Tribuna 12:45

A vitamina dos Heróis do Mar, esse nobre povo

Portugal acabou o Mundial de andebol no 4.º lugar, a sua melhor participação de sempre.
Saša Pahič Szabó / kolektiff

Grisalho no cabelo aparado curto, acabado de levar com uma desfeita provocada pela França, atraiçoaram-lhe a compostura com a pergunta inofensiva, embora mordaz, por tocar no ponto que lhe havia na alma. À interrogação de “Portugal merecia esta medalha?” aparecida a quente, tão a escaldar, acabada a seleção de perder por um golo na decisão do terceiro e quarto lugares do Mundial de andebol, qualquer português esquentado pela emoção responderia o óbvio, sim, pois claro que sim, os nossos merecem sempre mais. Só que a questão, ida à etérea divagação que no desporto pouco importa, pois sobre justiça nada rezam os resultados, foi também ao nervo do homem que na véspera dissera ter um objetivo claro antes da sua luz findar: “Não quero morrer sem ter uma medalha por Portugal.”

Ninguém quererá que Paulo Jorge Pereira se vá desta vida sem se contentar, nem a derrota de domingo o sentencia a tal, muito menos com tudo o constatado durante as últimas duas semanas. Mas a pergunta foi-lhe ao fusível e o selecionador nacional, por uns segundos, teve de aguentar os olhos enxaguados antes de responder, puxando pelas suas barragens às lágrimas. As primeiras palavras foram “é duro, é duro”, lá isso é e será para quem treina Portugal desde 2016, quando o país era um pobre coitadinho no andebol, tendo injetado hormonas de crescimento tantas que à sétima fase final com a seleção nacional, quase todas consecutivas (a exceção foram os últimos Jogos Olímpicos), a elevou a ser a quarta melhor do mundo.

Embalados pela coloquial atitude de “vamos para cima deles” admitida por estes portugueses de bola na mão, a seleção foi barrada pela Dinamarca, a eventual vencedora do seu quarto Mundial seguido, e depois pela França, a mais titulada equipa deste século. Com a calma de Paulo Jorge Pereira na régie, sereno a dar indicações nos descontos de tempo, emanando uma tranquilidade perante as tempestades dos nervos durante as partidas, os jogadores deixaram uma obra sublime no campo: Portugal superou, pela primeira vez, a marca dos 300 golos marcados numa edição do torneio, tal como se estreou a ultrapassar a barreira da main round; acabou com o galifão Victor Iturriza e o bombardeiro Martim Costa no sete ideal da prova; e o seu irmão, Kiko, eleito o melhor jovem da competição, exacerbando ainda mais a promessa dos seus 19 anos.

Para lá da quantidade de golos, das jogadas bonitas, a pegada mais vincada por esta seleção será a que cativaram nas gentes, em quem os viu.

Não faltavam provas, porque no andebol há Europeus ou Mundiais a cada ano, esta foi somente outra. Desta feita o poder das sensações penetrou fundo. O encontro contra a Dinamarca teve 1,25 milhões de pessoas a verem na RTP1, pulverizando as audiências. “Tivemos que chegar à meia-final para estarmos no primeiro canal”, disse o treinador, feliz por “o andebol começar a ficar mainstream em Portugal” se os astros não se distraíram e os santos o escutaram, porque sabemos como nestas coisas é a ocasião que faz o ladrão das atenções e não a regra de outras modalidades que não a preferida do país futebolcêntrico merecerem tal honra. Nem o é a de o Primeiro-ministro e Presidente da República, o mesmo que até hoje não convidou a seleção a ir a Belém - nem após o 6.º lugar no Europeu de 2021 - viajarem à Noruega para estarem presentes quando o sucesso era ensurdecedor, tão grande que foi captado pelas antenas da política.

Estancadas as lágrimas, confrontado com a epopeia escrita agora pela seleção, o treinador salientou “a história” que têm “vindo a fazer há cinco anos”, obesa em feitos. Mas, acrescentou, “parece que estamos todos distraídos”. E com razão. O brilhante 4.º lugar no Mundial extraído das exibições de Portugal que nos fizeram achar descabida a vitória de França, o que em si só é um elogio tremendo, dizem quase tudo. O pequeno que sobra por enaltecer além do óbvio engrandece ainda mais a marca vincada pela seleção nacional de uma modalidade que, em 2023, tinha pouco mais de 48 mil praticantes federados no país: dos 17 convocados para o torneio, só dois (Luís Frade e António Areia) não jogam por cá.

Kiko Costa, de 19 anos, eleito o melhor jogador jovem do Mundial, com Paulo Jorge Pereira após a vitória, nos quartos de final, contra a Alemanha.
Saša Pahič Szabó / kolektiff

O que é relevante, a roçar o incrível, num Portugal longe de ter um campeonato dos mais competitivos da Europa, onde se tem feito valer. O Sporting está na luta pelo acesso aos quartos de final da Champions esta época e já venceu, por 11 golos, o Paris Saint-Germain, uma das melhores equipas do continente, enquanto o FC Porto garantiu a main round da Liga Europeia, a segunda prova mais importante, à semelhança do Benfica, que conquistou a competição em 2022. Manter os melhores dentro de fronteiras muito ajuda e se bem que é uma questão de o tempo se apressar até os irmãos Costa, por exemplo, serem seduzidos pelos clubes papões do andebol, a sucessão já mostra dentes sorridentes: os portugueses são os vice-campeões europeus em título nos escalões de sub-20 e sub-19.

Excluindo as bolas vassalas aos pés, a segunda mais praticada modalidade coletiva de pavilhão (só atrás do voleibol) no país gabarolas de ter um clima ameno, de pouca chuva e ainda menor estímulo para enfiar o desporto dentro de paredes, é carente do carinho que faz falta a todas as espécies que não o futebol. Os pavilhões dos ditos grandes já enchem, mas as transmissões televisivas, as receitas e o mediatismo ainda é parco, hoje portanto a desonrar o andebol que acabou de dar ao país a sua quarta seleção a chegar às meias-finais de um Mundial, sucedendo apenas ao futebol, futsal e hóquei em patins. “Nós não somos vítimas nenhumas, temos uma vida espetacular, vivemos no paraíso, mas talvez merecêssemos a medalha, teria sido justo. Mas, também, há justiça na Faixa de Gaza? Não. Isto não é uma questão de justiça, é a realidade”, opinou Paulo Jorge Pereira aos jornalistas, em Oslo, ainda no campo, numa afirmação que poderíamos extravasar para a realidade do balão-mão em Portugal.

Mas se há justiça a ser feita tem de ser a eles, os ditos Heróis do Mar, outro batismo dado a uma seleção para seduzir a memória e ver se fica no ouvido, depois dos Lobos (râguebi) ou das Navegadoras (futebol feminino) é mais uma a recorrer ao truque - já repararam que só a equipa nacional mais seguida no país não tem uma alcunha? - quando tudo faz, tão exemplarmente, para não ter de precisar de um nome de guerra.

Ao contrário do futebol, onde em clubes e seleções proliferam os medos de algibeira sobre deixar os protagonistas falarem porque, cruzes credo, ainda ‘perdem o foco’ ou sabe-se lá que outra muleta, este Mundial teve os jogadores e o selecionador a darem entrevistas à Tribuna Expresso e muitas outras publicações, antes e depois de qualquer partida, desempoeirados e disponíveis como em fases finais anteriores, fosse na derrota ou na vitória. Da saudável abertura, necessária para o público conhecer os visados, as suas histórias, as suas opiniões, virá sempre a empatia e um estímulo para fomentar a proximidade com os adeptos. Muito ajuda também que os manos Martim e Kiko, Rui Silva, Luís Frade, Salvador², Victor Iturriza, Gustavo Capdeville ou António Areia falem sem cassetes gravadas, nem pudores.

Ao capitão da seleção coube explicar as toneladas da umbilical alma que une os jogadores, dispostos a esfolarem-se uns pelos outros na monumental atitude coletiva de Portugal que terá sido o traço mais contagiante emanado por esta equipa. É o “temperamento muito especial” mencionado, em resumo, por Paulo Jorge Pereira. E ao guarda-redes Capdeville tocou receber, no domingo, a distinção de MVP do jogo com a França, recebido das mãos de Marcelo Rebelo de Sousa, descido à base do pavilhão para entregar o prémio chamado “Karma Award”. Lá esteve ele, presente quando o sucesso já era evidentemente inegável, também para dar “uma vitamina, uma pastilha Viterra, que diz ser espetacular para a recuperação física e tudo” ao selecionador nacional, confessou o próprio. Passe a publicidade a suplementos, o andebol ofertou a melhor das vitaminas ao país. É preciso agora que todos nós - jornalismo, público, governantes - também o vitaminemos em troca e lhe devolvamos, em atenção, a consequência das suas ações.

O que se passou

Zona mista

Ficar triste por ficar em 4.º lugar do Mundial parece um contrassenso.

E é, Paulo Jorge Pereira. Mas será um dos magnificamente bons, tão fantástico na história do desporto português que impôs dois segundos de tampão ao selecionador nacional de andebol para estancar as lágrimas quando, logo após a derrota com a França, a RTP lhe perguntou se Portugal merecia a medalha de bronze. O emocionado treinador realçou o orgulho que sente nos jogadores, sem os quais “é quase nada”. Não sabe até onde eles irão. “A história já a temos vindo a fazer há cinco anos, só que parece que estamos todos um pouco distraídos”, disse também.

O que vem aí

Segunda-feira, 3

🎾 Realizam-se dois torneios ATP 500 ao longo da semana e até domingo: o ABN Amro Open de Roterdão, nos Países Baixos, e o Dallas Open, nos EUA (ambos com transmissão na Sport TV, a partir das 10h).
🌊 Conforme as ondas da natureza ao permitam, decorre a 1.ª etapa do Championship Tour, o circuito mundial de surf de 2025. É o Lexus Pipe Pro, no Havai (o período de espera vai até sábado).
⚽ A 19.ª jornada da I Liga encerrar com um Moreirense-SC Braga (18h45, Sport TV2) e um Rio Ave-FC Porto (20h45, Sport TV1).

Terça-feira, 4

🏀 NBA: os Memphis Grizzlies jogam em casa dos San Antonio Spurs (1h. Sport TV2).

Quarta-feira, 5

🏀 NBA: os Miami Heat recebem os Chicago Bulls (1h, Sport TV2).
⚽ Lá fora, o AC Milan de Sérgio Conceição e Rafael Leão recebe a AS Roma em San Siro (20h, Sport TV3), nos quartos de final da Taça de Itália. Mais a norte, o Newcastle joga com o Arsenal nas ‘meias’ da Taça da Liga inglesa.

Quinta-feira, 6

🏀 NBA: os Orlando Magic são anfitriões dos Sacramento Kings (3h, Sport TV1).
⚽ Ainda para a mesma fase Carabao Cup de Inglaterra há um Liverpool-Tottenham (20h, Sport TV2). Por cá, o Rio Ave recebe o São João de Ver, equipa da Liga 3, nos ‘quartos’ da Taça de Portugal (20h45, Sport TV1).

Sexta-feira, 7

🏀 NBA: os Boston Celtics, de Neemias Queta, visitam os Dallas Mavericks (00h30, Sport TV1).
⚽ Muito jogo especial neste dia: na I Liga, o FC Porto acolhe o Sporting (20h15, Sport TV1) para arrancar a 20.ª jornada, mas também se vão realizar o Manchester United-Leicester da 4.ª ronda da Taça de Inglaterra (20h, Sport TV2) e um Paris Saint-Germain-AS Monaco na Ligue 1 (20h05, Sport TV4).

Sábado, 8

🏀 NBA: os Cleveland Cavaliers recebem os Washington Wizards (00h, Sport TV3).
🏉 Arranca a 2.ª jornada do torneio das Seis Nações: a Itália joga com o País de Gales em Roma (14h15, Sport TV6) e a Inglaterra acolhe a França em Twickenham (16h45, Sport TV6).
⚽ Segue o campeonato nacional: AFS-Santa Clara (15h30, Sport TV1), Benfica-Moreirense (18h, BTV) e Famalicão-Vitória (20h30, Sport TV1).

Domingo, 9

🏉 Seis Nações: o estádio de Murrayfield abre-se para a Escócia defrontar a Irlanda (15h, Sport TV6).
🏉 Portugal recebe a Alemanha, no Estádio do Restelo, no segundo encontro do Rugby Europe Championship, prova de apuramento rumo ao Mundial de 2027. Se ganhar, garante a qualificação (17h15, Sport TV).
⚽ Mais I Liga: Farense-Nacional (15h30, Sport TV), Estoril Praia-Boavista (15h30, Sport TV), SC Braga-Gil Vicente (18h, Sport TV1) e Casa Pia-Estrela da Amadora (20h30, Sport TV1).

Hoje deu-nos para isto

A equipa titular do Vilaverdense no jogo deste fim de semana, contra o Racing Power.
Vilaverdense FC

Ouve-se o som do apito, a bola quieta é posta a mexer. Trocam-se vários passes rasteiros entre os pés das jogadoras do Racing Power, mas algo propositadamente não está certo: as adversárias do Vilaverdense estão imóveis, assim permaneceram apesar do início do jogo. Durante um minuto não se mexeram, estátuas de protesto contra os alegados salários em atraso e as supostas parcas condições que o clube lhes tem proporcionado deste o início da época. Exemplificou o “Zero Zero” que faltará roupa desportiva quente, de inverno, com a qual possam treinar.

O despropósito aconteceu este sábado, em Portugal. A partida era a contar para a Liga BPI, a principal que o país tem no futebol feminino. O visado clube foi o mesmo do qual zarpou, no verão, o Länk, então acionista maioritário da SAD. Disso se soube mais ou menos um mês após um personagem, chamado Courtney Reum, ter atuado durante quatro minutos pela equipa masculina do clube num jogo da II Liga. Foi um ato circense: o norte-americano de 45 anos, descrito como empresário no LinkedIn, conhecido por ser cunhado de Paris Hilton, jamais jogara futebol profissional. Mas era “amigo” do dono da SAD do clube de Vila Verde. Esse homem-produto de quem teve a ideia de brincar ao, e com o futebol, tinha grandes ideias para o clube. Pouco depois, o Länk foi embora, deixando uma dívida a rondar os 750 mil euros.

As repercussões de mais uns investidores milagreiros estão a ser sentidos pela equipa feminina: está no último lugar do campeonato ao fim de 14 partidas, só com derrotas e singelos dois golos marcados. Há meses, quando as outras equipas da Liga BPI limavam arestas na pré-época, o Vilaverdense ainda não começara a sua, nem tinha jogadoras suficientes. No plantel tem hoje 15 futebolistas com 19 anos ou menos. E abdicou, logo em agosto, de competir na Taça da Liga. O clube defendeu que “a notícia recentemente divulgada sobre a existência de salários em atraso não corresponde à verdade” e lamentou “qualquer confusão que tenha sido causada”.

Esta balbúrdia que sim é de lamentar sucede na mesma temporada em que a Federação Portuguesa de Futebol, responsável por aceitar a inscrição do Vilaverdense e aceitar a sua participação na principal competição da bola chutada por mulheres no país, ter exultado com o recorde de assistência num jogo feminino ter sido pulverizado pelas 40.189 pessoas que estiveram no Estádio do Dragão, em novembro, para o Portugal-Chéquia. Entende-se que as principais jogadoras portugueses, quase sempre que uma nova marca destas é batida, quando outro marco histórico se alcança - como irem ao terceiro Europeu seguido, neste 2025 -, entremeiem a felicidade com a recordação dos tempestuosos tempos que já se julgavam idos. Mas não, afinal ainda não. Infelizmente ainda não.

Que esta semana lhe sorria e obrigado por nos acompanhar aí desse lado, lendo-nos no site da Tribuna Expresso - que em breve terá uma lavagem de cara -, onde poderá seguir a atualidade desportiva e as nossas entrevistas, perfis e análises. Siga-nos também no Facebook, Instagram e no Twitter. E escute também o podcast “No Princípio Era a Bola”, como sempre com Tomás da Cunha e Rui Malheiro. Até já e espero que volte sempre.

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