuidado com as pessoas que aparecem”. Ele ficou “encavacado” quando, por fim, comunicaram “olhos nos olhos” antes do monstro do surf prosseguir com a sua vida cheia de pegadas cravadas na história da modalidade.

Em 2000, no meio de Pipeline, quando as pranchas lá usadas ainda eram tão compridas (Foto: Pierre Tostee / Allsport)

Em 2000, no meio de Pipeline, quando as pranchas lá usadas ainda eram tão compridas (Foto: Pierre Tostee / Allsport)

A coleção de vitórias vai em 56, ficaram mais espaçadas com o tempo e o rei dos elogios será constatar que esse número é quase o mesmo que marca a idade de Kelly Slater. Antes da sua prevalência em Pipeline, este mês, a conquista anterior foi em 2016, no Taiti, onde quebra a gargantuesca onda de Teahupo’o. “É um tipo fora da curva e um exemplo de longevidade, o mundo inteiro sabe disso”, resume-nos Adriano de Souza, brasileiro que colheu o seu título mundial em 2015 e pode gabar-se de ostentar um saldo positivo (11 vitórias em 15 confrontos, incluindo uma final em Supertubos, em 2011) contra o surfista cujo legado ganhará a todos.

Porque Kelly não é apenas um surfista, a sua existência é quase o próprio surf.

Ele não se limitou a surfar, mesmo que tenha pincelado o nosso imaginário com manobras impróprias para um quarentão — a rotação e meia (540º) que deixou há uns anos em Peniche, numa casual sessão na água, servem de exemplo. Criou uma marca própria de roupa sustentável (Outerknown). Investiu e entranhou-se no processo de criar uma onda artificial no interior da Califórnia, a mais de 100 quilómetros do mar, onde a World Surf League já faz parar o circuito mundial. Comprou uma marca de pranchas (Firewire Surfboards) e até já lançou uma empresa de quilhas (Endorfins). “Acredito que o maior motivo dele continuar no tour é as empresas que hoje leva em seu nome”, suspeitou Adriano de Souza, antes de chegar ao que o prejudicará mais este ano, seja lá o que estiver a deliberar fazer.

Ao escolher não se vacinar contra a covid-19, Kelly Slater ficará impedido de entrar na Austrália, onde, em abril, se realizam a quarta e quinta de 10 etapas do Championship Tour, exatamente antes de os 36 surfistas serem cortados para apenas 24. Ao discursar na ressaca da vitória em Pipeline, o novo cinquentão ainda nem sabia se ia competir na segunda prova do ano, no Havai. “Vou ter de ter uma conversa comigo próprio”, disse. De repente, o careca que é quase um farol na história do desporto lidera o circuito e poderia pensar, por que não, em tentar uma última vez. Em perseguir um 12.º título mundial, 30 anos depois de se agarrar ao primeiro.

A gritar pela última vitória, a menos de uma semana de chegar aos 50 anos, no Havai (Foto: Tony Heff/World Surf League via Getty Images)

A gritar pela última vitória, a menos de uma semana de chegar aos 50 anos, no Havai (Foto: Tony Heff/World Surf League via Getty Images)

Filipe Jervis crê que a proeza recente no Havai e o facto de estar na liderança “mexe, de alguma maneira, no íntimo” da pessoa que Miguel Pedreira considera “um gajo muito curioso, muito inteligente”, talvez ao ponto de ser uma cobaia das suas divagações. “Acho que está a estudar o corpo humano nele próprio. Sempre teve muito cuidado com isso, com o ioga, com aquilo que come, e agora está a ver onde o corpo e a mente humanas conseguem chegar se corretamente tratados”, sugere quem o viu aparecer, lhe registou as conquistas, o avaliou nos feitos e o tem visto “sempre no topo ao longo destes 30 anos”. Uns “mais apagados”, outros “mais acesos”, mas “tudo isto é quase impensável”.

O português recorda-se de, sobre Kelly Slater, ouvir em tempos que “não era nenhum alien”. Mas é, insiste. E são mais as vezes em que esta parece ser a única justificação plausível para todas as suas coisas. Seja para os metros de água em movimento aos quais se lança com o corpo com tantas décadas nos ossos, ou para as folhas nas quais escrevia a pontuação de cada bateria em que surfava para, no verso, “apontar umas coisas” e ficar com “um catálogo de todos os heats ao longo dos anos”, como admitiu a um podcast, Kelly é inexplicável.

Ele próprio disse que só tarde se apercebeu que “mais ninguém” tomava notas de cada vez que entrava no mar para competir. Ainda hoje, tão-pouco alguém terá percebido de onde veio Kelly Slater, como é que ele é possível, nem para onde ele irá.