O capacete não faz vácuo, não insonoriza por completo, nem um piloto fica só com o som do silêncio, mas abafa. É uma carapaça que visa proteger contra desastres e também precaver os tímpanos de motores que rugem a 340, 350 quilómetros por hora e claro que os ouvidos de Miguel Oliveira não captam as distinções de um autódromo vazio de corpos para um atolado com gente aos berros. Na viseira sim, “visualmente” há “muita diferença” entre o circuito de Portimão “despido” ou “com pessoas”, outra coisa é o português ter ouvido o ronco do público logo no raiar da corrida.
Zarpando do quarto lugar da grelha, montando uma moto negra com a sua nova fatiota negra, o português esgueirou-se por entre as três máquinas que tinha à frente e, à primeira curva, intrometendo-se de esguelha, era líder com um arranque de mestre. As gentes rejubilavam, o barulho abanava as bancadas do Autódromo Internacional do Algarve, era o piloto da casa a dar pó de comedura a quem lhe seguia o rasto nas aceleradelas inaugurais do MotoGP.
Miguel Oliveira liderou a volta de arranque, um falcão escuro a delinear trajetórias no alcatrão com a sua Aprilia, sem retrovisores para ver Francesco ‘Pecco’ Bagnaia a aproveitar-lhe a cobertura de vento e ultrapassá-lo à segunda volta, cheio de matreirice de campeão do mundo. A exultação anterior deveria ser tão breve quanto esse pingo de desilusão porque falta toda uma corrida por fazer e o português, com a sabedoria dos 28 anos, 68 corridas e quatro temporadas no MotoGP, sereno estaria dentro do seu capacete. Mais haveria por vir.
E veio sem freios, com travões ou o juízo a falharem, um deles certamente foi, quando o bem mais experiente do que ele, Marc Márquez, entrou embalado numa curva onde o normal seria estar a abrandar. Na sua Honda bordada a Repsol, o espanhol dos oito títulos mundiais foi incauto, imprudente e desastroso, não travando nem se desviando das maquinarias que tinha por diante e da negra de Miguel Oliveira: quando já se inclinava para o alcatrão, todo ele de lado, o espanhol abalroou o português como um limpa-neves, derrubando-o e deixando-o a deslizar pista fora.




Não houve bandeira vermelha a colocar um ponto e vírgula na corrida. Quando Márquez já ia à boleia de uma mota à civil, a ser levado ao camião da sua equipa e a lá entrar sem retirar o capecete para não escutar os impropérios insultuosos vindos do público, Miguel Oliveira ainda estava sentado na gravilha, à beira do alcatrão, rodeado de gente a examiná-lo. Tinha ar combalido, a cara fechada em desalento. Quando os planos televisivos mostram um veículo dos bombeiros a encaminharem o piloto do número 88 para algures, Marc Márquez mostrava-se nas boxes.
Já vestido de polo, de boné na cabeça, dirigiu-se por segundos à bancada principal do autódromo, unindo as palmas das mãos num gesto de desculpas. O perdão foi pedido, mas talvez não correspondido pelo grave dos búúús devolvidos pelo público. O incauto espanhol empurrara para fora da corrida a esperança de um povo que enchera o circuito na primeira vez, em seis anos, que o MotoGP arranca na Europa.
Quando os punhos e os dedos de ‘Pecco’ Bagnaia manejavam a gravidade com a sua Ducati na reta da meta e o italiano viu o xadrez da bandeira a acenar-lhe - seguido por Maverick Viñales, em segundo, e Marc Bezzechi no terceiro posto -, ainda nada se sabia do português além de relatos de sentir dores na perna e no pé esquerdos. Vinte e cinco voltas depois, ele estaria no centro médio do Autódromo Internacional do Algarve, despido de capacete, a ouvir os sons da desilusão, a ecoar-lhe na cabeça os tons do que poderia ter sido.
A corrida inaugural da temporada do MotoGP ficou sem Miguel Oliveira, o seu primeiro líder de ataque feito logo à primeira volta, devido à imprudência brusca e tosca de um piloto que pulou entre pesadelos nos últimos três anos, sujeito a cirurgias várias no braço direito que lhe ameaçou a carreira. O Grande Prémio de Portugal é especial para o piloto de Almada, sê-lo-á até ao dia em que decida poupar o corpo a estes cambalachos. E esta edição foi-o por más razões.
Ao singelo erro de sábado na sprint race, que o fez sair ligeiramente de pista quando era 3.º classificado e fez terminar em 7.º, acrescentou este atropelamento sofrido na corrida de domingo. “Madre de Diós”, exaltou Maverick Viñales quando, despidos de capacetes, os três do pódio conviviam diante de uma televisão que mostrava repetições do acidente, antes da cerimónia dos prémios. “Pobre Miguel”, acrescentou Marc Bezzechi.
Já com a apoteose em andamento, soube-se que a perna direita do português tinha apenas uma contusão, nada de fraturas. “O Marc veio às boxes pedir desculpa e dizer que tinha tido um problema. A corrida tem 25 voltas, alguém se esqueceu que isto não era uma sprint race”, criticou Razlan Razali, chefe da RNF Aprilia, equipa do português, à “Sport TV”, ao dar a boa-nova do estado de saúde do piloto. Soube-se mais tarde que Márquez ficou com uma fratura na mão devido ao acidente.
Antes já se vira Miguel Oliveira à boleia do pai, os dois levados por uma scooter, ambos carregadores do desapontamento do que prometia, quiçá, ser uma vitória diferente para o português - cheia de barulho, repleta de gente, recheada dos aplausos que não teve em 2020, quando ganhou em Portimão no vazio da pandemia.