A garra charrúa é frequentemente evocada, quase atirada para o ar, quando é tempo de a seleção uruguaia correr atrás de uma bola. Fomentado, e muito, pelos 15 anos da orquestra com olhar fixado na batuta de Óscar Tabárez, que a segurou até a saúde lhe permitir, o Uruguai jogou futebol com os dentes cerrados, sabendo qualquer cidadão atento a uma partida a envolvê-los que a hora e meia seguinte teria um certo inventário de acontecimentos: lances disputados até à última, cortes festejados que nem golos, cerimónia inexistente caso fosse preciso fazer uma falta.
Ou, quisesse o fado desse jogo, um jogador de campo meter a mão à bola para impedir um golo.
Luis Suárez estava em cima da linha da baliza, em 2010, quando uma nesga de tempo lhe acionou o instinto salvador. A bola era das insistentes, após ser cruzada para a área ia no terceiro remate feito por ganeses e o que veio da cabeça de Dominic Adiyiah tinha o guarda-redes Fernando Muslera já perdido na área, a reagir sem tino à sucessão de ressaltos. Com a baliza desguardada, a bola ia entrar. Mas a ausência de pudores de Suárez levou-o a defender o remate com as duas mãos, bloqueando-a contra as manápulas do único uruguaio com luvas para que, por segundos, todos agissem como se nada fosse. O teatralizado ‘segue jogo’ não resultou.
Olegário Benquerença era o árbitro desse Gana-Uruguai e saco do bolso o cartão vermelho. Intempestivo e refilão, duas etiquetas presas desde cedo ao jogador que sempre foi, Suárez mal reagiu. Ainda tentou culpar Jorge Fucile, o ex-FC Porto, que ao seu lado estava e que já ia falhar o jogo seguinte devido a um cartão amarelo. “Tive um milésimo de segundo para pensar e estava exausto de 120 minutos de futebol”, confessaria na sua autobiografia, convenientemente intitulada “Cruzando a Linha”.
O tic-tac da partida já era idoso e a enormidade do que estava em discussão parecia vaticinada: ao último dos minutos possíveis para se jogar, um penálti era apitado para os ganeses que tentavam ser a primeira seleção africana a alcançar as meias-finais de um Mundial; a um pontapé de lhes sair da frente estavam os uruguaios, bicampeões mundiais nos idos anos 30, a jogarem para reavivarem os seus tempos gloriosos. Tanta história a pender a 11 metros da baliza.
Praticamente choroso e desconsolado no andar, Suárez encaminha-se para o túnel que engole jogadores para o balneário. Não quer ver o penálti que tanto lhe poderia afetar a carreira itinerante que nem sequer arrancara propriamente com o futebol em mente: ainda adolescente, o vagabundo forjado a origens humildes no interior do Uruguai viu a dama de outras posses a emigrar com a família para Barcelona e ele no Nacional, em Montevidéu, prometedor mas ainda sem seduzir assim tantos interessados, apressou-se a arranjar um clube que lhe proporcionasse atravessar o charco para, ao menos, descartar o oceano no meio de ambos. Conseguiu o frio de Groningen, no norte dos Países Baixos.
Quando levava a sua tristeza cabisbaixa para fora daquele campo, na África do Sul, já representava o Ajax e nem seis meses tardaria a trocar Amesterdão por Liverpool. Depois, enfim, chegaria a Barcelona no auge do seu potencial de avançado desenvencilhador de corpos com anormal frequência do uso da cueca como finta. Mas, nos quartos-de-final do Mundial onde se armou em guarda-redes, acabara de virar o próprio país contra ele. Pouco depois, Asamoah Gyan trocou o país que o visava com descontentamento.


A história nada quis com o pé destro do avançado ganês, a bola que rematou bateu no poste e Luis Suárez pulou com a alegria que o terá sustentado durante estes anos todos. Mais tarde, saltaria para as cavalitas de outros jogadores uruguaios onde as fotografias o guardam: o jogo iria para o desempate por penáltis, onde os sul-americanos ultrapassaram os africanos (4-2) e condenaram um traumático desfecho de acontecimentos a maturar até ao dia que proporcionasse um reencontro.
Mas, antes do futebol reunir as seleções de ambos os países no campo e uma dúzia de anos depois, a garra charrúa manifestou-se fora dele, para variar. O depósito de Luis Suárez na pradaria à mercê dos jornalistas terá sido a variação mais prosaica que os uruguaios inventaram para cerrarem os dentes fora do relvado.
O desempregado, pesado e desgastado avançado foi o jogador que compareceu na conferência de imprensa pré-jogo, com a presença de jornalistas ganeses. Um deles questionou-o sobre o que o avançado fez em 2010 - o uruguaio chegou a congratular-se pela “melhor defesa do Mundial” -, defendendo que Suárez é encarado no Gana como “o diabo”. A resposta para a qual o uruguaio por certo se terá aprontado não lhe vestiu qualquer parcimónia: “Toquei com a mão na bola, mas foi o jogador do Gana que falhou o penálti. Não fui eu. A mim expulsaram-me e marcaram um penálti, não fui eu a falhá-lo, não é da minha responsabilidade”.
Cotovelos apoiados em cima da mesa, o microfone docilmente à espera das suas palavras, Suárez não se deteve a explicar que “talvez pedisse desculpa se tivesse feito uma entrada, lesionado um jogador e visto um cartão vermelho”. Mas, na situação de há 12 anos, quando se resignou à espécie de sacrifício em prol da nação, escusa-se a fazê-lo: “A culpa não é minha”. A menos de dois meses de soprar 36 velas, longe do jovem adulto que então era, o uruguaio apresentou-se contra as balas de uma badalada vingança.
Logo em abril, quando papéis a saírem do interior de bolas sorteadas emparelharam os dois países no mesmo grupo do Mundial, esse falatório prontamente saiu até da boca das maiores representantes do Gana. “Tivemos que esperar 12 anos para obtermos vingança do Uruguai. Garantimos que, desta vez, a mão do Suárez não os salvará contra as Estrelas Negras do Gana”, avisou Nana Akufo-Addo, presidente do país, após o sorteio. O seu antecessor, John Mahama, deixou um pedido: “Mesmo que não ganhem a mais ninguém, ganhem ao Uruguai por mim. E vamos devolver ao Suárez o que ele nos fez”. O tempo nem sempre cura tudo.

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Há muito sapiente do iminente reencontro, André Ayew, hoje capitão do Gana e único jogador que esteve no descalabro de 2010, garantiu, já no Catar, que o jogo “não é uma vingança” para ele, o singular caso que “sabe como se sentiram” há 12 anos. O seu irmão que não Jordan, também integrante desta seleção, mas Ibrahim Ayew, outro presente no jogo na África do Sul, reconheceu à “The Athletic” que a palavra “ódio” talvez seja demasiado - “ainda dói, tentas por isto no passado e enterrá-lo, só que faz parte ti, é como uma cicatriz”.
Ele e outros recordam-se de Luis Suárez rejubilar, os pés como molas, enquanto dava pulos à entrada para o túnel ao ver o penálti de Asamoah Gyan ir contra a barra da baliza. Vários admitiram sentir raiva, o uruguaio confessaria que gritou “golo!” por nunca esperar que o ganês falhasse. “Mais do que batota, senti que tinha feito um sacrifício. Certamente não fui egoísta, dei tudo pelo meu país e pela minha equipa. Nem foi o caso de fazer uma escolha, agi por instinto”, deixara já por escrito o jogador, na sua autobiografia.
Domador como poucos da jabulani, bola que adoçou com o pé direito no livre que empatou o rocambolesco jogo do Mundial de 2010, o saudoso Diego Forlán acrescentou o seu quinhão ao falar para o mesmo site, defendendo como “o Luis foi penalizado” e “não jogou a partida seguindo”. O ex-avançado, no fundo, critica o uso de duas medidas para o mesmo peso: “As regras dizem que se tocares com a mão na bola dentro da área, é penálti. Ele foi expulso, portanto, é o vilão porquê? As regras foram aplicadas e ele foi penalizado”. A cruz da glória que elevou Suárez no Uruguai é a que o condenou à animosidade no Gana.
Ao seu quarto Mundial, o avançado jamais tímido a dar-se a um arrufo ou faísca no campo fez questão de mostrar-se à sede de perguntas na antevisão ao reencontro. Seja o jogo vingativo ou não, Luis Suárez relativiza a inflação que diagnostica ao peso do momento. “Os jogadores ganeses que falam de vingança se calhar nem oito anos tinham” quando atiçou as mãos à bola, ou “apenas se lembram do que viram nas imagens”, suspeitou perante os jornalistas. Nenhuma desculpa lhe saiu da boca, veremos se algo fabricará, no relvado, com algum dos seus membros.