Já não era aquela ‘Dinamáquina’ nascida no Mundial de 1986, que se consagraria em 1992 com um título de campeã europeia que ninguém podia esperar — até porque para esse Europeu, a Dinamarca só se apurou porque a Jugoslávia, então envolvida numa violenta guerra civil, foi desclassificada. Há 20 anos, na Copa de 2002, a Dinamarca era bem diferente, feita mais de operários do que de maestros.
Senão vejamos alguns exemplos: lá atrás, na baliza, estava um Thomas Sørensen que, embora com uma carreira sólida em Inglaterra, não fazia meio Peter Schmeichel, o melhor guarda-redes da história dinamarquesa. Na frente, John Dal Tomasson era um avançado igualmente interessante, que chegou a destacar-se no Milan, mas que não chegava perto de nenhum dos míticos irmãos Laudrup. E no meio, o papel principal era de Thomas Gravesen, um centrocampista que era uma espécie de carro-vassoura, que se tornou um meme antes da era dos memes, e cujo principal recurso técnico consistia em atirar o joelho para o chão e enganar os adversários — em Espanha, a “finta” ficou conhecido como ‘Gravesinha’.
A juntar a este cenário, do outro lado estava uma França que defendia o título de campeã mundial conquistado no torneio anterior, em casa (França-1998), e que mantinha uma equipa praticamente igual. Uma constelação de estrelas feridas depois do arranque com uma simbólica derrota frente a uma ex-colónia, o Senegal, e um empate contra o Uruguai. Ganhar o último jogo da fase de grupos era então obrigatório. A arbitrar o França vs. Dinamarca de 2002 estava um português: Vítor Pereira.
Pois se havia alguma coisa para imaginar, aconteceu tudo exatamente ao contrário. A França passou o jogo a atacar, é certo, somando oportunidades, bolas no poste e no muro defensivo dinamarquês. Só que a Dinamarca, cínica, chegava à frente e matava. Foi assim duas vezes, uma em cada parte: primeiro Dennis Rommedahl, extremo do PSV, e depois o já citado Tomasson, que levava na mão uma aliança, a lembrar que os tempos eram outros, e permitiam aos jogadores ostentarem jóias dentro de campo (do outro lado, o brinco na orelha de Djibril Cissé brilhou mais que o ponta de lança francês). Até ao fim do jogo, os falhanços foram tantos que David Trezeguet, após mais um, trocou o grito de frustração pelo riso. O futebol tinha ali a forma de capricho.
A Dinamarca provocava um escândalo ao atirar para fora da competição a campeã em título ainda na fase de grupos. Era uma raridade, que só tinha acontecido ao Brasil em 1966 (campeão em 62), eliminado pelos golos de uns senhores chamados António Simões e Eusébio da Silva Ferreira.
Com aquele jogo, o que era raridade virou maldição: à exceção de 2006, em todos os mundiais seguintes, o campeão em título saltou fora na fase de grupos. Foi assim com a Itália em 2010, foi assim com a Espanha em 2014, voltaria a ser assim com a Alemanha, no Mundial de 2018. Hoje é a França que defende o título conquistado nesse campeonato na Rússia. E pela frente tem… a Dinamarca.
Há 20 anos, o melhor jogador francês, de ascendência argelina, que quatro anos antes foi coroado melhor do mundo, Zinedine Zidane, começou o Mundial lesionado. Em 2022, o melhor jogador francês, de ascendência argelina, coroado este ano melhor do mundo, Karim Benzema, ficou fora da convocatória devido a lesão. É mais um indício suspeito.
França e Dinamarca jogam este sábado às 16h portuguesas.