Duas situações de jogo recentes são perfeitas para mais um esclarecimento sobre o que dizem (e não dizem) as regras do futebol.
Quem inventou a expressão "O saber não ocupa espaço" nunca pensou que o cliché fosse tão verdadeiro. Falo por mim, que passo metade da minha vida a aprender e a outra metade a ser ensinado.
Vem isto a propósito de dois lances atípicos que ocorreram nos últimos dias e que muita especulação levantaram para os amantes da bola.
I - O primeiro deu-se no Espanyol-Real Sociedad (a contar para a La Liga) da jornada passada: Alexander Isak marcou aos 66m para a equipa basca, mas o árbitro - o categorizado Mateu Lahoz - anulou o golo porque a bola tocou-lhe antes de entrar na baliza de Diego Lopez.
Apesar dos muitos protestos de jogadores, técnicos e adeptos da Real Sociedad, a decisão do internacional espanhol foi correta.
A lei mudou (há não muito tempo) e passou a prever três situações em que o jogo tem que parar sempre que a bola toque/desvie no corpo do árbitro (ou do árbitro assistente, se estiver momentaneamente em campo):
1 - Se, desse contacto, resultar golo direto numa das balizas;
2 - Se, desse contacto, a posse de bola mudar (de uma equipa para outra);
3 - Se, desse contacto, resultar um ataque prometedor.
E foi exatamente isto que aconteceu: a bola tocou nos calcanhares de Lahoz (estava mal colocado, é certo) e isso foi crucial para que lsak iniciasse e concluísse lance de golo. Decisão certíssima, nada a dizer.
Importa apenas esclarecer que, em todas as outras situações em que a bola toque no árbitro e fique dentro do terreno de jogo, o jogo deve prosseguir. Tudo como dantes.

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II - Na quinta-feira, o golo inaugural do Manchester United-Arsenal (para a equipa londrina) gerou controvérsia e percebe-se porquê: De Gea estava caído no solo após pisão involuntário de um colega de equipa, a bola sobrou para Smith-Rowe, que à entrada da área marcou para o Arsenal.
A questão aqui é clara: o árbitro devia ou não devia ter interrompido a partida quando viu o guarda-redes do United no chão?
Resposta certa: devia mas não tinha que o fazer.
Parece confuso? É porque é. Este seria o lance perfeito para semanas de polémica cá no burgo.
A explicação do que ali se passou é até muito simples: as leis de jogo não "obrigam" o árbitro a interromper a partida quando um guarda-redes está no solo.
Na verdade, a Lei 5 diz que depende dele a interpretação se determinada lesão é séria (e aí deve parar logo a partida) ou leve (deve permitir que ela continue), não fazendo referência concreta à posição que o jogador lesionado ocupa no terreno.
Mas a verdade é que todas as "recomendações" que existem apelam ao bom senso (a tal regra não escrita) e vão no sentido de sugerir a interrupção do encontro assim que um guarda-redes caia lesionado.
Na quinta-feira, Martin Atkinson teve tempo para parar o jogo (fez até menção disso, levando o apito à boca), mas hesitou e acabou por não o fazer.
Devia ter feito, se tivesse tido a sensibilidade suficiente para perceber que De Gea não estava a simular nem a tentar interromper com leviandade ataque prometedor do adversário.
É preciso feeling e boa leitura de jogo, algo que o experiente arbitro inglês até tem.
No fundo, a solução para este lance resulta do eterno conflito entre letra e espírito da lei: qual aplicar?
A resposta ideal deve ser só uma: deve ser tomada a decisão que o futebol espera.
O futebol não espera um golo com um guarda-redes caído no solo, impotente para cumprir o seu trabalho. É certo (e até relevante) que, neste caso, a equipa que marcou nada fez de ilegal, mas há os tais valores desportivos que devem sempre sobrepor-se à dimensão técnica das regras.
Não sendo ilegal, o golo do Arsenal foi quase imoral.
É por isto que o futebol é fantástico. Assim exista tolerância para o entender, sobretudo quando a análise em campo de lances tão cinzentos não for favorável "às nossas" pretensões.