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Mundial 2022

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Entre a Croácia de quem não é driblado e a Argentina de quem joga uma última vez contra o mundo, venha a meia-final e escolha

O primeiro dos jogos que pode resultar na repetição de um finalista de há quatro anos atrairá muitos olhos a aguentarem tristeza. A meia-final entre Croácia e Argentina (terça-feira, 19h, RTP1) será a despedida de uma de duas lendas desta geração: Luka Modrić lidera os vice-campeões mundiais cujos três médios são ajudados por um central mascarado e Lionel Messi é um pincel de genialidade no meio de um caos do qual os sul-americanos se tentam afastar

Diogo Pombo

NurPhoto

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Um dos senhores estampa-se com um sorriso genuíno esticado na cara impecavelmente barbeada. Tem um par de galochas verdes calçadas, mas não pisa terreno com água que lhe supere a sola. Tem as mãos meio que entrelaçadas diante do peito. Gesticula durante a fala enquanto, sobre os ombros, descansa um dos braços do outro senhor: de óculos taciturnos postos e curto bigode a destacarem-se na continuação da testa gretada, encosta o seu corpo ao do amigo que conheceu há uns sete anos e com quem religiosamente partilha um café no mercado de Dolac, em Zagreb.

A dita fotografia capta-os na cumplicidade que precede a coincidência de sucesso dos filhos no Catar. O filho de Tihomir é o mascarado do Mundial, o zorro sem espada que tem desencantado argumentos contra todas as intenções de quem ataca a baliza da Croácia; o de Jakov é o avançado torcedor de narizes dos adeptos que há mais de dois anos não marcava pela seleção, mas a resgatou nos derradeiros minutos do prolongamento para eliminar o Brasil nos penáltis. Os patriarcas Gvardiol e Petković, pais de Joško e Bruno, já eram convivas no centro da capital croata onde o primeiro desperta com a alvorada para lá vender peixe, a diário, desde as 5h da manhã.

Extravasada para o campo, e para lá do curioso que os une, esta amizade fotografada abundantemente pelo jornal “Jutarnji” serve quase de súmula do que sustenta a prestação da Croácia no Mundial.

Exibindo galochas, eis o pai-pescador de Joško Gvardiol, defesa central dos 20 anos com a cara protegida por uma máscara devido à recente fratura de um osso na cara, a aniquilar intenções adversárias perto da área da Croácia com um ar gladiadoresco; pronto para guerrear na relva está ele, mas depois fá-lo de pantufas, a cortar bolas com posicionamento exímio e rasteiras impecáveis como a que roubou, nas últimas, o pão à chuteira de Romelu Lukaku, ainda frente à Bélgica e na fase de grupos. E o progenitor de Bruno Petković, o grevista contra o golo quando joga na seleção da Croácia, gozado por ser avançado e raramente marcar, mas aparecido aos 116’ dos oitavos de final para rematar a injeção de adrenalina com que os balcânicos sobreviveram rumo à sua particular zona de conforto.

Um esteio e um pato feio, um pedaço de muro e uma flecha de madeira virada bala de canhão. O lateral esquerdo que virou central a quem chamam “Pequeno Pep” pela parecença do apelido com o treinador que ficou careca de tanto matutar sobre futebol e o avançado cujo último golo pré-Brasil acontecera no Porto, aquando do desmantelamento sofrido na vez em que Portugal se rendeu ao talento, por acaso e por um jogo, bem antes da rendição assumida por Fernando Santos nestas semanas recentes. Eles são duas meias surpresas da Croácia vice-campeã do mundo que é semifinalista logo do Mundial seguinte sem exatamente o mesmo brio de há quatro anos.

Pode ter algo que ver com o visível facto de jogarem que nem uma família, fortalecendo-se no coletivo e não na crença de que a qualidade individual os vai safar de problemas quando eles surgirem.

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Fantasista

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Marvin Ibo Guengoer - GES Sportf

Algo de estranho joga com os croatas. Ao contrário de 2018, arrancaram este torneio com um ritmo sensaborão, a conspirarem em demasia com a posse de bola e a confiarem que ganhariam por terem a sorte de serem guiados por um trio de médios com invulgar exagero de qualidade entre eles. Os nulos com Marrocos e Bélgica separados pelo 4-1 ao Canadá bastaram-lhes para irem a penáltis com o Japão, nos ‘oitavos’, antes da mescla entre Luka Modrić, Marcelo Brozović e Mateo Kovačić sustentar-lhes a resistência frente ao Brasil.

Essa partida foi a quarta nas últimas seis a eliminar em Mundiais que a Croácia esticou até aos remates a 11 metros da baliza. Com uma geração empobrecida face à que alcançou a final de quatro anos atrás, continua essa masoquista queda pela tortura dos nervos. Os croatas vão resistindo pelos passes rápidos dados por Brozović nos primeiros metros onde as jogadas se constroem, pelas corridas com a bola de Kovavić quando precisam de galgar os metros seguintes e pela espécie extinta que são os toques errados na bola de Modrić, que faz melhor aquilo em que os outros dois são muito bons, apesar das pilhas se esvaziarem mais rápido agora, nos seus 37 anos, mesmo tão enganadoramente jovens.

Ter a poção que resulta da coexistência desses três a meio-campo tem elevado a qualidade dos croatas à medida de galgam fases do Mundial, disfarçando quaisquer carências - faltam desequilibradores com bola no pé no ataque além de Perisić, não há um avançado que sequer garanta poder de finalização na área (apesar dos três golos de Kramarić), só um dos laterais leva presença perto da linha de fundo e esse é Juranović, que o faz pela agressividade veloz com que chega lá e não através de uma particular proeza com a bola. Por isso, esse lateral direito diz o que todos deverão pensar dentro da quadriculada seleção sobre a valia dos três médios que os guiam: “Quando lhes passamos a bola é mais seguro do que pormos o dinheiro no banco”.

E quando não a têm, diante do subvalorizado guarda-redes que é Dominik Livaković e ao lado do experiente Dejan Lovren, tem estado Joško Gvardiol, o central abrilhantado pela estatística de que apenas foi driblado uma vez em 510 minutos de Mundial - é o defesa menos ultrapassado do torneio -, algo congeminado entre a sua destreza defensiva e a coesão de uma equipa que concede pouco aos adversários. Superado o Brasil, o teste agora será com quem tem laivos de se atirar para cima de outras equipas pela urgência em presentear um ídolo com mais um adiamento, o envelhecer da despedida só por mais uns quantos dias.

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Hector Vivas - FIFA

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Maja Hitij - FIFA

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GABRIEL BOUYS/Getty

Como Luka Modrić, ver os 35 anos de Lionel Messi neste Mundial tem sido um pranto lacrimejante à espera de transbordar bochechas abaixo.

Ambos expoentes do quão o futebol se rende a quem o jogar, antes de tudo, com a massa cinzenta disponível, o croata e o argentino são a confluência de um adeus iminente. Este será o seu último torneio quadrienal, a sua derradeira marca na história, a tentativa-mestra em irem além do desgosto amargo de serem finalistas vencidos de um Campeonato do Mundo que ainda terão nas papilas gustativas. Oito anos depois, Messi é a parcimoniosa cedência à idade na qual eventualmente se acabaria por transformar, mais do que Modrić, capaz de manter constantes as rotações majestáticas de como se dá à bola - scanear o que o rodeia para a receber, tocar, passar e ficar sem ela só para a ter de volta ou elevar quem joga com ele -, porque Lionel é um compêndio de abanões indomáveis que dá a uma partida de futebol.

Tê-lo virado para a baliza com a bola amestrada no pé esquerdo é pecado cometido por centenas de equipas e as últimas seleções a fazê-lo estão neste Mundial. Por hábito já colocadores do coração no bico das chuteiras, jogando plenos de emoção exacerbada, os argentinos têm vindo à caça do trabalhado e mais estável jogo que traziam para o Catar, e que perderam com o pandemónio da derrota logo a estrear, frente à Arábia Saudita. Isso devolveu-os à pressa onde se tiveram de reencontrar.

A inclusão de Lisandro Martínez no bombordo do imaculado Otamendi, fora a certeza na distribuição de bola dada por Enzo Fernández na fachada da linha defensiva e na posição que a cantoria argentina chama de enganche, estabilizaram a seleção que também ganhou com a constante movimentação na frente de Julián Álvarez, avançado que perturba os adversários por não descansar nas corridas em que pede a bola nas costas dos defesas. A cada jogo, a Argentina foi-se acercado do aproveitamento de Messi no meio de uma estabilidade redescoberta, tentando afastar-se do caos a que voltou à casa de partida na estreia diante dos sauditas.

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MANAN VATSYAYANA

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Anadolu Agency

Prevalecendo com o seu apanágio de ir aos soluços, na dúvida por esclarecer se o acérrimo e audível apoio dos adeptos é um empurrão ou um sufoco, a Argentina está aí para as derradeiras curvas do seu capitão. Órfã nas eliminatórias do foco fintador que Ángel Di María oferece além de quem nós sabemos, portadora de laterais débeis quanto do que podem contribuir no ataque e limitada por, a meio-campo, ter um Rodrigo de Paul a apresentar uma versão temerosa em ser mais do que um fornecedor de passes a Messi, mas está.

Depois, embrulhando tudo, baila o derradeiro tango de Lionel, resplandecente nas ações que guarda para a bola que lhe chegue durante uma das suas caminhadas pelo relvado, quando parece uma ilha alheada do jogo ou lunar na concentração. É mentira, sempre o foi, mentiroso é ele que desde canalha parece um corpo desinteressado do jogo, mas incorpora a possibilidade de o ato de mentir repetido muitas vezes poder, afinal, ser verdade - façam essa bola chegar-lhe e veremos, como o presenciámos na assistência por entre as pernas contra os Países Baixos ou passe à baliza diante a Austrália, os mais recentes exemplos das incontáveis demonstrações dadas do seu talento estrelar.

Cadente já chegou Lionel Messi a este Mundial, a efemeridade da vida também o afeta e o argentino fintará todos menos o tempo. É um facto que o torneio no Catar acolheria, entre outras, as despedidas dele e de Luka Modrić. Fujamos não a essa evidência, mas sim, e apenas momentaneamente, à inevitabilidade: o bom desta meia-final é que ainda teremos pelo menos hora e meia na companhia de ambos.