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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Ninguém aterra no topo caído de um paraquedas. Ainda assim, há erros na arbitragem. Porquê? Porque arbitrar é difícil

O antigo juiz internacional Duarte Gomes explana detalhadamente o percurso que qualquer árbitro tem de fazer desde o primeiro curso até à elite, para lembrar que a competição e a concorrência obriga à excelência. Ninguém chega ao topo sem provar valor e os erros acontecem porque arbitrar, sobre a constante pressão dos adeptos e do tempo, é uma arte muito, muito difícil

Duarte Gomes

Piaras Ó Mídheach

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Ser árbitro de futebol. Da base ao topo, dos desafios às dificuldades. Percebam, em linhas gerais, como tudo se processa:

1. Tirar o curso. Esse é o ponto de partida, o primeiro passo rumo à habilitação. Só quem tem curso certificado pode ser árbitro de futebol. Hoje em dia, qualquer menina ou menino de 14 anos (pelo menos) pode lançar-se nesse desafio, ficando depois apto a dirigir jogos de futebol, futsal ou futebol de praia. Depende da variante que escolham.

Quem queira fazer carreira como árbitro assistente tem à mesma que frequentar esse curso, que geralmente é lecionado pelos conselhos de arbitragem regionais, obedecendo a um planeamento nacional.

2. Começam os jogos. Todos os que forem aprovados nos testes teóricos e físicos, concluem essa etapa com sucesso e ficam habilitados a arbitrar.

O primeiro ano de carreira é geralmente o mais importante, por isso a regra é começarem como árbitros assistentes em jogos de menor exigência competitiva - iniciados e juvenis -, arbitrando também jogos da categoria de Futebol de 7 (destinado aos benjamins, petizes, traquinas e infantis).

A ideia é que cumpram esse trajeto de forma gradual, sem grande exposição e com monitorização constante (o que nem sempre é possível, face à escassez de recursos nessa área).

Depois de cumpridos os primeiros anos a nível regional, com centenas de jogos acumulados, os árbitros que provem ser os melhores no escalão máximo distrital (há vários parâmetros para medir performance) e que tenham idade regulamentar, podem aspirar à serem promovidos aos quadros nacionais.

Podem sonhar com a subida de categoria, que no caso lhes permitirá arbitrar jogos dos quadros da Federação Portuguesa de Futebol.

Já aí, são permanentemente avaliados (em jogos, provas físicas, testes escritos, frequência a cursos, assiduidade a treinos/Núcleos, etc), sendo que o objetivo seguinte passa a ser o de atingirem o escalão máximo do futebol português, aquele em que ficam qualificados para arbitrar jogos da primeira e segunda ligas.

De todos os árbitros no ativo, só 0,5% chegam ao futebol profissional. Só esses conseguem um lugar no topo da hierarquia. As contas são fáceis de fazer: existem cerca de 4000 árbitros no ativo, dos quais apenas 22 na primeira categoria

É uma luta renhida, que estimula a competição e obriga à excelência.

A partir daí, o caminho que se segue é o de tentarem atingir o patamar seguinte, que no caso significa as insígnias da FIFA. Só esse estatuto lhes permitirá arbitrarem jogos e competições internacionais.

Chegados aí, começam de baixo. Mais uma vez. Passo a passo a passo podem (ou não) provar o seu valor e potencial, subindo de categoria. Só chega à Elite quem durante anos prova competência, qualidade e vocação, sempre de forma consistente. É impossível atingir o cume da montanha por acaso ou com sorte de principiante, porque os parâmetros de avaliação são muitos e duram anos a fio. O pior mesmo é manter-se no topo, sem acomodação nem endeusamento. Lá em cima é preciso trabalhar ainda mais, mostrar o dobro e provar o triplo, porque a queda demora um segundo. Apenas um segundo.

Este processo, da base ao topo, é mais ou menos semelhante em todo o lado. Não é apenas nosso. É mais ou menos assim em Espanha, em Inglaterra, em Itália, no Brasil ou na China.

Ninguém aterra no topo caído de um paraquedas. Ninguém chega lá cima sem provar valor.

Mesmo assim, ao mais alto nível, todos assistimos a arbitragens infelizes, a erros "inadmissíveis" e a decisões que não deviam acontecer com recurso à video-tecnologia. Porquê? Porque arbitrar é uma arte muito, muito difícil.

E sem prejuízo de tudo o que já aqui se disse e escreveu sobre o que deve ser feito para melhorar processos de decisão (sim, há árbitros melhores que outros, há quem tenha mais jeito e sensibilidade, há muito para evoluir na preparação e qualificação), a verdade é que em quase todas as jornadas, de todas as ligas relevantes, assistimos a equívocos sucessivos, que poucos compreendem e toleram.

Porquê? Repito: porque arbitrar é difícil.

Seria muito bom que toda a gente tivesse, pelo menos uma vez na vida, a oportunidade de pegar num apito, calçar umas botas e ir lá para dentro, para perceber que o mundo que ali se vê e respira é totalmente diferente daquele que se perceciona cá fora.

Seria também excelente que todas as pessoas tivessem possibilidade de estar sentadas numa sala como a do VAR, a selecionar imagens, frames e repetições no menor tempo possível, sabendo que têm 50.000 adeptos à espera no estádio e mais uns quantos milhões em casa.

Seria bom que sentissem essa pressão terrível, essa carga emocional, para terem noção que, mesmo com todos os meios à disposição e com todas as certezas momentâneas, a cabecinha e pressão podem trair a lucidez e inibir a melhor decisão. Nem sempre é incompetência, às vezes é mesmo humano.

Não é desculpa, não é corporativismo nem é justificar o injustificável. Já perceberam, pelo trabalho que faço, que não dou para esse peditório.

Estou a ser francamente sincero convosco.

Fica por isso renovado apelo à tolerância e empatia, sobretudo nesta reta final dos campeonatos. Não é fácil controlar emoções mas é importante baliza-las para que nunca resvalem para zonas proibidas e perigosas.

Somos todos falíveis. Todos. Não é justo que vejamos os outros como não permitimos que nos vejam a nós.

"Antes de julgar a minha vida ou meu caráter, calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri (...)".

Clarice Lispector