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“Não conheço mais ninguém como ele”: pois não, Yuki Kawauchi não é mesmo como os outros

Enquanto a grande maioria corre no máximo três maratonas por ano, Yuki Kawauchi faz bem mais: em 2017 foram 12 e este ano já vai em quatro. Acaba de vencer a histórica Maratona de Boston. E como é que um amador, porque Yuki não é profissional - trabalha a tempo inteiro como funcionário público e não tem patrocinadores -, consegue vencer uma corrida assim? “Está muito habituado ao sofrimento”

Marta Gonçalves

Scott Eisen/ Getty Images

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No máximo, um atleta profissional faz três maratonas por ano. No máximo. Yuki Kawauchi também corre, mas é amador. E já correu quatro maratonas só em 2018 – uma média de uma prova por mês - e ficou em primeiro em todas. A vitória mais recente aconteceu esta segunda-feira, na Maratona de Boston, uma das mais prestigiadas e antigas, bem conhecida pelas difíceis subidas e descidas no percurso. Yuki tem 31 anos e, esta segunda-feira, demorou duas horas, 15 minutos e 58 segundos a correr exatamente 42 quilómetros e 195 metros. Yuki é amador mas bateu todos os profissionais.

“Este ano ganhou-se com marcas muito lentas, as condições atmosféricas eram péssimas. Estava muita chuva, vento e frio.” Ricardo Ribas, 40 anos e maratonista português, vê no atleta japonês uma mentalidade, capacidade de foco, disciplina e resiliência muito singulares. “Talvez tenha vencido hoje porque está muito habituado ao sofrimento.”

Yuki Kawauchi é relativamente conhecido no atletismo. Chamam-lhe o “corredor cidadão”. Trabalha como administrador numa escola secundária e nunca aceitou patrocinadores para não ser obrigado a largar o emprego. Recebe os prémios monetários dos seus desempenhos em prova e, por vezes, são as organizações das competições que lhe pagam para participar.

“Estou gelado, mas quando estava a correr só pensava que estas eram as melhores condições para o fazer”, disse Yuki no final da prova de Boston. O tempo hoje não facilitou e o resultado do vencedor da 122ª edição da Maratona de Boston foi o pior desde 1976.

“Yuki tem uma mentalidade absolutamente extraordinária, é a mentalidade japonesa. Podia ser o melhor do mundo, mas faz mais de uma dezena de maratonas por ano. É um fenómeno, extraordinário. Consegue correr por ano dez maratonas ao ritmo a que eu corro uma”, diz ao Expresso Ricardo Ribas. “É alguém que acompanho, porque me inspira como maratonista e também pela história de vida.”

Vamos a números: Yuki Kawauchi já fez pelo menos 81 maratonas, ou seja, 3417 quilómetros de prova; venceu 34 medalhas de ouro, oito pratas, oito bronzes e outras tantas vezes assegurou uma classificação entre os dez melhores tempos; o recorde pessoal está nas duas horas, oito minutos e 37 segundos.

Treinos diários, físicos e psicológicos

Ricardo e Yuki cruzaram-se duas vezes: na maratona de Nova Iorque em 2015 e nos Jogos Olímpicos no ano seguinte. “Tive a sorte de jantar na mesma mesa que ele nos EUA, mas nunca falámos”.

“Quando acabou a maratona, atirou-se logo para a maca completamente cansado. No dia seguinte, já estava a treinar como se nada fosse. Não conheço mais ninguém como ele, penso que é único”, acrescenta Ricardo Ribas.

Qualquer pessoa que queira participar numa maratona deve ter o mínimo de preparação física. Um profissional com ambições de vencer – ou de pelo menos de ter um bom resultado - precisa de muito mais que os mínimos. “Diria que para preparar uma prova como a Maratona de Boston são necessários quatro meses de preparação, que passam sobretudo pelo descanso, muito treino (corrida e ginásio), mas sobretudo muita disciplina. Normalmente, diariamente são duas horas de manhã mais duas durante a tarde. Ao domingo, um treino mais longo”, explica Ricardo Ribas. É preciso conciliar a parte física com a psicológica, até porque a dado momento “mente é que manda”.

Yuki não tem treinador. Apenas corre. E usa todas as corridas em que participa como treino. “Ele é amador. Para mim, em Portugal praticamente todos os atletas são amadores. Fazer só atletismo não faz de mim profissional. Tem que ver com o modo de vida e capacidade de amealhar financeiramente para poder viver. Diria que só quatro ou cinco atletas no meio fundo têm um nível m que conseguem ser profissionais. No geral, somos trabalhadores normais, só que corremos. Corremos por paixão”, explica o atleta português.

Quem corre é porque gosta, porque se sente bem, diz Ricardo Ribas. E também é por isso que Yuki corre. “Não é como qualquer outro corredor de maratonas”, escreveu a Associação Internacional de Federações de Atletismo. Pois não, Yuki Kawauchi não é mesmo como os outros.