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A maioria das pessoas olha para os árbitros com o mesmo desdém com que olha para um malandro qualquer. Mas não pode haver jogo sem árbitro

A partir de uma situação pessoal, em que foi confundido com um dos juízes envolvidos no caso "Apito Dourado", o ex-árbitro internacional Duarte Gomes lembra que parecemos culturalmente formatados para suspeitar de qualquer figura que tenha poder de decisão

Duarte Gomes

Matthew Ashton - AMA

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A história que vos vou contar é real (palavra que é) e aconteceu agora mesmo, numa tarde de sol, algures no Algarve.

Estava a levar a prancha de bodybord à minha filhota (tem 12 anos e adora essas coisas) e passei por um casal que, aparentemente, me reconheceu das andanças da bola.

Até aí, tudo normal. Ossos do ofício.

Mas a forma como cheguei a essa conclusão não deixa de ser elucidativa quanto à imagem que parte da opinião pública tem da nossa arbitragem.

À minha passagem, a senhora disse para o marido:

- "Não foi este tipo que esteve envolvido nas escutas do Apito Dourado?".

- Ele respondeu, em tom afirmativo e sem hesitar: "Sim, foi.".

Assim, de repente e a meio de um fim de semana em família, deixei de ser o pai e marido, para ser o corrupto.

Tudo com uma certeza inabalável, com uma segurança e normalidade incríveis. Falaram e sentenciaram. Ponto.

Bem... por acaso, não. Não foi este tipo que esteve envolvido nas escutas do Apito Dourado.

Há muitas marias no mundo e "esta" só foi chamada como testemunha para tomar conhecimento da forma como foi "negociado" por um ex-dirigente e um ex-árbitro de futebol. Um nojo e uma desilusão tão grandes que nem merecem o vómito da memória.

Mas a partilha deste testemunho - igual a dezenas de outros que acontecem às paletes -, não pretende recuperar um processo que está morto e enterrado há anos nem relançar a questão da dificuldade que ainda é ser-se gente quando se foi árbitro.

A mensagem que vos queria transmitir é outra.

A questão é que a maioria das pessoas ainda olha para "nós" (e para aqueles que estão no ativo) com o mesmo desdém que olha para um malandro qualquer.

A forma como os árbitros são percecionados continua a ser má e isso será muito difícil de mudar.

Parece que estamos culturalmente formatados para suspeitar de qualquer figura que tenha poder de decisão, seja político, juiz ou... árbitro.

Se é verdade que essas são posições sensíveis, que podem criar tensão e animosidade, não deixa de ser estranho que se mantenha uma imagem tão negativa de um agente desportivo que, na verdade, é absolutamente essencial à prática desportiva.

Reparem: pode haver futebol sem treinadores, sem dirigentes, sem médicos, adeptos e jornalistas. Pode até haver futebol sem suplentes e sem onze jogadores em campo (bastam sete).

O que nunca pode haver é jogo sem árbitros.

Sendo assim, porque é que não tentamos respeitar mais essa figura? Porque não fazemos esse esforço conjunto? Respeitar não significa gostar, concordar ou aplaudir. Respeitar não é sinónimo de perder o direito à crítica. Respeitar é aceitar com elevação, sem tecer considerações pessoais desagradáveis ou difamatórias.

O tal Apito Dourado não teve consequências jurídicas, mas teve muitas, muitas vantagens. Uma delas foi a de "assustar" potenciais malandros a caírem, de novo, na tentação do pecado. As autoridades judiciais já mostraram que é mais fácil apanhar um mentiroso que um coxo.

E hoje em dia pode até haver incompetência, inexperiência ou falta de sensibilidade para a função, mas estou convencido que não há desonestidade deliberada. Sinceramente.

Não há gente na arbitragem de topo a deixar-se aliciar e isso acontece por várias razões. Há mais verdade, ainda que no meio de muitos erros que podem e devem ser evitados, com mais e mais trabalho e compromisso.

É preciso acreditar nisso, confiar em quem está tão exposto e proteger aqueles que têm a missão mais difícil do jogo.

Quanto mais tranquilos os árbitros estiverem, menos erros cometarão. É assim com eles, como seria assim com qualquer um de nós.

Hoje o ex-árbitro que foi ter com a filha, à beira mar, era o tal ladrão... só que não.

Dizem que faz parte. Eu digo que não.