Bastaria tocar ao de leve em qualquer parte do corpo sem necessidade de haver placagens, essa a ceifa humana contra humanos, seria um jogo de touch, a versão do râguebi menos fisicamente brutal e à cabeça de Wayde não vieram inconvenientes, foi a personificação do prosaico ‘porque não?’. O jogo até era de beneficência, a boa causa colou-se aos bons sonhos com que crescera em Kraaifontein, um subúrbio a norte da Cidade do Cabo, onde “provavelmente se poderia retirar um império do desporto” e ele era um dos que “pensava que, um dia, jogaria pelos springboks”.
Então Van Niekerk anuiu e equipou-se, as chuteiras e as meias brancas esticadas até aos joelhos, participou por diversão no jogo em que sonhava brilhar em gaiato, quando o colocavam à ponta para esperar pela bola e zarpar rumo à linha de ensaio, até entenderem que a bola raramente lá chega quando o râguebi é de miúdos e o melhor seria puxá-lo para médio de abertura. O pai recordava como bastava “apenas um passe para ser ensaio” à boleia do velocista.
O coração toldou a decisão do fenomenal desportista sul-africano, atreveu-o a aceitar recrear-se no piso, com o calçado e a fazer os movimentos que não o elevaram ao estatuto de fenómeno e o seu corpo, desgastado por recordes em pistas de tartã, cedeu no joelho direito: em 2017, rompia os ligamentos cruzados anteriores e do menisco por causa de um jogo de râguebi. Do nada, o atletismo ficava sem um recordista de quem se esperava o estrelato planetário.
No ano anterior, Van Niekerk zarpou na prova dos 400 metros no Rio de Janeiro e terminou-a em 43.03 segundos, vencendo o ouro olímpico (já era campeão mundial da distância, desde 2015.) e batendo a quase adulta marca mundial de Michael Johnson, que durava há 17 anos. Nos Jogos do Brasil também se acelerou pelos 200 metros fora para a medalha de prata de lá sair ao seu pescoço, o da primeira pessoa a, meses antes, ser capaz de correr os 100, os 200 e os 400 metros em menos de 10, 20 e 44 segundos.

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Era um feito para arregalar os olhos a almas comuns e lhes despertar a noção do abismal que pode ser o limite do corpo humano, até onde é possível desafiá-lo, quão longe alcançam as façanhas assim o queiram as pessoas. Antes de ter a medalha de ouro olímpica, a Van Niekerk já era tuteado pelas previsões de grandeza. Depois de o ser, ficou como sina a que o sul-africano não poderia fugir, um destino forçosamente imposto.
O próprio Usain Bolt e o seu carisma eucaliptal, reinante durante mais de uma década com sorrisos em momentos tensos, descontração em competição e uma superioridade a roçar o ridículo, também empurraram as expetativas nessa direção. “Tem corrido rápido, está a fazer muito pelo desporto e ainda é tão novo. Vai assumir o controlo, sem dúvida”, disse o jamaicano, em 2017, sem problemas em dar braçadas na onda que tudo o que eram federações e marcas do atletismo engrandeciam - no sul-africano tinham um potencial sucessor de Bolt como angariador de atenções para o atletismo.
Nesse ano, cruzar-se-iam num meeting em Ostrava, na República Checa, onde Van Niekerk fez os 300 metros em 30,81 segundos e retirou outro recorde mundial do legado de Michael Johnson; e estariam ambos nos Mundiais de Londres, Inglaterra, onde defendeu o título mundial e ainda foi buscar a prata aos 200 metros. “Uma coisa é alguém dizer que posso ser o the next big thing. Outra é trabalhar para essa grandeza. Não me sinto intimidado, é um sonho pelo qual preciso de lutar”, aceitou o sul-africano, citado pela "BBC", quando reagiu às palavras de Bolt.
Mas, contrastando-os, o jamaicano era o musculado tipo das poses à deus grego para a fotografia nos minutos antes de uma corrida e o sul-africano o atleta que se ajoelhava na sua pista para rezar; Usain virava-se para trás a rir a meio dos seus sprints ganhadores, Wayde era o rapaz que se descrevia como simples e disciplinado; um celebrava títulos olímpicos no meio da seleção feminina de andebol da Suécia, o outro era apenas recebido no aeroporto pela mãe, em 2015, quando voltou de Pequim como campeão do Mundo.
E, depois, um momento de râguebi lúdico roubou um joelho a Van Niekerk.

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Dois meses tinham passado desde a revalidação do ouro mundial e um pesadelo iniciava-se, arraçado de agruras físicas, dúvidas mentais e o peso da culpa própria que demorou a superar. “Não posso culpar ninguém. Fui eu que tomei a decisão, fui eu que me coloquei naquela situação e isso trouxe-me um pouco de culpa, de desejo em não ter feito o que fiz”, confessaria ao site “World Athletics”, refeito dos anos que esteve sem competir (2018 e 2019, quando se voltou a lesionar num osso) e a tentar voltar às pistas. Não estava fácil: regressar aos solavancos também devido à convivência com a pandemia.
Quando aceitou ir brincar à oval, Wayde sentia-se “no topo do mundo”, sem se aperceber do “rasto” que o esforço feito para juntar medalhas, bater recordes e ser o mais rápido em várias distâncias lhe “retiraram muito do corpo”, sem ele saber “realmente que o estava a cansar”, reconheceria ao “The Guardian” - ir jogar râguebi “foi como estar a pedir problemas”. Aos poucos, superados os receios de forçar o físico durante a recuperação, só voltaria a competir no final de 2020, mesmo com 26 dias passados em quarentena por ter sido infetado pelo SARS-CoV-2.
Ainda incapaz de sacudir por completo todos os pingos de dúvida, o sul-africano deu um safanão nos seus métodos e separou-se de Anna Sofia Botha, a treinadora de sempre, de 81 anos, já bisavó e que tratava os atletas “como se fosse seus filhos”, com quem ganhara tudo. Foi para os EUA ser treinado por Lance Braman. “Fi-lo porque necessitava de treinar com atletas mais fortes do que eu, companheiro que puxassem por mim nos treinos, que me forçassem a dar mais todos os dias”, explicou, no mês passado, no meeting de Madrid, após garantir a presença em Tóquio com os 44,56 segundos que fez nos 400 metros.
Muita gente queria transplantar a idolatria canalizado por Usain Bolt para Wayde Van Niekerk, mas, aos 28 anos, ainda é o tipo pacato, devoto e tímido, licenciado em marketing sem realmente saber, ou querer, vender a sua imagem pública, que continua a acreditar ser capaz de correr a distância que o revestiu de ouro olímpico em menos de 43 segundos. Jamais alguém o fez: “É o meu único próximo passo”.
Os Jogos do Japão separarão o trigo do joio no sul-africano e serão o teste máximo para lhe aferir a recuperação mental de confiar, de novo, no corpo que um dia foi dos mais rápidos do mundo até ceder. Houve dias dessa recuperação em que não conseguiu andar. A maioria, admitiu à “Athletics Weekly”, serviu para Van Niekerk aprender a distinguir “dor má, de estar à beira de se lesionar”, de “dor em que apenas precisa de um dia ou dois de descanso, para recuperar”. O tipo de dor que talvez teve quando aceitou ir jogar râguebi.
Depois de a velocidade nada parecer lhe ter de ensinar, o sul-africano está a aprender como poderá ser veloz outra vez.