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Duarte Gomes

Duarte Gomes

ex-árbitro de futebol

Mandar matar com veneno é mais refinado do que ser engolido numa viga de betão? (por Duarte Gomes)

O antigo árbitro internacional questiona aquilo que diz ser a hipocrisia de quem critica a organização do Catar, esquecendo outros abusos que grassam pelo planeta fora

Duarte Gomes

Uma manifestante da Amnistia Internacional Espanha, em maio de 2021

SOPA Images/Getty

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Esta semana decidi escrever sobre direitos humanos, assunto muito em voga nos últimos tempos.

Para que fique claro, não tenho a mínima dúvida que o Catar, tal como muitos outros países da região, não promove nem protege a igualdade de género nem a liberdade de expressão e pensamento que se espera num país moderno e evoluído. Não faltam testemunhos credíveis que dão conta disso.

Não vamos mais longe. Peguemos nas recentes afirmações de Khalid Salman, embaixador do Mundial 2022, que considerou a homossexualidade uma doença mental. Ora doente mental é quem profere uma afirmação destas sem se rir, em pleno século XXI.

Se isso não bastar, lembremo-nos da forma como são tratados paquistaneses, cingaleses, indianos e bengalis, ali considerados como mão de obra barata. Há relatos fidedignos de abusos e maus tratos frequentes. É mau, muito mau e não há muita gente que possa duvidar disso.

Mas a consciência dessa realidade não me impede de achar todo este vendaval de críticas como algo demasiado folclórico e artificial. Algo hipócrita, até. Deixem-me explicar-vos porquê.

O Mundial de 2022 foi atribuído ao Catar em dezembro de 2010. Eu vou repetir: em dezembro de 2010.

Nestes doze anos foram poucos (ou nenhuns) os que ergueram a sua voz para criticar um regime que é há muito aquilo que é hoje. Será que ninguém conhecia a "rigidez" das leis catarenses ou os mais justos só acordaram em vésperas da bola começar a rolar? Porquê tanta revolta agora, só agora? Porque não antes? Porque não quando a FIFA nos chocou com esta organização, há tantos anos?

Falemos das mortes de trabalhadores. Algumas notícias avançaram com número de óbitos superiores a 6500, o que alguns fact checks vieram contrariar: os dados eram relativos à totalidade de cidadãos estrangeiros que morreram no país desde 2010 e não aos que faleceram nas obras dos estádios, mas isso é irrelevante para o caso: uma morte, uma só, é sempre uma tragédia, é sempre uma a mais. Se resultar de más condições de trabalho ou de negligência de quem contrata, mais grave ainda. No caso, houve demasiadas que resultaram.

A questão é que tudo isto era mais ou menos previsível porque a construção de tantas estradas, centros comerciais, hotéis, espaços lúdicos, estádios e meios de transporte em tão pouco tempo e num país onde impera uma monarquia absoluta, antecipava este cenário. Como é que tantos só tiveram consciência disso quando a competição arrancou?

A este propósito, confesso que achei intrigante ver alguns jogadores e federações a manifestarem posições públicas de repúdio (todas justas sob o ponto de vista moral), mas ninguém teve coragem de, no momento certo (aquando da atribuição do Mundial), bater o pé e dizer: "Se formos qualificados, não vamos!".

Todos os que participam na prova asseguram que o fazem em nome do seu profissionalismo, como se esse fosse maior do que a defesa intransigente de valores como o são os direitos fundamentais dos homens. Será? Devia ser?

Na prática, o que isto nos mostra é que a maioria daqueles que condenam "atrocidades" em determinados países, não se importam de viajar para lá, desde que em trabalho ou para passar uns dias. Desculpem lá... mas que coerência é esta?

É como se soubéssemos que na casa do João acontecem coisas horríveis, que nos revoltam e que reprovamos, mas não deixamos de lá passar para beber um copo ou ter uma reunião.

Pior, muito pior, é tudo aquilo que entretanto permitimos que aconteça, todos os dias, à frente dos nossos olhos.

Situações que optamos por ignorar porque a realidade é difícil de digerir ou porque o incómodo de nos confrontarmos com ela tira-nos da zona de conforto. Exemplos:

1 - A maioria das bolas usadas neste Mundial vêm de uma cidade paquistanesa chamada Sialkot, que exporta cerca de 65 milhões de unidades por ano. Segundo relatórios de diferentes ONGs, quase todas são fabricadas por crianças exploradas em trabalho infantil. Dizem por lá que os dedos delas, por serem pequeninos, são melhores para costurar. Sem comentários. Os adultos recebem 50 centavos por cada bola concluída. Bola que custa 120, 150 euros ao consumidor final.

Isto também conta como violação de direitos humanos ou mudamos de assunto?

2 - A bateria dos telemóveis, tabletes e computadores - gadjets que utilizamos todos os dias, a toda a hora, para trabalhar, gravar vídeos ou tirar fotografias - é construída com cobalto. Esse metal é retirado de pedras que se encontram em minas. Minas onde crianças e trabalhadores operam cerca de 16 horas por dia, sem receberem salários ou usufruirem de condições dignas. Isso acontece, em particular, na República Democrática Congo, um dos maiores exportadores do mundo.

Em 2019, a Apple, a Google, a Tesla e a Microsoft foram a tribunal devido ao facto de terem conhecimento que a matéria-prima que utilizavam nos seus produtos resultava da exploração ilegal de crianças e adultos nas minas da RD Congo. Alguém falou disso? Alguém deixou de usar iPhones e Samsungs?

Já agora, com qual dos dois está a ler este artigo? É má altura para falarmos sobre direitos humanos ou mantemos a tónica apenas no Catar?

Mas há mais: alguém criticou o facto do anterior Mundial (2018) ter sido organizado pela Rússia, país onde liberdade individual rima com... nada? Poucos, certo? Porquê? Mandar matar com veneno é mais refinado do que ser engolido numa viga de betão? Desculpem a franqueza, mas tudo isto faz-me imensa confusão.

Pobreza e desigualdades, conflitos armados e violência, abusos e discriminação, intolerância e torturas, escravidão, falta de liberdade de expressão e aplicação injusta de leis são alguns dos direitos humanos mais desrespeitados no mundo. Nalguns casos o atropelo acontece nas nossas barbas, aqui ao lado, perto dos sítios que adoramos visitar. Se queremos defender os valores certos, temos que o fazer de forma consistente, abrangente e implacável. É ou não é?

Sim, muito do que se passa no Catar merece o nosso repúdio, tal como o merece o que acontece a toda a hora na Eritreia, no Irão, no Afeganistão, etc.

De cada vez que tiverem curiosidade para conhecer Meca ou Coreia do Norte, se vos apetecer visitar a Muralha da China ou viajar até às praias de Varadero, lembrem-se disso. Ou então não.