Foi como um sonho juvenil. Há 22 anos, um grupo de centenas de jovens jogadores chegou a uma espécie de aldeia olímpica no meio do deserto do Catar. Era a primeira vez que aquele pequeno ponto do globo, sem tradição futebolística, sem uma série de outros preceitos muito mais importantes, recebia um Mundial de futebol. “Era como um país inventado”, nas palavras de José Pekerman, que treinava 18 dessas centenas de miúdos.
Eram, na verdade, 17 mais um. O capitão daquela seleção argentina no Mundial de sub-20 do Catar chamava-se Juan Pablo Sorín, garoto de 18 anos, e o único que já tinha jogado pela seleção principal, mesmo que tivesse apenas pouco mais de uma dúzia de jogos como profissional — Juampi, como ficaria conhecido, tinha sido chamado pelo mítico Daniel Passarella, que o viu antes de todos os outros.
Apaixonado pelo golo, o canhoto faria toda a carreira como lateral-esquerdo, somando internacionalizações pela Argentina e feitos no futebol europeu, como aquelas meias-finais da Champions com o Submarino Amarelo do Villarreal (2005-2006). Mas até hoje continua a dizer: aquele Mundial no deserto foi dos momentos em que esteve mais perto do céu.
Apaixonado pelo rock and roll — gosta de Rolling Stones e de Los Ratones Paranoicos e foi o homem do baixo numa banda com dois companheiros de equipa, um deles o carismático Germán Burgos —, Sorín é bom de bola e de palavras. Ainda no início da carreira, no River Plate, animou um programa de rádio sobre política, cultura e, sim, rock n’ roll, na rádio argentina La Tribu, a que chamou “Tubo de Ensaio”. Anos mais tarde, organizou o livro “Grandes Chicos”, com textos do próprio e de alguns dos seus autores preferidos, Eduardo Galeano à cabeça, e cujos lucros doou a duas escolas na província argentina de Santiago del Estero.
Hoje é comentador desportivo e está no Catar a acompanhar os filhos daquela geração de 1995. E, pelo meio, encontrou espaço para ser também o autor de “Era uma vez no Catar” (“Érase una vez en Qatar”, no original), o documentário que conta a história dos argentinos, brasileiros, espanhóis e portugueses que no deserto tentaram pela primeira vez beijar a taça de campeões do mundo.

Com um ainda muito jovem Lionel Messi, antes do Mundial de 2006
KARIM JAAFAR/Getty
“Estamos em meados da década de 90 e boa parte do mundo futebolístico ocidental tem que aprender uma nova palavra: Catar”, lê-se na sinopse. “Porque ali, no meio do deserto mitológico, um punhado de miúdos de diferentes países e origens vai jogar o mundial juvenil. E vão ganhar e perder muitas coisas: a infância, a taça, a tristeza e a glória. Depois do Catar, as suas vidas não vão ser as mesmas.”
Mais de duas décadas depois, Juan Pablo Sorín entrevistou algumas das estrelas daquele Mundial, que ainda não faziam ideia do que se seguiria. Alguns tiveram ali o ponto de partida de uma carreira brilhante, outros não chegaram a sair do deserto.
Do Brasil, que perdeu a final contra a Argentina do capitão Sorín, entram Caio Ribeiro, ponta de lança que muito prometia, o primeiro de sempre a receber o prémio Golden Boy, mas que falhou a passagem pela Europa, Zé Elias, trinco que fez caminho em Itália, sobretudo no Inter, e Luizão, ponta de lança de destaque no Brasil; de Espanha falam Raúl González, que haveria de tornar-se um dos melhores avançados espanhóis de todos os tempos, Javi López Vallejo, com quem Sorín se cruzou mais tarde no Villarreal, Joseba Etxeberría, basco que se destacou no Athletic Bilbao e que aparecia como estrela no torneio, e o treinador Vicente Del Bosque. E da seleção portuguesa, que chegou ao Catar com a moral de dois títulos sub-20 recentes (Riade 1989 e Lisboa 1991) fala Dani, o menino bonito que prometia o mundo e que nesse torneio marcou um dos livres que melhor lhe define a carreira: belo e malandro em doses iguais.
“Este documentário é o testemunho de uma história humana e desportiva que se vive como um thriller de iniciação juvenil. Esta é a história do Catar 95.”
Da seleção argentina campeã do mundo, que agora inspira os 23 adultos que hoje disputam o apuramento para a fase final do Catar 2022 com a Polónia, poucos cumpriram o que ali se imaginou. Exceção talvez para Biagini, que foi logo contratado pelo Atlético de Madrid depois do Mundial e assim juntou ao currículo a La Liga de 1997, a única dos colchoneros até 2014, e Ibagaza, que no Catar sub-20 foi um dos primeiros (e haveria vários) “novo Maradona”. Definitivamente, nenhum conseguiu o grande feito de Sorín: ser amado por todos os clubes por onde passou.

Sorín foi ídolo no Cruzeiro, no Brasil
MARTIN BERNETTI/Getty
Há várias histórias que definem a carreira do canhoto. Uma delas aconteceu quando se despediu pela primeira vez do Cruzeiro, no Brasil — sim, Sorín teve duas despedidas, uma em 2002, quando foi vendido ainda jovem e num momento de ascensão na carreira, e outra em 2009, à beira de pendurar as botas, quando ganhou direito à designação de “Ídolo Eterno” da torcida cruzeirense.
Na de 2002, Sorín já estava vendido à Lazio, preparava-se para disputar o Mundial da Coreia do Sul pela Argentina, e não tinha de jogar. Aliás, se fosse hoje, com o aperto de restrições da alta roda do futebol mundial, era provável que não jogasse mesmo, para prevenir lesões ou acidentes que pusessem em causa a transferência. Mas Sorín sempre recusou precauções.
Era a final do Campeonato Sul-Minas, entretanto extinto, que punha nos píncaros a rivalidade entre clubes da região Sul do Brasil e de Minas Gerais. Frente ao Atlético Paranaense, 70 mil adeptos no Mineirão, Sorín roubou a cena toda: no início do jogo abriu o sobrolho e pôs uma banda elástica na cabeça, ao intervalo levou seis pontos, e na segunda parte apareceu na área para dar uma trivelada pouco ortodoxa (uma “Soríniana”, diz ele) e marcar o golo do título. Enloquecidos, os cruzeirenses festejaram assim:
“Não tem bola perdida”, disse Sorín por estes dias a um dos podcasts mais escutados no Brasil, o Podpah. E esse “não tem bola perdida”, num português escorreito, é uma das melhores definições do homem que foi sempre mais solista que maestro, mais esforçado que talentoso, mais pés de barro do que pés de lã.
E que, ao contar as histórias daquele sonho juvenil de 95, tem contado também sobre o que o futebol deveria ensinar e que está nos antípodas do que se viu na escolha e organização do Catar como anfitrião de um novo Campeonato do Mundo, 22 anos depois. “Sou muito melhor pessoa graças ao balneário”, conta Sorín. “Eu tinha o que comer todos os dias, mas tinha amigos que não”, como “o cara que tem de fazer um milagre para ir treinar uma vez por dia”. No balneário, “encontramos pessoas que vêm de lugares diferentes”. E assim “aprende-se realmente o que é a vida”.
A Argentina tenta passar a fase de grupos esta quarta-feira, às 19h portuguesas, frente à Polónia.