Talvez nenhum Mundial tenha colocado tantos dilemas aos amantes do jogo como este no Catar, mas também nunca faltaram exemplos de como as ditaduras e os atropelos democráticos são capazes de se meter por entre os relvados. A Arábia Saudita de 1994 tem qualquer coisa a dizer sobre isso.
Os Falcões Verdes, assim são apelidados os que vestem aquele verde e branco, eram vencedores antecipados: pela primeira vez na história, participavam num Campeonato do Mundo, depois de diversas tentativas e de um domínio quase absoluto no respetivo continente na década de 80 (duas Taça da Ásia seguidas, em 1984 e 1988). Vinham com a audácia própria dos principiantes e até entraram a ganhar contra a poderosa Holanda, onde pontuavam rapazes como Koeman, Rijkaard ou Bergkamp.
O sonho não resistiu, os neerlandeses deram a volta perto do último apito (por um bem conhecido Gaston Taument, que anos depois assinaria pelo Benfica) e trouxeram os árabes de volta à terra. Mas ainda havia história para escrever e a Arábia Saudita começou a antecipá-la no jogo seguinte: 2-1 frente à seleção de Marrocos. Faltava a Bélgica.
A expectativa não podia ser muita, não só porque se tratava da primeira grande competição de homens que só jogavam em campeonatos periféricos, como porque era contra belgas habituados aos grandes palcos. A prova acabada dessa estaleca eram as meias-finais no Mundial de 1986, um torneio em que a Bélgica só tombou aos pés de ninguém menos que Diego Armando Maradona (dois golos). Mal sabiam os belgas que o melhor da história encarnaria nos pés de um outro canhoto, vestido com aquele verde e branco.
Fazia um calor dos ananases em Washington, 104 graus Fahrenheit (ou os mais inteligíveis 40º Celsius), segundo os relatos daquele dia 29 de junho de 1994. Nada que incomodasse a tal audácia, a que só pode servir de explicação para o que se passaria ao quinto minuto de jogo, quando Enzo Scifo, belga titularíssimo do francês Mónaco, deixou fugir a bola que, em segundos, chegou aos pés de Saeed Al-Owairan, o número 10 saudita, a meio do meio-campo defensivo e de costas para a baliza adversária. Owairan recebe com o pé direito, orientado, e vira-se.
“Quando fomos para aquele Mundial, toda a pressão para marcar recaía sobre mim, embora eu não jogasse como verdadeiro avançado”, recordaria o centrocampista anos mais tarde, numa entrevista publicada no site da FIFA. As lesões do melhor marcador de sempre da Arábia Saudita, Majed Abdullah, a derrota com a Holanda e os golos falhados contra Marrocos, aumentavam a pressão.
“O falecido rei Fahd bin Abdulaziz Al Saud ligou-me a dizer: ‘Deus abençoe aqueles que jogam futebol bonito. Estou otimista de que vais marcar no terceiro jogo’”, contaria ainda Al-Owairan. Não é certo que tenha sido obra do divino, mas aquele minuto cinco contou para a FIFA como um dos melhores momentos da história dos campeonato do Mundo.
O número 10 começa a arrancada e é apertado por um jogador belga, enquanto vê outro aparecer-lhe de frente. Imperturbável, esgueira-se pelo meio dos dois. Dirk Medved, o primeiro, insiste, e acaba estendido no relvado, enquanto Owairan fica com três belgas pela frente, que precisam de estar de olho nos dois únicos sauditas que conseguem acompanhar a cavalgada. Owairan adianta a bola e espera o carrinho de um adversário, para o deixar também para trás.
Faltam agora dois jogadores, mais o guarda-redes. E que guarda-redes. Em 1994, a Bélgica fez apenas quatro jogos e, mesmo assim, Michel Preud’Homme, “Saint Michel” para os amantes, foi nomeado o melhor keeper do torneio (também assinaria pouco depois pelo Benfica). Até encontrar Owairan, Preud’Homme não tinha sofrido qualquer golo.
O bruaá nas bancadas é já imenso e, talvez por causa dele, Rudi Smidts, o último obstáculo antes do guarda-redes belga, não sabe se há de virar-se para a esquerda ou para a direita — quando se põe de frente, já Al-Owairan está sozinho com Preud’Homme. O número 10 é capaz de jogar com os dois pés e usa o direito para empurrar a bola para a baliza. “Incrível, é o golo dos seus sonhos, no maior palco de todos”, grita o relato.
“Gostava que na altura existissem smartphones e redes sociais. Talvez isso tivesse mudado completamente o meu futuro”, diria Al-Owairan à mesma FIFA. Em 1994, não existiam smarpthones nem redes sociais, mas hoje é possível voltar a ver no YouTube o golo que faz lembrar aquele do Argentina-Inglaterra de 1986:
Nada de tão belo estava guardado para o futuro de Al-Owairan. O golo maradoniano contra a Bélgica valeu-lhe a alcunha de “Maradona do Deserto”, o que foi tanto bênção quanto maldição.
Os holofotes no regresso a uma casa regida pela lei islâmica, onde a família real saudita tudo podia, acabaram numa detenção que durou um mês, seis meses ou um ano, conforme os relatos e os tradutores, contava o New York Times em 1998. Um dos episódios “inconcebíveis” para uma estrela do futebol, num país em que não se respeitam os mais elementares direitos, aconteceu quando Al-Owairan foi apanhado a beber álcool, na companhia de várias mulheres, durante o Ramadão, em 1996.
Além de detido, o jogador, que nunca jogou fora da Arábia Saudita (as transferências para o estrangeiro eram, aliás, proibidas pelo Governo) foi suspenso do futebol por um ano e ficou dois sem jogar pela seleção, até regressar a tempo do Mundial em França (1998), já sem o andamento e a audácia anteriores. “Ser suspenso [do futebol] foi o pior castigo.”
Al-Owairan, num jogo da Arábia Saudita do Mundial de 1998, em França, já depois da ascensão e queda que se seguiram ao golo maradoniano à Bélgica
Michael Steele - EMPICS
Em 2022, a Arábia Saudita continua a ser um dos países que menos respeita os mais elementares direitos dos cidadãos, num Mundial organizado por um dos países que menos respeita os mais elementares direitos dos cidadãos. Assim como continua a ser pouco provável que um jogador com aquele verde e branco seja a estrela de um jogo, sobretudo de um jogo que tem do outro lado um dos melhores da história, Lionel Messi, a fazer a última aparição numa Copa do Mundo. Mas, assim como parece não haver Mundial sem atropelos, também não há memória de um Mundial sem os seus caprichos divinos. É com eles que jogam hoje todos os sauditas.