Ainda não amanheceu em Kaptagat, no Quénia, e já Eliud Kipchoge está acordado. O maratonista levanta-se às 5h45 durante 10 meses por ano, despertando para mais uma jornada de treino intenso e repetitivo. Ao seu redor estão outros atletas que vivem na espécie de reserva natural para os corredores de fundo que existe naquele país africano, berço de uma quantidade quase incontável de medalhados olímpicos e mundiais.
Situado no Vale do Grande Rift, a cerca de 2.300 metros de altitude, o centro de treinos pode albergar inúmeros campeões, mas as condições de trabalho estão longe do luxo ou do glamour que se poderiam imaginar naquele laboratório de aperfeiçoamento de corredores. A pista existente é de terra e nem sequer está nivelada; todos os atletas têm de limpar as casas de banho, segundo escalas que se cumprem escrupulosamente; os duches de água quente são uma inovação recente.
Praticamente não há atividades além do treino e descanso, com quartos desprovidos de tudo o que não seja essencial. Eliud Kipchoge sai dessas pequenas habitações antes da alvorada e lá regressa às 21 horas em ponto, para ir dormir. Um quotidiano rígido, severo, que parte de uma “escolha” do atleta, porque “ter êxito não é por acaso”, mas sim fruto de uma “opção” que, para ser feita, exige “saber quem és, onde queres ir e porquê”, diz.
Aos 37 anos, Eliud Kipchoge é a referência incontornável das corridas de fundo. Em Berlim, venceu a 15.ª das 17 maratonas oficiais que disputou, estabelecendo um novo recorde do mundo na distância: percorreu os 42,2 quilómetros em 2 horas, 1 minuto e 9 segundos, 30 segundos mais rápido do que o anterior máximo, que o próprio tinha estabelecido, também na capital alemã, em 2018.
É apenas a sexta vez na história que um homem bate por mais do que uma vez o recorde na mítica distância. Com ouros nos Jogos Olímpicos do Rio e de Tóquio, Kipchoge, sem nenhum verdadeiro rival, corre tendo como grande objetivo superar-se a si próprio.
Kipchoge alonga numa sessão de treino no Quénia
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Antes de fixar pela primeira vez a melhor marca na prova que começou a correr em 2013 — em Hamburgo, com um registo de 2 horas, 5 minutos e 30 segundos —, Kipchoge disse ao “New York Times” que “simplesmente” tenta fazer a sua “melhor marca”. “Se vier com um recorde do mundo, aprecio-a, mas trato sempre os registos como o meu recorde pessoal”, explicou então. Para o queniano, tudo parte de uma corrida contra os seus limites.
Em 2019, em Viena, Kipchoge tornou-se no primeiro homem a baixar da mítica barreira das duas horas na maratona, ainda que numa prova não oficial. Num evento organizado pela INEOS e que foi feito à medida para que o recordista descesse da fasquia dos 120 minutos, com ‘lebres’ (corredores profissionais) que faziam só parte do percurso para marcar o ritmo ou um carro que ia à frente dos corredores com um cronómetro, o queniano fez 1 hora, 59 minutos e 40 segundos.
Na altura, Kipchoge disse que a “razão” para tentar baixar das duas horas “não é a performance”, mas sim “mostrar que todos se podem superar”. “É dizer ao agricultor que não é limitado, à professora que pode ter bons resultados na escola, ao engenheiro que pode realizar outro projeto com êxito”, comentou.
Kipchoge, com a bandeira do Quénia depois de baixar das duas horas na maratona não oficial organizada pela INEOS, em Viena, em 2019
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Kipchoge faz parte do clã Talai, membro da tribo Nandi. No Quénia, esta tribo é famosa pelo seu conhecimento e importância na história do país e, segundo algumas lendas, as pessoas que dela fazem parte possuem habilidades sobrenaturais, tais como prever o futuro. Os Nandi integram os Kalenjin, um grupo de tribos do Quénia, Uganda e Tanzânia, de onde vêm muitos dos melhores fundistas das últimas décadas.
O mais novo de quatro irmãos, Kipchoge só foi criado pela mãe, dado que o pai morreu quando o futuro campeão era muito novo. Em criança, Eliud corria seis quilómetros diariamente para ir à escola.
O “rei-filósofo”
“Não tenho nenhum truque. Só me foco e corro. O que me fez aguentar tanto tempo foi a auto-disciplina: só os disciplinados são livres na vida. Se és indisciplinado, és escravo da tua disposição e das tuas paixões”.
É por pensamentos como este, dito em 2021 ao “AS”, de Espanha, que o “New York Times” descreveu, por mais do que uma vez, Kipchoge como “o rei-filósofo” do atletismo, uma espécie de “Yoda de sapatilhas”.
Para Kipchoge, o “mais importante não são as pernas”, mas sim “a cabeça e o coração”. E é nessa cabeça que está a convicção de treinar com o foco necessário para dar asas ao seu corpo de 1,67 metros de altura e escassos 52 quilos de peso.
Eliud Kipchoge cruza a meta na maratona de Berlim, com a marca do novo recorde do mundo fixado
Alexander Hassenstein
O bicampeão olímpico corre só duas maratonas por ano, com um período de descanso de três semanas a um mês depois de cada prova. Em 2022, venceu em Tóquio, além de Berlim, e no ano passado cortou a meta em primeiro nos Jogos Olímpicos e na maratona de Enschede, nos Países Baixos. As duas únicas vezes que foi batido nesta distância foi em Berlim, em 2013, e em 2020, em Londres.
Faz dois a três treinos por dia, com companheiros de corrida que estão entre a elite mundial, mas que olham para ele como um ídolo. Os treinos, pelos trilhos irregulares de Kaptagat, são momentos sagrados de concentração.
Para Kipchoge, ter uma rotina simples e sem grandes luxos é condição essencial para obter resultados de excelência. “Quando deixas de ter uma vida simples, a tua mente perde o contacto com o exterior e perdes o foco nos teus objetivos. Chegados a este ponto, corres o risco de te esqueceres das coisas realmente importantes”, considerou, à “Marca”, em 2021.
Em Berlim, o segundo classificado, Mark Korir, chegou à meta quase cinco minutos depois do recordista. Kipchoge chegou a meio do trajeto em 59 minutos e 51 segundos, 1 minuto e 15 mais rápido do que fizera em 2018, na primeira vez que superou o recorde.
Às duas medalhas olímpicas que o “rei-filósofo” tem na maratona juntam-se uma de bronze, em 2004, e outra de prata, em 2008, nos 5.000 metros, quando Kipchoge ainda não tinha trocado as corridas em estádios pelo desafio das estradas. Se somar novo ouro na maratona em Paris 2024 completará um inédito trio de primeiros lugares na mais mítica prova do atletismo de fundo.
A passada de Eliud Kipchoge é leve e suave, parecendo levitar sobre o chão em que os seus pés mal tocam. O queniano habitou-se a correr só com a mirada no horizonte, pois há muito que só persegue as metas que a sua ambição estabelecer. Completando 38 anos em novembro, “até quando?” é uma pergunta que se impõe: “As minhas pernas e o corpo ainda se sentem jovens. Mas o mais importante é a minha mente, que também se sente fresca e jovem”.