O peculiar defesa central do Sporting que foi contra um guarda-redes chamado Scherpen
CHRISTIAN BRUNA/LUSA
Na Áustria começou a aventura do Sporting esta época na Liga Europa e de lá voltou com a primeira vitória (1-2) de sempre no país. Mas, durante muito tempo, pareceu pouco provável. Só na segunda parte, e após três defesas espetaculares do guardião do Sturm Graz, os leões acordaram num relvado esburacado onde Diomande, o central amigo da bola, foi à outra área bailar sobre si próprio para resolver
Quando a fumarada assentou, as camisolas da mesma cor já se distinguiam, brancas que nem cal, a contrastarem com o relvado de Graz tapado parcialmente pelo bafo das tochas acendidas nas bancadas. Quase 10 minutos demorou o nevoeiro artificial a dissipar, houve tempo para se verem defesas infantis de cada lado a lançamentos laterais, pior para o Sporting porque Adán se assustou na baliza a defender um cabeceamento do mais baixo entre os austríacos, quem tinha o nome mais esquisito. Para quem fala a língua que abre bocas com ditongos, dizer Otari Kiteishvili é árduo por comparação ao portuguêsmente familiar Daniel Bragança.
Pena é um sentimento de aparência dúbio, senti-lo não é bom nem mau à partida, mas o talentoso médio, vindo da penitência tão morosa, não levará a peito que a sua história recente suscite essa reação: esteve um ano sem jogar, encostado entre cirurgia, muletas, sessões de ginásio, fisioterapia e a ter de ir ao ritmo de um exercício de reabilitação de cada vez para regressar à relva e devolver o seu pé esquerdo a uma bola. Ele voltou, o treinador elogiou-o, jogou na pré-época e inaugurou-a no campo, a titular na até agora maior montanha-russa de jogo (contra o Vizela) para só reaparecer de início na Áustria.
Sentir pena de Daniel Bragança em Graz seria demasiado e motivo seguro para ligar à polícia do exagero, um jogador que esteve um calendário sem jogar e finalmente joga sem preocupações não o merece. Mas ele, um centrocampista de cabeça erguida, peito feito, pincel impressionista no pé, teve a bola a saltitar-lhe à frente pelas lombas de um relvado a fazer a sua melhor imitação à superfície lunar, coberto de buracos e o português sem um segundo a descoberto da teia de marcações que o adversário montava a meio-campo. Sem a bola, o Sturm Graz tentou aprisionar o Sporting.
Os austríacos faziam recuar um dos dois atacantes e pediam a quem tinham nas alas para fechar espaços ao centro, assim se formava a jaula onde Hjulmand e Bragança tinham pressão constante nas costas. Desprovidos de tempo para se virarem, com bola, para o jogo, o dinamarquês apressou a sua queda para o passe vertical, falhando vários, e o português era subjugado a disputar duelos nas vezes em que não se livrava de quem o chateava com receções orientadas. Mastigada com duelos e disputadas de bola no centro do campo, a partida empobrecia-se ao ritmo a que se abriam crateras no relvado.
O Sporting sofreu para jogar e não jogou o suficiente para deixar de sofrer. Paulinho não existia entre linhas. O errático Geny Catamo, a tentar driblar a cada bola, teve dois passes para corridas de Gyökeres que à direita e pela esquerda ia cavando faltas, uma delas teve Hjulmand a curvar uma bola na qual ninguém tocou e que passou perto de um poste (32’). Trincão não foi mais do que um desbloqueador de transições perto da própria área - perdia-se em indecisões quando tinha a área do Sturm Graz à vista - e Daniel Bragança, regressado depois de tanto tempo, dava nas vistas em que a sua génese não o daria como vistoso.
Recuperador de bolas, atirando-se aos duelos com dentes a cerrarem-se, estancou várias jogadas do Sturm Graz que explorava as receções do georgiano Kiteishvili nas costas dos médios do Sporting, que batalhava mais do que jogava. Sem critério nos últimos 30 metros do campo, só um cruzamento de Matheus Reis deu uma bola de remate na área, mas só saltando para trás (41’) Paulinho lhe conseguiu chegar com a cabeça. Não acertou na baliza, lema da equipa até à segunda parte.
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Não sendo capaz de se libertar da aglomeração de gente promovida pelo Sturm Graz ao centro, o Sporting volto a acelerar do balneário. Uma jogada que esperou por ter Catamo só com um corpo por driblar com baliza à vista fê-lo tirar da frente o adversário e rematar, na seguinte o moçambicano libertou-se para cruzar à cabeça de Trincão. O remate do cabeludo extremo, a quem faltou critério para dourar as bolas que lhes chegaram, serviu como uma espécie de ato cerimonioso, no caso um de abertura das cortinas para se dar o palco a um artista.
No caso, Kjell Scherpen e respetivos longos membros.
O neerlandês de larga envergadura e 202 centímetros de altitude negou, com uma parada à andebol, a tentativa vindo do crânio do português, primeira de três negações espetaculares do guarda-redes a que o Sporting dedicava mais pressa e posicionamentos mais arrojados para alcançar. Um deles era Geny Catamo descolar da habitual linha de cinco homens a defender para pressionar o ala adversário, deixando a equipa a defender a área com quatro jogadores. Opção notada desde o início, mas que o moçambicano acentuou aos 58’, quando caiu sobre Danté perto da linha de fundo, que lhe vestiu uma cartola e disparou uma transição que feriu o Sporting de sobremaneira.
O contra-ataque explorou o buraco deixado pelo moçambicano, encontrou o seu alvo entre linhas, Kiteishvili girou, correu e rematou contra o poste para, do lado vagado por Catamo, aparecer o dinamarquês Willian Bøving para a recarga (58’) castigadora. O Sturm Graz marcava com o que era - uma equipa pressionante, cheia de cercos montados no meio-campo, montada para atacar rapidamente. O Sporting comportava-se como sombra de si próprio, lento e incapaz de se libertar das amarras que o cansaço dos corpos a mexerem-se num relvado tão pesado ajudou a tornar lassas.
A pronta entrada de Nuno Santos era a mensagem para a equipa atacar a área com bombardeamentos, o melhor pé de cruzamento entrava e campo e sem aviso, quase sem olhar, curvou uma bola para lá que encontrou, na ressaca de um canto, o alvo preferido. Coates tocou-a para Paulinho, o galante avançado estava na pequena área, a baliza nas suas barbas, uma finalização no peito do pé sem importunações por perto. Mesmo sem desviar a bola para os mais de sete metros de largura da baliza, a proximidade era sua amiga, mas o espetacular Scherpen agigantou-se: com outra defesa andebolesca (67’), o guarda-redes resgatou a bola. Mas, sem descanso possível, a recarga ficou à mercê de Gonçalo Inácio que, ainda de mais perto, a cabeceou para o neerlandês de novo salvar o Sturm Graz.
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O brilho do jogo estava na baliza austríaca, o inaudito Scherpen parecia estar a congeminar uma exibição para a humanidade esculpir em grutas e séculos depois alguém interpretar. As três paradas, excelsas e vindas de reflexos incríveis, fizeram o Sporting insistir ainda mais. Só o deixou de tentar com mais do mesmo quando pôs a mira de uma jogada em Pedro Gonçalves para ele responder a espetáculo com um pedaço do seu. O passe de Catamo mirou-lhe as traseiras dos pés, Pote improvisou uma receção de calcanhar, fez a bola passar por cima dele e do adversário e, sem a deixar aterrar, rematou-a de primeira à direita da área.
Parco em ângulo, a transbordar de surpresa, respondeu ao espetáculo do guarda-redes com um gordo pedaço da sua própria espetacularidade. Scherpen, quiçá embriagado das suas façanhas, encandeou-se com a que um adversário lograva. Maõs de manteiga, o guardião largou a bola que tentou agarrar e o esperto Gyökeres ocorreu à sobra (76’) para marcar. O empate fez Rúben Amorim tirar Morita no banco, lá sentar Bragança e entregar o meio-campo ao japonês. Nesse filtro novo nos passes assentou o Sporting para controlar o último quarto de hora.
O golo benfeitor chegaria tarde, num de vários assaltos à área. Forçando, controlando a bola, fazendo mais passes, os leões sofriam faltas que lhes tentavam cortar o ímpeto e uma delas parou no pé de Pedro Gonçalves, cujo cruzamento foi cortado para a entrada da área. Lá estava a peculiaridade de Ousmane Diomande, à espera com a sua aparência enganadora.
Porque o costa-marfinense é encorpado, forte e potente, à vista desarmada o seu corpo é de central imponente nos duelos e garrido pela estampa, mas, à beira da área do Sturm Graz ele mostrou o que já fez perto da sua área, bailou sobre a bola e ele próprio, rodopiou com pés de lã, a leveza de um corpo corpulento mas nunca monólito, simulou um remate, enganou adversários e rematou com a chuteira direita. A bola desviaria em Coates e o feito do defesa central de aptidão incomum para resistir, qual bailarino de leveza de movimentos, a quem o tenta roubar, sendo ele um ladrão defensivo, contou com outra quase-proeza que pareceu atestar as propriedades de quem estava na baliza.
Kjell Scherpen ainda conseguiu ir com uma mão à relva, fazer o corpo tombar e tocar ao de leve na bola vinda com força do ricochete. O guarda-redes não impediu o golo (84’) que fez o Sporting sair com a vitória de Graz, muito menos o fará esquecer das amanteigadas manápulas que tivera aquando do empate, mas ser tão alto, tão grande e ter uma reação tão pronta a um desvio será pormenor a juntar aos três malabarismos com que antes negara uma felicidade aos leões.
À oitava viagem feita à Áustria, finalmente o Sporting ganhou. Nem por isso jogou para se sentar no avião com um sorriso: a incapacidade de escoar passes a meio-campo, ligar jogadas por dentro e chegar à área com critério viu-se durante mais de uma hora. Ou, então, que sorria por ter Ousmane Diomande, um defesa central peculiar, dono de uma calma aptidão em lidar com a bola como muito boa gente que joga metros por diante dele no campo há de se retirar do futebol sem sentir como é tê-la.