Tu és, segundo o teu CV, "coaching methodology analyst". O que é isto?
Analista de metodologia de treino.
E o que é isso?
O adepto normal não deve conhecer. Temos de dar nomes às coisas que são novas e na parte da análise existe um pouco essa dificuldade. Há "performance analyst", "opposition analyst"... em Inglaterra eles preferem a especificação de determinadas funções. Ser analista de metodologia de treino tem a ver um pouco com tudo, porque o grupo [City] tem crescido imenso e o grande tónico é o "beautiful football". Querem implementar o futebol bonito nas várias equipas do grupo, utilizando a grande bandeira do Manchester City, que é a imagem, a referência, de todo o grupo. Faço também a parte de 'surveilance', de supervisão, que é toda a monitorização de equipas de referência, para retirar melhores exemplos para o clube em termos da filosofia que tem. Ou seja, ataque posicional...
Qualquer equipa do mundo?
Sim, qualquer equipa do mundo. A minha mulher costuma dizer-me que passo 24 horas a ver futebol [risos]. Acaba por não ser verdade, mas traduz a ideia geral.
Diria que é quase um emprego de sonho.
Sim, é bom, porque tenho uma visão bastante holística das coisas e isso permite-te experienciar várias culturas e perceber que o futebol é sentido de forma diferente nos diversos sítios, seja Austrália, Nova Iorque, Inglaterra... O futebol tende a ser sentido de forma diferente, mas a visão do grupo, em termos globais, é fenomenal. O objetivo é ter uma identidade, uma filosofia comum, que seja parecida em todos os clubes.
Portanto, tu és um analista de metodologia de treino, mas, para ti, és o quê?
Eu sou treinador.
Era a resposta que esperava.
Sou um treinador especializado na parte da análise. Hoje em dia, quando vou a formações, uma das perguntas que me fazem mais é: "Como é que eu consigo ser analista?" Primeiro que tudo, as pessoas tem de perceber que a análise não é uma coisa que se compra num supermercado, não é tirar um curso para ser analista. Sim, é importante ir a formações e perceber, dentro das referências que já existem, das pessoas que estão no mercado, quais é que são as sensações que se tem, mas tu vês hoje em dia que as pessoas, sejam elas engenheiras, professoras, enfim, o mercado mostra que as pessoas que têm paixão pelo jogo não interessa o background que têm em termos profissionais, o que interessa é efetivamente terem essa paixão pelo jogo e procurarem entender os momentos do jogo e perceber o porquê das coisas. Eu sou um inquieto pelo porquê das coisas, desde muito novo. Sempre tive a paixão pelo jogo e pelo futebol, e é curioso que, aos 16 anos, comecei a orientar a minha profissão não para ser jogador mas para treinador, pela inspiração que fui tendo de Mourinho na altura. Aquilo despertou em mim um interesse imenso por toda a gestão e liderança que é preciso ter num plantel. Em vez de sonhar ser jogador, sonhei ser treinador.
Mas um miúdo não sonha ser analista. Primeiro jogador, depois treinador.
É assim, eu sempre tive a oportunidade de experimentar vários desportos, nunca me focalizei num, enquanto jogador.
Ou seja, eras mau jogador de futebol.
[risos] Não era mau, mas não me especializei o suficiente para isso. Não considero que tenha maus pés. Na altura, muitos amigos meus sonhavam em ser jogadores, mas eu não, eu queria ir pelo lado do treino. Fascinava-me o porquê daquilo. Como é que se fazia determinadas coisas. Porque o que tu vês na televisão é o produto final. As pessoas normalmente vão à procura apenas do produto final. Eu sempre tive esta vontade de perceber mais. E eu sou treinador - a questão é que, para chegar, um dia, ao mais alto nível no futebol, tenho de ter as bases bem solidificadas, caso contrário... Pessoas que não tenham passado pelo jogo por dentro, têm de ir procurar conhecimento. São muitas horas a ver futebol, jogos e treinos. São muitas horas a perceber efetivamente aquilo que é o jogo. Mas depois, lá está, tudo depende do carisma que as pessoas têm, da forma como sabem liderar os processos e o grupo, portanto é um caminho que é preciso percorrer com calma. Acima de tudo, nunca fui muito apressado na minha vida. Tive noção que, obviamente, por questões culturais, uma pessoa tem de se formar, tem de tirar um curso, mas procurei logo orientar o meu percurso académico, caso contrário teria ido para professor de educação física, mas não, quis ir para o mestrado de treino desportivo. Ou seja, eu já sabia aquilo que queria, desde muito novo. Na altura, como te disse, tive como inspiração o Mourinho e, mais tarde, na faculdade, envolvido na associação académica, convidei o Villas-Boas a ir lá fazer uma palestra e depois em conversa com ele perguntei-lhe: "Mister, o que é que efetivamente é necessário? Porque o mister não foi treinador." E ele disse-me: "João, o melhor que fiz foi procurar na análise aquilo que não tive enquanto jogador". Isso já fez 'match' com aquilo que eu vinha a pensar, porque eu na altura da faculdade já fazia as minhas análises, já ia fazendo algumas publicações até, e isso sempre me fascinou.
Já estavas ligado a alguma equipa?
Sim. Quando tinha 19 anos comecei logo nos infantis da Académica, a acompanhar o treinador que lá estava.
No campo?
Sim, no campo. Depois, quando acabei a licenciatura em Coimbra, eu e dois colegas de faculdade lançámo-nos no desafio de escrever cartas para todos os clubes da I e II Ligas, a dizer que éramos recém-licenciados e queríamos entrar na análise por isso disponibilizávamo-nos para isso, mesmo que fosse só em estágio. Tivemos sorte porque, na altura, quando o Jorge Costa entra na Académica, o diretor desportivo perguntou na faculdade ao professor responsável pelo futebol, o professor António Figueiredo, se havia alguém da faculdade para ir para lá, e ele sabia que nós tínhamos enviado essas cartas. Antes tínhamos sido chamados ao Varzim e tivemos lá uma reunião, mas a mentalidade não...
Não fez 'match'.
[risos] Exato, não fez 'match'. Mas tivemos a sorte de apanhar aquele projeto na Académica, que foi implementado na altura com o software SportsCode, no qual tivemos formações. E pronto, entrámos na Académica nessa altura, com o Jorge Costa como treinador, mas estávamos mais ligados ao adjunto, ao Vírgilio Fernandes, que foi quem nos ajudou, digamos assim, a entrar no mundo profissional. Eu balanceava a análise na primeira equipa da Académica, de manhã, com o cargo de adjunto nos juniores, à tarde. Fiz isso até ao meu terceiro ano de Académica e no último ano estive com o Vítor Severino [atual adjunto de Luís Castro, no Chaves] nos sub-23, em vez de estar nos juniores, continuando sempre com a análise na primeira equipa - e nesse ano ganhámos a Taça de Portugal, com o Pedro Emanuel. Fomos à Liga Europa, foi uma experiência tremenda, porque vivenciei de perto aquilo que é ter competições europeias e jogar quinta e domingo e ter de preparar esse trabalho. Acho que as pessoas nem têm bem noção daquilo que é a análise e as horas que nós passamos nos bastidores a preparar a informação para o treinador e, posteriormente, para os jogadores. Isso é algo que na cultura portuguesa ainda... as pessoas já começam a perceber, mas ainda não têm realmente noção.
Os teus colegas que também enviaram a carta ainda estão no futebol?
Eram dois colegas, o João Teles e o João Veloso, mas infelizmente já não estão no mundo do futebol. Fui o único que me fui segurando. Há uma expressão para mim que é muito importante, fruto também das questões familiares, porque perdi o meu pai com 20 anos, exatamente no momento em que estou a terminar a licenciatura. Sempre tive esta força intrínseca muito grande de não desistir das coisas seja pelo que for. Lá está: essa força que tenho, essa garra que normalmente me caracteriza por onde vou passando, é mesmo vontade de lutar por aquilo que quero. Acho que se nós um dia pensamos e vemos que há pessoas a lá chegar, ao alto rendimento, e a ter sucesso, por que razão não havemos de sonhar também? Há muito esta dificuldade nas culturas portuguesa e espanhola, nas culturas mais latinas, normalmente não se aproveita muito bem as pessoas mais novas. Mas tens casos como o da Alemanha, em que o treinador do Hoffenheim [Julian Nagelsmann] assume a equipa principal com 29 anos - e tem o sucesso que tem. Portanto, acho que é mesmo uma questão de mentalidade. Infelizmente, aqui em Portugal, vivemos muito da crítica não construtiva. Eu vou sempre muito pela parte construtiva, porque quero sempre aprender alguma coisa no que faço. Acho que diariamente isso é um bom desafio e consegues ver sempre alguma coisa nova. Vês um jogo na Austrália, por exemplo, e vês sempre alguma coisa nova, no tipo de abordagem que têm. O trabalho que estou a desenvolver permite-me isso, é motivo diário para estar sempre a aprender.
No início, que tipo de análise fazias? Da própria equipa ou dos adversários?
A grande bandeira, digamos assim, da análise é reduzir a complexidade que está inerente ao jogo, ou seja, tu tens de perceber, ao máximo, primeiro, aquilo que és como equipa, quais são os teus princípios, e, depois, ir procurar no adversário algo que possas identificar e trazer, entre aspas, como vantagem para quando vais para o jogo poderes atacá-lo por ali. Ou seja, se identificas uma debilidade, então vamos por ali. Preparas a semana de treinos também em consonância com isso. Tens a tua identidade, tens a tua filosofia, tens a tua maneira de treinar, mas se tiveres informação do adversário também ajuda. É a mesmo coisa que ires para uma batalha: se eu souber como é que o adversário me vai atacar, então eu já sei como é que me posso defender e como é que o vou atacar a ele. Isso hoje em dia penso que já está implementado de forma mais geral. Na altura, na Académica, eu analisava sempre mais o adversário, que tipo de adversário é que iríamos defrontar. Obviamente ia aos jogos da Académica, mas foram muitos quilómetros em Portugal, a andar de um lado para o outro, do Algarve ao norte, sempre a ver jogos ao fim de semana. Claro que as questões familiares ficavam um pouco em stand by na altura, mas tenho o apoio incondicional da família, porque eles sabem a pessoa que sou e o que quero. Infelizmente perdi o meu pai de forma repentina, mas respirei muito daquilo que ele era: uma pessoa de garra, de crer, de lutar pelos sonhos... Acho que temos de ser assim. Acho que nós aqui em Portugal muitas vezes não sonhamos. Foi por isso que depois me lancei para o Qatar. Sou, entre aspas, um inquieto, pela vontade que tenho de aprender mais, e senti que na Académica não existia valorização do trabalho, porque nós éramos os miúdos que filmavam os jogos. As pessoas não percebiam que nós éramos muito mais do que isso. Chegámos a ter uma história curiosa com uma pessoa lá do clube que nos veio pedir para filmarmos as escolinhas Briosa, para fazer um DVD e oferecer aos miúdos. Quer dizer, nós tivemos de explicar que apesar de termos um gabinete com câmaras de vídeo, não éramos os responsáveis por fazer vídeos. As pessoas pensam que somos especialistas em informática, mas não, nós somos especialistas no jogo e é isso que analisamos.
João Nuno Fonseca tem 29 anos e é analista do City Football Group há mais de um ano
Nuno Botelho
As formações que dás sobre a análise são mais viradas para o "como fazer" e com que programas fazê-lo, assumindo que as pessoas já sabem do jogo? Ninguém pode ser analista sem perceber antes o jogo.
Costumo dizer que acredito no estabelecimento dos "comos" em função de quem tens à tua disposição. Ou seja, as pessoas querem ser analistas. Então como é que vão ser? Primeiro, é preciso perceber quem são, o que sabem enquanto profissionais ou amadores do desporto. Têm de perceber as suas valências dentro do futebol. Agora, se eu chego em branco e quero analisar um jogo, então vamos ter de começar pelo início: partir o jogo e perceber os momentos do jogo. Depois temos então as ferramentas que nos auxiliam - apesar de não sermos especialistas em informática - a passar a informação ao treinador e aos jogadores, da forma mais simples e objetiva possível, porque hoje em dia também temos de acompanhar o ritmo da tecnologia. Por exemplo, o Hoffenheim, já tem uma tela gigante nos treinos. Esse acompanhamento tecnológico também tem de ser feito.
Essa tela é um sonho para um analista?
Para mim, como treinador, é um objetivo ter algo assim. É óbvio que tudo depende das condições dos clubes, mas o auxílio de uma imagem vale mais do que mil palavras. Dares um feedback com uma imagem, juntando isso à parte verbal, vale muito mais do que só estares a explicar verbalmente ao jogador aquilo que aconteceu em determinado exercício. Hoje em dia, filmando e apresentando isso, seja numa tela, num tablet ou o que for, conseguimos ter noção das coisas logo no terreno do jogo e isso traz vantagens porque entra muito mais depressa do que só o feedback verbal.
Já conseguiste pôr essa instantaneidade em prática?
Não. Já tentei, tentei partir pedra - não na posição que tenho agora, que é mais de 'backstage' -, mas por vezes é muito difícil face às condições de trabalho que existem. Tens realidades em que tens tudo, mas tendo tudo, muitas vezes não existe essa mentalidade de querer dar mais um passo, e tens outros sítios em que não tens nada e muitas vezes as pessoas até querem fazer mais. É curioso que esse projeto do Hoffenheim é algo de que já tinha falado antes, mesmo que fosse só com um tablet a passar logo ali para o treinador a informação relevante - porque às vezes é interessante para identificar alguma coisa e mostrar aos jogadores.
Falaste disso na Académica?
Sim. Portanto já foi há uns... seis ou sete anos, numa época em que passar informação de um computador para um tablet se calhar não era tão fácil como hoje em dia. Essas dificuldades tecnológicas e a falta de condições às vezes não nos deixam implementar as ideias que temos. Mas isso também foi o que me motivou a querer dar mais um passo e conhecer novas realidades e ir para uma cultura que é tremenda. Foi uma aventura ir sozinho para o Médio Oriente. Foi uma emoção muito forte. No dia 1 de janeiro de 2014, ainda o sol não tinha nascido aqui em Lisboa e já estava a levantar voo para ir embora. Quando vês o país pela janela do avião, sentes algo inexplicável. Acho que só quem é emigrante é que sabe o que isso é. Obviamente vêm todos os pensamentos à cabeça e é preciso ter uma grande força de vontade para conseguires olhar para as coisas e continuares no teu crescimento. Acho que existe um pouco esse medo, aqui em Portugal. Medo, acima de tudo, da palavra "arriscar".
Como foste parar ao Qatar?
Lancei-me. Na altura havia uma vaga na Academia Aspire, para o departamento de scouting, na vertente de análise do jogo, e candidatei-me. Eles estavam à procura de uma pessoa que tivesse uma visão mais qualitativa do jogo e eu enquadrei-me nesse perfil. Porque eles já lá tinham dois analistas ingleses, que eram muito mais virados para os aspetos quantitativos, de toda a parte estatística, por isso queriam uma pessoa que implementasse no departamento uma visão qualitativa do jogo. Tive a sorte de poder ajudar a construir o departamento nessa vertente, nos "porquês" e nos "comos". Foi curioso, porque eu chego ao Qatar e à Aspire e peço para saber como é que as equipas da academia jogavam. Eh pá e eles entregam-me um relatório de 30 ou 40 páginas a dizer que aquilo eram as equipas. Era só números e campogramas com passes, dados Prozone... Olho para aquilo e começo a pensar: "O que é isto?" Porque na cultura portuguesa também já existe esse lado quantitativo, mas não em massa. Nesse momento é que percebi bem qual ia ser a minha função. Ajudei a construir algo de base que hoje em dia ainda está lá, sei que deixei lá o meu dedo na parte mais qualitativa e de interpretação do jogo, que não existia. Isso deixa-me contente, porque consegui deixar algo num sítio onde esse conhecimento não existia.
Num sítio onde há treinadores de tantas nacionalidades, dá para sentir diferença entre o conhecimento dos treinadores portugueses e dos outros?
É assim, acho que partilho isto com muitas pessoas portuguesas lá fora: o treinador português, neste momento, é olhado de forma completamente daquilo que era há 15 anos. Muito pelo sucesso que os treinadores portugueses têm tido pelo mundo fora. Sinto que existe atualmente esse respeito e essa consideração, e isso é importante, porque há na Aspire uma multiculturalidade enorme. No meu departamento, se não estou em erro, éramos 12 pessoas de nove nacionalidades diferentes. Portanto, imagina o que é, diariamente, teres de ser resiliente ao ponto de teres de te adaptar constantemente à situação. Foi muito gratificante poder comungar e absorver maneiras diferentes de ver o futebol. Acho que isso enriquece muito as competências de uma pessoa.
Vive-se bem em Doha?
Muito bem. É assim, para mim, qualidade de vida é aquilo que temos em Portugal, para te ser honesto. Porque aqui tens tudo: respiras ar puro, tens mar, tens montanha, tens neve... Lá só tens calor. Para as pessoas que gostam de calor é um sonho. Tens alguma qualidade de vida, sim, e gostei de viver lá, mas sinto que o Qatar é mais um sítio que, independentemente das suas limitações, ajuda as pessoas a sonharem. Depois tens de ter capacidade de perceber o que é qualidade de vida, para ti. Para mim, como disse, ter qualidade de vida é ter um sítio onde possa respirar ar puro e possa andar de bicicleta. Lá era deserto e areia, com altas temperaturas. Cheguei a ter o carro à sombra com 53 graus. E o ar muitas das vezes é irrespirável. E isso também traz consequências em termos de saúde. Acho três anos chegaram para poder dar mais um passo em frente, que foi este passo do City.
Mas voltaste de lá rico.
Voltei uma pessoa mais enriquecida. Se calhar não tanto assim a nível monetário como as pessoas idealizam, porque as pessoas pensam que nós vimos de lá cheios de petrodólares, mas não. Obviamente que se ganha outro conforto financeiro que não se tem cá em Portugal e que te permite iniciar uma vida de forma mais desafogada. Mas considero que vim bem mais rico em termos de conhecimentos, por ter sentido e vivido essa multiculturalidade que existe ali. E não só. Repara: eu vivia em determinado sítio em Doha, ia de férias a Portugal e já sabia que quando regressasse a Doha já não ia para casa pelo mesmo sítio, porque aquilo está em evolução constante, é uma loucura.
As equipas do Guardiola habitualmente passam algum tempo em estágio por lá, assim como outras equipas europeias. Ver esses treinos e jogos na Aspire foi do melhor que tiveste por lá?
Obviamente que essa parte fascina qualquer um, mas sinto que o que me agradou mais foi o último ano, quando estive integrado na seleção de sub-19 do Qatar, liderada pelo Óscar Cano, em que inclusivamente o Xavi Hernández estava muitas vezes connosco. Aportei muito do conhecimento no qual acredito no futebol. Acho que isso é o grande balão de oxigénio que trago do Qatar. Tive a oportunidade de privar na primeira pessoa com duas pessoas de referência no futebol: o Óscar e o Xavi.
Leste a entrevista que o Xavi deu à "So Foot"?
Claro. Aí vês a forma como ele ou como eles vivem o futebol, de forma simples. Eu já acreditava muito nisso, porque tive oportunidade na Académica de estar com o professor José Guilherme, ainda que por pouco tempo, e logo aí percebi aquela visão do futebol. No Qatar, trabalhar com o Óscar e com o Xavi, também porque o Xavi queria absorver muito daquilo que o Óscar é, como pessoa e como treinador. Foi fenomenal. Mas depois na altura não nos conseguimos qualificar para o Mundial sub-20 e foi aí que senti que devia dar mais um passo em frente.
Como surgiu a entrada no grupo do City?
Surgiu o contacto com as pessoas do grupo e comecei a trabalhar em fevereiro de 2017.
O analista português João Nuno Fonseca
Nuno Botelho
Agora não te sentes demasiado longe do campo?
Sinto-me longe e ao mesmo tempo perto. Porque consegues viver, lá está, maneiras diferentes de sentir o futebol de diversos sítios do mundo. E vais procurar, para o grupo, as referências que também são as tuas referências enquanto treinador, e isso acho que é um trabalho que me enriquece muito em termos de perceção daquilo que é o jogo. Eu hoje em dia consigo ir ao meu computador e ter uma base de dados onde... Vamos imaginar: quero ver uma confrontação de sistemas entre uma equipa que jogue num sistema de 3-5-2 contra uma equipa de 4-3-3. Depois de muitas e muitas horas de observações anteriores, já tenho isso pronto com apenas um clique. E consigo retirar facilmente esses exemplos e se quiser um dia mostrar isso a alguém, já tenho isso referenciado. Como te disse, não sou uma pessoa que anseia ir rapidamente seja para onde for, para chegar à 1ª Liga ou à 2ª Liga. Acho que as coisas têm de ser feitas com calma e com sustento, em termos de conhecimento. É óbvio que o futebol é muito imprevisível e eu não sei se amanhã alguém me liga a dizer que querem que assuma um projeto. Nunca se sabe.
E se te ligassem amanhã da Académica para ires treinar a equipa?
[risos] Teríamos, obviamente, que falar, mas seria uma coisa fantástica. Existir essa mentalidade de perceber que existem pessoas com determinadas competências, independentemente da sua idade, pessoas capazes... Ficaria muito surpreendido se isso acontecesse cá em Portugal, porque não é fácil, hoje em dia, os corpos dirigentes fazerem isso. Custa-me, por um lado, porque sinto que já tenho capacidades para poder implementar muita coisa, mas, por outro lado, acho que ainda não existe essa mentalidade por parte de quem gere as instituições.
Achas que conseguirias efetivamente pôr em prática o conhecimento que já adquiriste? Porque até agora se calhar estiveste mais afastado do treino, da operacionalização da teoria.
Sim. Eu tendo já o nível III, já me permitiu pensar e preparar muita coisa em campo.
Normalmente a progressão habitual, em Portugal, é um treinador começar na formação, ir pondo em prática as suas ideias, ir experimentando coisas a ver o que funciona e depois ir subindo. Tu tens um percurso algo diferente, por estares mais nos bastidores.
Sabes que a inspiração que tenho, e a referência que tenho também, porque também passou por esse lado de analista, é o André [Villas-Boas]. Era analista e passou para o treino - e teve sucesso. Sinto que a progressão natural será, possivelmente, integrar a equipa técnica de alguém que acredite nas mesmas ideias e depois poder entrar como treinador principal, no futebol de alto rendimento. Agora, repara, o Julian Nagelsmann, no Hoffenheim, assume a equipa principal com 29 anos. Tudo bem que antes já estava nos juniores do clube, mas assume os seniores e consegue operacionalizar com jogadores de 33 anos. O miúdo está ali a comandar o barco e consegue fazê-lo. Acho que esse acreditar por parte de quem gere o futebol é que é mais difícil aparecer. Das duas, uma: ou conhecem muito bem a pessoa e sabem que vão dar valor e apoiar, ou aquilo não corre bem porque não é qualquer pessoa que consegue assumir um projeto desse nível. Sinto que a progressão natural poderá ser esta e adoraria, obviamente, replicá-la.
Achas que os dirigentes em Portugal já têm noção das pessoas que são necessárias para uma equipa técnica ter sucesso? Hoje em dia, o treinador já não consegue quase nada sozinho.
Não sei. O que sei é que um dirigente tem de ter a noção clara de que quando contrata um treinador ou uma equipa técnica, contrata uma ideia. Percebes? Uma forma de ver o jogo. Eu, como treinador, tenho a minha filosofia de jogo e é isso que quero ver a acontecer em campo. Sou uma pessoa muito intransigente no sentido de querer a minha ideia. Se eu defendo e gosto de um jogo posicional em posse, eu vou lutar por isso. Tu vês exemplos disso na 2ª Liga, no Campeonato de Portugal, em Espanha, de equipas até de futebol amador a praticarem um futebol muito interessante. Isso é gratificante para um treinador. Agora, os dirigentes também têm de ter a capacidade de perceber que um treinador tem uma determinada ideia e essa ideia leva o seu tempo a ser implementada. Olha o exemplo do Chaves. Começou o campeonato de uma forma pouco positiva, em termos de resultados, e agora vê onde está [7º lugar da 1ª Liga]. Acreditou-se no treinador, acreditou-se na ideia. E no Rio Ave a mesma coisa. Porque o mais fácil é despedir o treinador, despedir essa ideia positiva e fecharmo-nos cá atrás na defesa. Mas o bonito do futebol é ver essas sensações positivas, é esse o futebol que as pessoas gostam de ver.
Voltando ao teu trabalho enquanto analista: vês os jogos pelo computador ou vais ao estádios vê-los ao vivo?
95% do trabalho é feito através do computador. Hoje em dia digo que a internet é a minha melhor amiga, porque recebo todos os jogos e toda a informação que vou trabalhar durante a semana por aí. É óbvio que vou a Inglaterra e já lá estive a ver vários jogos, mas numa perspetiva não tão de impacto direto como têm os analistas ligados aos treinadores. Eu estou na parte mais metodológica do projeto. Como construir, tendo como referências um exemplo. Vamos imaginar, no modelo do Manchester City, ver como é que na 1ª fase de construção o City joga.
E depois mandas isso para o New York, por exemplo?
Ficamos com essas referências que suportam as ideias do grupo. Mas também vemos outras equipas que os treinadores têm como referência, porque há muitas equipas noutras culturas a jogar esse tal "beautiful football" pretendido pelo grupo, para depois ter em base de dados.
Então não é indispensável para um analista ver um jogo ao vivo?
É assim, depende da forma como o analista entende o jogo. Eu sou muito de sensações. Tendo uma boa filmagem, em ângulo aberto, quase não necessitas de ir ao jogo, consegues fazer o trabalho com uma boa filmagem. Mas se me disseres que tenho de ir ver o Bayern de Munique ao vivo, aí eu percebo logo porquê: a filmagem que eles fazem lá é num plano mais baixo e mais fechado. Mas isso também pode ser uma estratégia por parte do clube, não sei. Respondendo à tua pergunta, depende dos recursos que tens. Em Inglaterra, na 1ª e 2ª Ligas, a Premier League tem um servidor que tem todos os jogos em ângulo aberto. Todos. Ou seja, qualquer analista de um clube consegue ter acesso aos jogos dos vários clubes, não necessitam de se deslocar fisicamente ao campo do adversário.
Relativamente à transmissão da informação retirada da análise, costumavas passá-la ao treinador ou diretamente aos jogadores? E a informação é mais micro ou global?
O planeamento é determinante. Independentemente de estares na Liga dos Campeões, na Liga Europa ou até mesmo só no Campeonato Nacional, tens de ter um bom planeamento. Porque se começas a 1ª jornada, por exemplo, contra o Rio Ave, tu já tens de estar a preparar a 4ª jornada contra o Benfica. O teu planeamento tem de ser adequado para te adaptares ao contexto que vais ter. Obviamente que depois depende de treinador para treinador. Há treinadores que gostam de muita informação, há treinadores que gostam já de ver coisas mais objetivas, do género, eu analiso quatro jogos e só apresento ao treinador a informação essencial para que prepare a semana de trabalho. Isso tem de ser sempre feito de acordo com a ideia do treinador. Depois preparas essa informação e podes apresentá-la aos jogadores. Eu acredito na apresentação de informação faseada. Se tu, no início da semana de trabalhos, vais preparar mais a estratégia ofensiva, tu se calhar vais ter de apresentar aos jogadores o que é a parte defensiva do adversário, porque é essa que vais defrontar mais. Se nós jogamos em 3-5-2, por exemplo, eu vou tentar mostrar aos jogadores como é que o próximo adversário se vai defender contra isto, se tiver exemplos contra um 3-5-2, tanto melhor. Porque, hoje em dia, tens de chegar a um jogador de forma objetiva, não podes apresentar 20 minutos de jogo, em vídeo, a um jogador.
Ele não vê.
Não vê. Vê os primeiros dois minutos e depois já começa a ver as moscas que estão na sala. Tens de arranjar estratégias que se adaptem às culturas que se vivem nos clubes. Se calhar tens jogadores que nem gostam de reuniões e podes mandar-lhes a informação por Whatsapp, também acontece. O treinador envia um vídeo de 30 segundos para lhe dizer que ele vai encontrar aquilo no jogo e muitas das vezes aquilo fica na cabeça e rapidamente chega ao jogador, de uma forma menos tradicional.
Portanto agora estás mais nos bastidores. E depois qual é o teu próximo objetivo?
Eu estou agora a aproveitar o momento, a aproveitar o facto de estar ligado a um grande grupo.
Estás ligado por quanto tempo?
É um contrato renovável de época a época, portanto é uma fase de alguma indefinição em termos profissionais. Não sei aquilo que virá. Mas, lá está, as pessoas que trabalham no futebol já vivem com essa ideia: nunca sabemos o dia de amanhã. Eu sou exemplo disso e a minha família também já sabe como as coisas são.
Estás a morar em Portugal?
Estou a morar em Portugal e vou todos os meses a Inglaterra. Vou aproveitando esta oportunidade e o futuro é imprevisível, mas gostava mesmo muito de passar para o campo e ter essa oportunidade de sentir o cheirinho da relva novamente, porque já desde os tempos da seleção do Qatar que não a sinto.
Para quem gosta da ideia de jogo do Guardiola, é especialmente gratificante trabalhar para este grupo?
Acordas sempre sabendo que vais aprender qualquer coisa e isso é motivante, é o teu café da manhã, digamos assim. A mim apaixona-me todos os dias poder estar a trabalhar em algo em que acredito. Trabalhar de acordo com ideias com quais concordas é muito gratificante e teres exemplos de uma pessoa que é uma referência mundial no futebol é fantástico.
Que equipas gostas de ver?
Em Portugal?
Tanto faz.
Em Portugal gosto de ver o Chaves e o Rio Ave.
Só?
Sim. Posso dizer que são as duas equipas em Portugal que me fazem ligar a televisão no fim de semana para ver o que estão a jogar. Acho que são duas equipas que transmitem e que procuram fazer aquilo de que verdadeiramente gosto no jogo.
Para um adepto normal será estranho ouvir isso.
Acredito que sim. Porque o adepto normal gosta de ver a sua própria equipa, é diferente. Eu já há alguns anos que consigo perceber aquilo que efetivamente gosto de ver, aquilo que me inspira, de exemplos bons. Depois tens equipas em Espanha, o Bétis, por exemplo, o Hoffenheim, na Alemanha, o Nápoles, em Itália, o Shakthar Donetsk, que é uma referência muito grande, o Paulo está a fazer um trabalho incrível e lá está, é mais um exemplo que o treinador português consegue fazer coisas impressionantes.
Em Portugal podemos falar muito bem dessas equipas, ou da competitividade que há em Inglaterra, por exemplo, mas depois quando as equipas portuguesas tentam efetivamente jogar, como o Chaves e o Rio Ave, como dizias, há quem critique a opção, quando ela não corre bem.
Eu acho que isso deve ser uma grande lição para as pessoas, porque em contextos mais humildes consegues efetivamente pôr em prática as tuas ideias e consegues jogar bom futebol. Tu teres uma equipa que jogue da forma em que acredita, independentemente de jogar contra os três grandes... Vais ao Dragão jogar com o Porto e podes levar três ou quatro, mas jogas aquele futebol que efetivamente queres e gostas. Acho que falta muitas das vezes essa capacidade dos treinadores para fazer isso. É uma lição.
Por exemplo, contra o Sporting, o Rio Ave apresentou um sistema diferente em organização defensiva, com uma linha de cinco atrás.
Por acaso não vi esse jogo. Mas tu quando preparas um jogo, também tens em consideração, obviamente, os pontos fortes do adversário. Acredito que tendo mais um homem em espaços laterais, não vais permitir tantas progressões por esses espaços e tens na mesma o meio-campo bastante povoado, ao contrário do que as pessoas pensam. Acredito que o futuro do futebol vá ser por aí. Uma equipa começa em 4-3-3, delineia uma estratégia em que, aos 10 minutos do jogo, independentemente do resultado, muda para um 3-5-2 e aí já causa mais dificuldades ao adversário, que não vai perceber o que se está a passar. Acho que o futebol vai evoluir por aí, porque essa capacidade de surpreenderes enquanto equipa vai ser essencial. Acho essa tendência evolutiva absolutamente fantástica, porque tu conseguires trabalhar uma equipa em vários sistemas que se adaptem às necessidades do próprio jogo, isso é caminhar para um nível de pensamento elevadíssimo, do próprio jogador.
Já acontece, talvez não de forma tão evidente, mas em determinadas situações, quando tens várias soluções trabalhadas, por exemplo, às vezes constróis com dois jogadores a partir de trás, às vezes com três, dependendo da pressão adversária.
Sim, exatamente. Mas sabes que não é fácil conseguir treinar um jogador para isso. Ele tem de entender as diferentes formas e momentos do jogo e reagir de forma diferente. Conseguir essa otimização é um passo tremendo.
É o que o Xavi diz na tal entrevista: temos de ensinar os jogadores a perceber o jogo e não repetir movimentos de forma acéfala.
Sim. É a base de tudo. Quando faço formações de análise, falo muito da interpretação dos momentos do jogo, porque isso é muito importante, tens de sentir o que está a acontecer com a equipa dentro do jogo. Por exemplo, quando abri aqueles dossiês, quando cheguei à Aspire, achei curioso terem um rating de acerto de passe de 90%. Ok, mas quê, estiveste a passar a bola entre o guarda-redes e os centrais só? Isso serve para quê? Tudo tem de ter um objetivo. Inicias uma primeira fase de construção para atrair o adversário e ganhar espaço nas costas da primeira linha de pressão, por exemplo. Gosto muito de fazer publicações com isso na minha página para mostrar porque é que isso acontece às vezes, porque os adeptos às vezes não entendem. Vão mais pela arbitragem... Mas eu acredito muito neste aspeto educativo, para os adeptos e dirigentes. Há dirigentes que não entendem o jogo. Se a direção for conhecedora do jogo e do trabalho que o treinador está a desempenhar, então estão todos em comunhão. Aí caminharemos, sem dúvida, para uma fase diferente do futebol português.