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O annus horribilis de Cristiano Ronaldo

O 4-0 à Chéquia foi um excelente resultado tendo em conta que nestes jogos, como indica Bruno Vieira Amaral, o que está em causa não é tanto a conquista da Liga das Nações, troféu que já reluz na vitrina da Federação, mas o PRR de Fernando Santos: o Plano de Recuperação de Ronaldo. Todos sabemos que a suplência de Cristiano na seleção, independentemente das condições físicas do jogador, é uma impossibilidade ontológica

Bruno Vieira Amaral

Thomas Eisenhuth/Getty

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No sábado estava a ver o jogo da seleção contra a Chéquia (pronto, já escrevi; não é fácil mas já escrevi, Chéquia) e a lembrar-me daquele filme em que o Leonardo DiCaprio passa um mau bocado e, a certa altura, é esfacelado por um urso. Bem, a Cristiano Ronaldo só lhe faltou ser atacado por um urso em pleno estádio, embora o embate do guarda-redes checo com o seu precioso nariz não tenha sido nada meigo.

Um nariz sanguinolento, um penálti cometido, golos fáceis falhados com chutos anedóticos. Se havia dúvidas, a confirmação está aí: este é o annus horribilis de Cristiano. E se me lembrei do filme O Renascido não foi tanto pelos padecimentos de CR7, mas pelo altruísmo castrense dos companheiros. Na prática, foi como os seus camaradas de armas tivessem posto o corpo massacrado de Ronaldo numa padiola e o tivessem carregado através dos bosques da Boémia até chegarem ao quartel.

E fizeram-no com tanto denodo e proficiência que ainda tiveram tempo de aviar quatro batatas aos checos. O que é um excelente resultado tendo em conta que nestes jogos o que está em causa não é tanto a conquista da Liga das Nações, troféu que já reluz na vitrina da Federação, mas o PRR de Fernando Santos: o Plano de Recuperação de Ronaldo. Todos sabemos que a suplência de Cristiano na seleção, independentemente das condições físicas do jogador, é uma impossibilidade ontológica. Logo, para chegar fresco ao Mundial, o ritmo que não adquiriu no clube terá de o adquirir na seleção.

E o selecionador precisa desesperadamente que Ronaldo recupere: em primeiro lugar, porque um Ronaldo em forma aproxima Portugal das vitórias; em segundo lugar, porque mesmo que Ronaldo não esteja em forma o engenheiro nunca o privará da titularidade (alguém imagina Ronaldo como jogador-talismã, lançado como amuleto de bruxaria a quinze minutos do fim, o Mantorras nacional?) Nem que tenha de jogar naquela posição que nunca lhe agradou, a de ponta-de-lança, onde é presa mais fácil para os defesas contrários. Esse é o sacrifício que o jogador está disposto a fazer. O resto dos sacrifícios distribui-se por companheiros e pelo selecionador que terá de inventar o PRR perfeito.

Se Ronaldo foi muitas vezes, com vários selecionadores, o abono de família da equipa nacional, a seleção é neste momento o porto de abrigo de Ronaldo, o seu ninho, aquele lugar onde encontra proteção e companheiros de equipa que não se surpreendem por ele manifestar o desejo de jogar até aos 50 anos, que ainda repetem, embora já com uma pontinha de ironia, que é o melhor jogador do mundo, e que não se importam de carregar o “Cris” porque o “Cris” é muito importante e carregar o “Cris” não é um sacrifício, é uma honra, etc.

Mas ninguém mais do que Ronaldo sente quão delicado é este momento da carreira. Em Praga, ele não esteve apenas mal, foi um desastre. E um desastre ainda mais saliente porque todos os outros jogadores estiveram a um nível altíssimo. Acredito que a “azia” indisfarçável após o golo de Diogo Jota não denote falta de solidariedade do capitão da seleção, mas a consciência de que, a manter-se assim, a situação é insustentável. Ele quer mais do que nunca, mas nunca pôde tão pouco como agora. E essa frustração, para alguém tão exigente como Ronaldo, é inocultável.

Faltam dois meses para o Mundial. A gratidão é um sentimento bonito, mas uma das melhores seleções do mundo não pode ser um panteão. Se fosse, Éder teria até ao fim da carreira um lugar entre os convocados, mesmo só para estar no banco e inspirar os companheiros com a recordação daquele pontapé irrepetível no Stade de France. Faltam dois meses para o Mundial e já nem se pede que Ronaldo volte a ser o Ronaldo de há cinco ou seis anos, mas que recupere o suficiente para não ser um peso-morto em campo. Se recuperar, não só resolve um problema ao selecionador como ainda irá a tempo de transformar o annus horribilis num annus mirabilis.

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