Odeio Futebol Moderno

E abriram-se as portas do Inferno

Lage caiu. Mourinho paira no ar. Como o espectro do falhanço: do próprio, que já não ganha nada há anos. Do Benfica, que não é capaz de melhor e alinha na ideia de contratar alguém cujo credo futebolístico é a antítese do Benfica

E eis que, quando parecia que já não havia fundo, o Benfica descobriu o fundo do fundo. Porque o Benfica tem esse dom sinistro: o de perder contra si mesmo. Sempre contra si mesmo. Desde os anos 90 que o clube se dedica a sabotar a própria grandeza. Há muito tempo que o Benfica já não sabe quem é. Com Vieira acreditou que era o Porto e, desde então, como o General Kurtz de Apocalypse Now que terminou confundido com o inimigo que combatia, também o Benfica se perdeu na selva do seu próprio equívoco.

Há derrotas que são cicatrizes. Esta é uma dessas. Será lembrada daqui a 100 anos, nos almanaques desportivos, ao lado dos 7-0 da primeira mão da Taça UEFA contra o Celta, em 1999 (peço desculpa pela menção). Não pelos números, mas pela humilhação do adversário: Qarabag, do Azerbaijão. Quem? De onde? Uma equipa impronunciável de um país onde o desporto nacional é matar toupeiras.

Foi o Inferno possível da Luz. O suplício dos fiéis que, numa Terça-feira à noite, saíram de casa em busca da glória e encontraram apenas a danação. À entrada do estádio, no lugar da estátua de Eusébio, deveria ter estado a tabuleta de Dante: “Deixai toda a esperança, vós que entrais.”

Tudo começou como deveria começar sempre: dois golos em dezasseis minutos, Barrenechea e Pavlidis a prometerem o paraíso. Mas Deus quis-nos benfiquistas; e abriram-se as portas do Inferno. O Qarabag esperou, mais por resignação do que por estratégia. E, quando viu a defesa frouxa, o meio-campo a olhar para ontem, a equipa naquele engonhanço muito seu, avançou. Andrade reduziu, Durán empatou. E então a Luz, que já estava em agonia, voltou-se contra os seus.

Depois o anti-golo da vitória. O horror. Num contra-ataque banal, Kashchuk sentenciou a noite.

A tragédia completou-se. Rui Costa, invisível. Lage, no cepo. Jogadores a sonhar com os comandos da Playstation. A verdade é esta: qualquer miúdo da equipa B teria feito melhor. Em vinte minutos, Prestianni teve mais Benfica nos calcanhares do que Rui Costa em não sei quantos anos de bastidores. Florentino, Hugo Félix, Tiago Gouveia: onde é que vocês andam?

Contudo o invisível apareceu. À uma da manhã, Rui Costa veio anunciar a queda de Lage. No meio do interrogatório, destacou-se a pergunta sensata de um jornalista do Record: “Não lhe parece que, dadas as circunstâncias actuais, com eleições à porta, não faria mais sentido escolher um treinador interino do que estar a comprometer o clube?” Foi nesse instante que respondi por Rui Costa: parece, claro que parece! Mas a resposta dele foi um daqueles círculos do costume, a fazer lembrar o Benfica quando se põe a jogar em U, tipo canção para embalar adeptos. Mas deveria ter respondido: evidente. Evidente que, a um mês das eleições, não nos vamos comprometer com contractos a longo prazo.

Se invisível é o cognome de Rui Costa, interino é o de Lage. Lage nasceu interino, viveu interino, morreu interino. Tem a fidelidade desorientada do interino, a falta de rasgo do interino, a humildade canina do interino. Ora, um presidente que escolhe um treinador assim, com o qual planeia uma época, para o qual compra jogadores escolhidos numa curadoria de autor, decide, neste momento, contratar um treinador a sério? À porta das eleições?

No fundo, Rui Costa também é um presidente-interino. Escolhido pelo mestre, sem nunca sair da sua sombra, rodeado da mesma gente e dos mesmos vícios. Um tipo sem qualquer génio. Só paciência, obediência, ausência.

Resta-nos esperar que chegue o verdugo. Lage caiu. Mourinho paira no ar. Como o espectro do falhanço: do próprio, que já não ganha nada há anos. Do Benfica que não é capaz de melhor e alinha na ideia de contratar alguém cujo credo futebolístico é a antítese do Benfica. O perfil do treinador do Benfica tem de ser um perfil ganhador”, disse Rui Costa.

E o glorioso lá segue, como um alcoólico a reincidir. À deriva contra si próprio. A tentar ser outra coisa. Uma coisa oposta. Onde até o Inferno da Luz é um inferno invertido. E, ao contrário de Dante, não há Virgílio que nos tire dali. Apenas uma inscrição que algum índio devia pichar amanhã numa parede da Luz: assinar contractos de longa duração a um mês das eleições é gestão danosa. No mapa de Dante, este suplício ficaria ali, algures, no silêncio entre o oitavo e o nono círculo. No fosso para onde caem os que se esqueceram de si.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.

‘Odeio Futebol Moderno’ é um espaço de opinião sobre atualidades futebolísticas da perspetiva de um romântico entalado num tempo em que não se reconhece.

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